Para comemorar o Dia Mundial da Água – 22 de março, Nossa Ciência reuniu uma série de matérias sobre o tema que serão publicadas ao longo dessa semana. Leia a entrevista com o professor da UFCG. Para Kepler França, responsável pela instalação do primeiro sistema de dessalinização no Brasil, há 22 anos, a Ciência deve melhorar a vida das pessoas
“Você sabe quantos especialistas sobre dessalinização de água tem no nordeste? Um. É Kepler, da Universidade Federal de Campina Grande. Ele estuda isso há 30 anos, tem mais de 2 mil sistemas instalados. Você tem que entrevistar ele.” A afirmação de Silvio Meira durante entrevista ao Nossa Ciência apresenta o personagem da coluna Perfil dos Cientistas. Kepler Borges França é professor do Departamento de Engenharia Química da UFCG e coordena o Laboratório de Referência Nacional em Dessalinização (Labdes). Paraibano de Campina Grande, passou parte da infância e adolescência em Recife (PE). Depois voltou para Campina onde prestou vestibular para Engenharia Química e obteve excelente colocação, ficando em 6º lugar. Ao final do curso, já casado, foi fazer Doutorado na Universidade de Kent, na Inglaterra, onde nasceu seu primeiro filho, que tem dupla nacionalidade. Teve oportunidade de ficar por lá, mas preferiu voltar para ser professor na então Universidade Federal da Paraíba, antes do desmembramento da UFCG. Tinha pesquisado sobre extração de metais pesados, mas na Paraíba entendeu que daria maior contribuição à sociedade dedicando-se à extração do sal da água. Leia a primeira parte da entrevista feita por telefone.
Nossa Ciência: Como surgiu seu interesse pela ciência?
Kepler França: Meu pai tinha uma fábrica de produtos cosméticos. Ele desenvolvia e vendia esmaltes e outros produtos de beleza e eu como curioso, com 14 ou 15 anos, comecei a estudar esse tipo de produtos e comecei a me envolver com a Ciência propriamente dita. Depois eu aprendi e eu mesmo comecei a fazer esses produtos.
NC: E então o senhor entrou para a Engenharia Química…
KF: A gente morava em Recife e meu pai me mandou para Campina Grande para a casa dos meus avós. Eu estava trabalhando com produtos químicos e resolvi fazer vestibular para Engenharia Química, mas isso já bem tarde porque eu trabalhava para manter a família, que era muito grande. Eu sou o mais velho de oito irmãos. Terminei o curso muito rápido e depois fui para a Inglaterra para fazer Doutorado e lá passei praticamente cinco anos.
NC: Quando o senhor começou a estudar a dessalinização?
KF: Quando eu terminei o Doutorado, voltei para Campina Grande, para a então Universidade Federal da Paraíba, que ainda não era UFCG. E eu comecei a fazer pesquisa. Na Inglaterra, eu trabalhava numa pesquisa muito avançada, que era extração de metais pesados, mas quando eu cheguei aqui resolvi estudar outras coisas e me fascinei, em vez de extrair metais pesados eu comecei a pensar em extrair sal da água. Percebi que era mais dentro da concepção ecológica de tratamento de água para beneficiar comunidades difusas, que não tinham acesso a água potável.
NC: Como foi a passagem do estudo à implantação dos sistemas?
KF: O primeiro sistema de dessalinização implantado no país foi na cidade de Olivedos/PB (1994), financiado pela Fundação Banco do Brasil. Ainda no Governo FHC (1997), fui convidado pelo Ministério do Meio Ambiente e junto com a Secretaria de Recursos Hídricos criamos o Programa Água Boa, que foi pioneiro instalou vários sistemas de dessalinização no nordeste. Em 1999, nós instalamos um sistema de dessalinização de água do mar em Fernando de Noronha. Hoje a ilha é beneficiada com água potável, a partir de um projeto nosso. Depois no Governo Lula foi dado início ao Programa Água Doce, que eu também coordenei e definimos vários sistemas de dessalinização para o nordeste. Não vou dizer que estava cansado de viajar, mas eu precisava pousar, para continuar a pesquisa, e então eu sai do Programa. Mas deixamos coordenações montadas em todos os estados e atualmente o PAD atua nos nove estados implantando sistemas de dessalinização. Acredito que só aqui no Labdes, nós projetamos mais de mil sistemas. É muita gente sendo beneficiada. Além de Fernando de Noronha, tem outros sistemas grandes como na Ilha de Buriri (ES).
NC: Depois que saiu do PAD, o senhor começou a investigar o rejeito do processo?
KF: Quando sai do PAD me envolvi com outros projetos de dessalinização, mas também fazendo um estudo para aproveitamento do concentrado, ou seja do rejeito da dessalinização. Nós colocamos um sistema numa comunidade chamada Uruçu, na cidade de São João do Cariri, distante 100 quilômetros de Campina Grande, um projeto muito bonito, que foi financiado pela Petrobras. Ainda funciona e é uma cooperativa. A partir do rejeito da dessalinização, eles vendem hortaliças (alface, rúcula), tem produção de peixes e tem também a água potável que atende a toda a comunidade. Esse projeto foi copiado e hoje está funcionando dentro de uma escola na comunidade Santa Luzia, na cidade de Picuí (PB).
