Trabalho escravo, ainda Artigos

sábado, 17 agosto 2019
Condições precárias e longas jornadas caracterizam a escravidão. (Foto: Agência Brasil)

Recente resgate de trabalhadores em condições análogas à escravidão é um alerta para a sociedade

(Por Homero Costa)

Segundo uma matéria publicada no jornal O Estado de S. Paulo no dia 16 de julho de 2019, assinada por Luiz Vassalo, uma operação conjunta do Ministério Público do Trabalho (MPT), Superintendência Regional do Trabalho (SRT) e Polícia Rodoviária Federal (PRF) resgatou 66 pessoas consideradas em situação análoga à de escravo em Paracatu, na Região Noroeste de Minas Gerais.

Nesta operação constatou-se que os trabalhadores estavam em um alojamento em condições precárias “sem roupa de cama, sendo que alguns trabalhadores utilizavam tijolos e pedaços de madeira com travesseiro, acúmulo de lixo, entre outros problemas”, também que “não havia local para refeição, abrigo contra chuva, sanitário e reposição de água potável”. Informa ainda que segundo a Procuradoria-Geral do Trabalho os trabalhadores “exerceriam suas atividades na colheita de milho, desprotegidos e sob risco de acidentes, além de “infrações quanto ao registro formal dos trabalhadores, à falta de depósito do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e controle de jornada, às condições em que o transporte para a colheita de milho era realizado’.

Ainda segundo a matéria, os procuradores e auditores informaram que todos os resgatados, vindos de várias partes do país, foram aliciados para o trabalho por meio de “gatos” (pessoas que intermediam a contratação).

Esse fato mostra como muitos trabalhadores ainda se encontram em situação de escravidão no Brasil, que inclui trabalhos forçados ou por dívida, condições degradantes, extensas jornadas, além de agressões físicas e psicológicas.

Segundo levantamento do Ministério do Trabalho e da Comissão Pastoral da Terra, divulgado pela ONG “Escravo, Nem Pensar!”, mais de 52 mil trabalhadores foram regatados da escravidão entre 1995 e 2016.

Em relação ao combate ao trabalho escravo, um dos problemas é que não há entendimento uníssono dos Tribunais do Trabalho e Ministério Público. O empregador pode incorrer em desobediência aos direitos básicos do empregado, quando se constata ausência de intervalo, jornada extenuante ou condições degradantes do trabalho, como o exemplo do que ocorreu em Paracatu, Minas Gerais.

Um aspecto relevante em relação ao trabalho escravo é a posição do governo sobre o assunto. Numa cerimônia realizada no Palácio do Planalto no dia 30 de julho de 2019, o presidente da República se referiu ao trabalho escravo. Para ele, as leis precisam ser revistas. Segundo o presidente, a Constituição está confusa na definição e prejudica empregadores. A preocupação é com confisco das propriedades em caso de condenação, ou seja, a necessidade de mudar as regras que envolvem trabalho análogo à escravidão “para evitar que produtores rurais percam a propriedade quando for constatado esse tipo de crime”. Ele defendeu uma mudança no sentido de que haja uma distinção clara entre o que é trabalho análogo e o que é trabalho escravo.

A critica do presidente é em relação à Emenda Constitucional 81. Diz o Artigo. 243, aprovado em 2014: “As propriedades rurais e urbanas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo na forma da lei serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei, observado, no que couber, o disposto no art. 5º. Parágrafo único. Todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e da exploração de trabalho escravo serão confiscados e reverterá a fundo especial com destinação específica, na forma da lei”.

Há tempos, o lobby da bancada ruralista quer flexibilizar o conceito de trabalho escravo, retirando da regulamentação o trabalho degradante e a jornada exaustiva e que o fato de descumprir a legislação trabalhista não pode ser tratado como trabalho escravo.

