Future-se: o projeto de lei Ciência Nordestina

terça-feira, 30 julho 2019
O ministro da Educação, Abraham Weintraub apresentando o programa Future-se.

Colunista questiona pontos do projeto apresentado pelo Governo Federal e teme pela privatização da Universidade Pública Brasileira

A minuta de projeto de lei do Future-se trata de uma iniciativa descrita como sendo de “fortalecimento da autonomia financeira e administrativa das instituições federais de ensino superior (IFES)”. A ação central foca no estabelecimento de parcerias com organizações sociais (OS), o que vem a caracterizar a adesão da instituição ao programa Future-se. Esta adesão é dita como voluntária embora a permanência dependa da boa execução das diretrizes de governança.

Na minuta, um ponto salta aos olhos: a gestão do patrimônio das IFES. Com a adesão ao programa, caberá à cada OS fazer a gestão patrimonial das IFES participantes. Os bens imobiliários passam para o MEC que seria autorizado a doá-los à OS – com isso espera-se integralizá-los (os bens imobiliários) em fundos de investimentos – sendo possível nomear partes dos bens em troca de compensações financeiras.

No entanto, para que toda esta máquina funcione se faz necessária a existência de tais fundos. Fundos estes (conforme esclarecido na seção IV da minuta) que vêm da própria União. Com isso, o MEC entra como cotista dos fundos de investimento de natureza privada. Passa a existir a figura de uma entidade mediadora – financiada pelo governo – e que teria o papel primário de gerir o patrimônio imobiliário das Universidades – as OS. Outro ponto que parece estrangular o sistema surge logo a seguir: a minuta estabelece a possibilidade de cessão de servidores para as organizações sociais. As Universidades, com cada vez menos concursos passariam também a fornecer mão de obra para estas entidades de gerenciamento.

Os capítulos que deveriam atrair maior atenção, justamente aqueles que tratam de pesquisa, desenvolvimento, inovação e internacionalização, ao contrário do que se espera, não trazem nada de novo. As metas são ultrapassadas e trabalhadas no cotidiano de todas as IFES do país: fortalecimento do NIT, da inovação tecnológica, a busca pela internacionalização e a atração de colaborações internacionais para o país.

Neste último ponto, basta lembrar que entre 1951 e 1952 o prêmio Nobel Richard Feynman ministrou aulas de física no Brasil. O próprio Albert Einstein já estivera por aqui em 1925 proferindo palestras. Assistir uma palestra de prêmio Nobel em qualquer Universidade Brasileira ou em congressos de área vem se tornando algo extremamente corriqueiro nos últimos anos. Basta manter o PROAP que esta pauta do Future-se estará completamente sanada.

Ainda no aspecto da internacionalização, um ponto estranho se refere ao vínculo de cursos de idiomas a instituições privadas. Os núcleos de línguas das Universidades Federais são referência em praticamente todas elas – que são instituições públicas. Ainda na linha da estranheza, não consigo compreender o que significa premiar estudantes por falta de indícios de desabono de conduta.

A minuta não revela, no entanto, se o gerenciamento dos recursos da exploração dos imóveis das universidades gerará fundos suficientes para suprir os editais de pesquisa suspensos, o contingenciamento que levou milhares de terceirizados para a rua e todos os riscos de paralisia do sistema federal de ensino superior – induzidos pela falta de investimento.

De fato, a minuta levanta muito mais dúvidas do que certezas. Ao leitor interessado, antes de levantar as minhas perguntas, convido-o a ler a Lei nº 13.243, de 11 de janeiro de 2016 – marco legal de ciência, tecnologia e inovação do Brasil.