NC: O senhor falou de sistemas implantados em todo o nordeste, inclusive no Arquipélago de Fernando de Noronha e no Espírito Santo…
KF: Também temos projetos implantados na região norte do país, na Vila de Sucuriju (AM), onde o mar entra no rio, que fica salgado; e outro em uma escola que tem um rio que tem ácido úrico e a gente deixou a água potável, abastecendo a Vila. Tem várias perspectivas de projetos de colocar sistemas de purificação de água, de reuso de água principalmente nessa crise hídrica que está acontecendo.
NC: Os sistemas instalados são o seu legado?
KF: Aqui na Universidade eu formei muita gente, muitos mestres (50) e doutores(8). Muitos deles atuam na área do conhecimento, muitos criaram empresas, outros estão trabalhando em indústrias, desenvolvendo essa tecnologia. Também nasceram empresas de montagem de equipamentos e existe uma demanda enorme pela busca desse conhecimento. Atualmente, eu estou orientando um mestrando e 11 doutorandos, todos estudando água, não somente em dessalinização, mas também com purificação e reuso de água.
NC: Seus alunos são todos da Pós-Graduação?
KF: Eu dou aula na Graduação, na Pós-Graduação e ministro cursos que a gente cria para beneficiar esses sistemas de dessalinização, para manutenção de sistemas e membranas.
NC: Qual é a função da Ciência hoje?
KF: Eu sempre fui fascinado por pesquisa para resolver problemas de ordem social e ambiental. Quando eu vejo tantos problemas no Meio Ambiente, do ar, do solo, da água e nós temos soluções simples e que podemos aplicar diretamente, eu começo a criar os laboratórios lá fora. Então a pesquisa feita aqui, é aplicada imediatamente no campo para testarmos e vermos as soluções e os resultados que venham beneficiar a qualidade de vida daquelas pessoas que não têm acesso a água potável, não têm um nível de sustentabilidade e bem estar. O que mais me fascina é estudar esse tipo de problema, poder resolver de uma forma rápida e beneficiar o meio e também o desenvolvimento regional. Eu trabalho nessa linha, que venha atender ao Meio Ambiente, em lugares inóspitos que de fato não tenha essa segurança do viver.
NC: Quais são as maiores dificuldades para se trabalhar em Ciência no Brasil?
KF: Existem vários gargalos. O primeiro é a divisão dos recursos para a pesquisa e extensão no país. Se você pensar na riqueza da Região Amazônica, o que nós podemos obter com aquela riqueza, se você comparar os recursos que vão para lá com os que vão para outras regiões; se você imaginar como é reduzido o número de institutos de pesquisa que temos no Norte; vai ver que não há estímulo para o pesquisador trabalhar lá, porque não tem infraestrutura, não tem o apoio para desenvolver o potencial. Se você vem descendo para o centro oeste, para o nordeste e para o sul, vai ver que essa distribuição não é uniforme.
NC: O senhor citou como primeiro grande problema a má distribuição dos recursos para ciência, que são mais direcionados para certas regiões. Há outros também relevantes?
KF: O outro, que é um gargalo fortíssimo, é o governo entender que é possível resolver nossos problemas como nossos próprios recursos humanos. Fica muito difícil para o recém-doutor Não ter esse apoio; ele passa dez anos após terminar seu doutorado, só dando aula no quadro negro, para então ser reconhecida a condição de fazer um trabalho. Então, ele já está cansado, se estressa e quando recebe os recursos são poucos e a infraestrutura é muito pobre.
NC: O problema é de gestão da Ciência?
KF: Nosso país começa a construir a casa pelo telhado. A gente vê, por exemplo, se eu sou contemplado com um equipamento, não existe um trabalho, uma infraestrutura de manutenção daquele equipamento porque nossas instituições de ensino superior não possuem isso. Se eu, como pesquisador, comprar um sistema de análise, mesmo não sendo nem muito caro, e uma lâmpada queimar, eu não tenho recurso para trocar qualquer coisa, a universidade não garante a manutenção. A gente vive num sistema muito frágil em termos de serviço que visa a sustentabilidade dos sistemas.
NC: Essas dificuldades são comuns a todas as regiões?
Aqui no nordeste a gente tem muita gente boa nas nossas universidades, capacitadas, formadas em outras IES fora do nosso país, que estão como um capacitor, estão armazenados e muitos deles não fizeram nada por conta dessa nossa política interna de investimento de pesquisa que é muito pobre. No momento houve um corte de 45% de todas as Instituições de Ensino Superior, que já estava pobre. As agências de fomento como CNPq e Capes não têm recursos e outros órgãos que também financiavam, entraram em falência. Daí começa o estresse, o pesquisador começa a entrar no estado de convulsão e começa a perceber que não tem como fazer o trabalho. A gente está numa situação precária e isso desclassifica o ensino, o profissional, a formação do profissional. Aqui no nordeste temos muitos problemas, de apoio financeiro para a pesquisa em várias linhas de ação, como saúde, tecnologia, agroindústria, energia. O dinheiro está contado.
Prof. Kepler: O Sr. sabe informar se a membrana de osmose reversa nacional, patenteada pela USP, está sendo utilizada nos dessalinizadores do Nordeste? Eu li que ela é mais eficiente, barata, além de reciclável, do que a importada dos Estados Unidos.
Prof. Kleper, nos ajude. Na comunidade em que moro, em Brumadinho MG, somos 280 famílias. Retiramos água do subsolo, que tem aparencia turva. Ela vai para uma grande caixa d,água e dali redistribuiída a todas as moradias. Sonho em conhecer um sistema para tratamento dessa água que atenda a tanta gente.