No artigo Bolsonaro e a redução do combate ao trabalho escravo publicado na revista Época no dia 4 de julho de 2019, Guilherme Amado mostra que o presidente tem sido coerente. Ele se refere a um discurso feito por ele, em maio de 2018, portanto, antes de ser eleito no qual, diz o autor, “o então presidenciável Jair Bolsonaro empunhava o microfone em um evento em Brasília, com prefeitos e vereadores. Era pré-campanha e ele sonhava em subir a rampa do Planalto ‘Tem gente do Ministério Público, do Judiciário, que entende que o trabalho análogo à escravidão também é escravo. Tem de botar um ponto final nisso. Análogo é uma coisa. E escravo é outra’, distinguiu. Um ano depois, o governo comandado pelo autor da frase, apoiado por dez a cada dez ruralistas, reduziu em 57% o número de operações de combate ao trabalho escravo e cortou em um terço o orçamento da Secretaria de Trabalho”.

De acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), o trabalho análogo à escravidão é “todo trabalho ou serviço exigido de uma pessoa sob ameaça de sanção e para o qual ela não tiver se oferecido espontaneamente” e trabalho escravo é “trabalho forçado que envolve restrições à liberdade do trabalhador”.

No Brasil, o artigo 149 do Código Penal define as condições de trabalho análogo à escravidão, que incluem o trabalho forçado e as condições degradantes de trabalho e prevê punições para quem for condenado pela prática de escravização e aliciamento de pessoas para trabalhos forçados.

Segundo o Código Penal “É crime “reduzir alguém à condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”.

Portanto, o Código Penal brasileiro estabelece que sejam elementos que caracterizam o trabalho análogo ao de escravo, as condições degradantes de trabalho (caracterizadas pela violação de direitos fundamentais que coloquem em risco a saúde e a vida do trabalhador), jornada exaustiva, trabalho forçado e servidão por dívida.

Em junho de 2019, o Decreto n. 9.887 (27 de junho de 2019), dispõe sobre a Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo – cujo objetivo é de traçar e fiscalizar um plano nacional de combate ao trabalho escravo – alterou sua composição: de 18 integrantes, incluindo seis ministros e até nove representantes de ONGs para oito com até quatro representantes da sociedade civil.

O problema não é apenas mudanças de composição, mas possíveis reflexos nas ações de combate ao trabalho escravo. Como diz Guilherme Amado no já referido artigo “Foi este país que viu despencarem neste ano as ações de combate. De janeiro a maio de 2019, foram 54 operações. No ano passado, foram 127 no mesmo período. Em 2017, foram 107. Pelos números da Secretaria de Inspeção do Trabalho, nos cinco primeiros meses da gestão bolsonarista, 232 trabalhadores foram resgatados desse crime. No mesmo período do ano passado, foram 994 — 1.745 em todo o ano. A cifra é maior do que em 2017, quando foram contabilizados 205 resgates de janeiro a maio. Em perspectiva, esse índice anual teve alta em 2018 pela primeira vez em cinco anos, mas ainda está distante dos recordes. Em 2007, por exemplo, mais de seis mil pessoas foram resgatadas dos locais onde eram exploradas”. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) estima que existam cerca de 21 milhões de trabalhadores no mundo vivendo em condições análogas à escravidão e a Ásia concentra mais da metade do total desses trabalhadores, que atuam, principalmente, em serviços domésticos, na agricultura e na construção civil.

No Brasil, de acordo com o Ministério do Trabalho, nos últimos 20 anos quase 50 mil trabalhadores em situação análoga à escravidão foram resgatados, a maioria nos setores de extração de minérios, construção civil, agricultura e pecuária.

Para a erradicação das práticas de escravização é necessário não apenas denúncia e a fiscalização de órgãos e pessoas que são contra o trabalho escravo e a favor dos Direitos Humanos, mas também e fundamentalmente a punição dos responsáveis.

O fato é que 131 anos depois da abolição oficial da escravatura no Brasil as condições degradantes de trabalho, trabalhar para saldar dívidas com o empregador, jornadas exaustivas, cerceamento da liberdade e outras violações dos Direitos Humanos que configuram trabalho escravo, ainda persistem. Até quando?

Referência

Escravo, nem pensar: uma abordagem sobre trabalho escravo contemporâneo na sala de aula e na comunidade / Repórter Brasil (Programa “Escravo, nem pensar!”) – São Paulo: Repórter Brasil, 2012

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Homero de Oliveira Costa é Professor Titular (Ciência Política) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Homero de Oliveira Costa

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