Agora, vamos às perguntas:

  • Onde figuram as Fundações de Apoio neste cenário das alienações pró-Organizações Sociais? As fundações realizam esta atividade nos dias atuais sem a necessidade de receber doação de imóveis.
  • Se o fundo será financiado pelo governo e este mesmo governo é o mantenedor das IFES, qual a real necessidade de um intermediário na gestão das IFES?
  • A consolidação da Lei 13.423 traria muito mais benefícios às Universidades, ao desburocratizar o uso de seus recursos. Porque não o fazer?
  • Qual o limite da intervenção das OS na estrutura das Universidades?
  • O contingenciamento de recursos acaba para as Universidades que aderirem ao Future-se?
  • Como o Future-se apoiará as pesquisas na Universidade? Como ficam o CNPq, CAPES, FINEP? Um professor cedido à OS também deixará de fazer pesquisa e extensão. Não são apenas aulas!

Enfim, se a questão é esta, é óbvio que a Universidade Brasileira tem toda a condição de gerar recursos financeiros. Cobrar pela prestação de serviços à iniciativa privada não é pecado. Isso gera receita. O que se faz necessário é quebrar a burocracia que impede o uso destes recursos dentro da administração pública – colocar em prática a Lei 13423/16. Todavia, ao invés disso, são colocados atores terceirizados no processo. A existência das organizações sociais como gerenciadoras de IFES parece ser o grande nó que se coloca no meio da proposta. Um nó que pode ser a pavimentação do processo de privatização da Universidade Pública Brasileira.

Referência:

Lei 13.243/2016

Leia também:

Para reitor da UFC, há risco de privatização das universidades

UFCG divulga nota sobre o Programa Future-se

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Helinando Oliveira é Professor da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf) desde 2004 e coordenador do Laboratório de Espectroscopia de Impedância e Materiais Orgânicos (LEIMO).

Helinando Oliveira

3 respostas para “Future-se: o projeto de lei”

  1. Vanessa Gomes Ferreira disse:

    Alguns exemplos de falta de conduta nas universidades:

    http://www.diariorepublicano.com.br/noticia/835/cenas-e-casos-bizarros-registrados-em-universidades-federais-no-brasil.html

    O único nó que realmente precisa ser desatado é a mente fechada de pessoas dentro da própria Universidade. Para essas pessoas, não existe problema algum. Frases como “somos referência” ou “Einstein já deu aula aqui” não querem dizer absolutamente nada.

    Poderíamos ser “referência” em internacionalização caso metade das disciplinas fossem ministradas em inglês. Artigos publicados em inglês também seriam um indicativo. Estamos muito longe disso.

  2. Cleanto Fernandes disse:

    Prezada Vanessa e demais leitores do Nossa Ciência,

    O casos relatados na matéria que você apresentou são exceção, ao invés da regra. No dia a dia, a universidade pública brasileira realiza atividades de ensino, pesquisa e extensão, a maioria de qualidade. Temos muitos e muitos exemplos de trabalhos excelentes, reconhecidos e premiados inclusive no exterior. Você pode fazer uma pesquisa no Google para verificar isso. Além disso, pode ir a uma universidade pública qualquer dia desses e não verá nenhuma pessoa nua, mas, ao invés disso, pessoas estudando, pesquisando e fazendo tudo que se faz e deve fazer em uma universidade.

    Existem sim muitos desafios, não digo que a universidade pública brasileira seja perfeita, nem que sejam as melhores do mundo. Entretanto, para avançarmos, valorização e investimentos são necessários – não suficientes, mas necessários.

    Propostas como aulas em inglês são interessantes, inclusive já existem em algumas pós-graduações, sabia? Mas outras coisas devem ser observadas. Nem todos sabem falar inglês, e aqui vem os problemas de nossa educação básica.

    Concluo dizendo que qualquer debate ou proposta para melhora de nossas universidades deve ser bem fundamentada e consider o que realmente a universidade é, e não sua distorção ou caricatura.

    Cleanto Fernandes , professor

  3. Vanessa Ferreira disse:

    Senhor Cleanto Fernandes,

    Está corretíssimo em afirmar que devemos fundamentar as propostas para atacar nosso problema educacional e científico. Acontece que muitas pessoas insistem em análises superficiais e de senso comum, como a hipótese de que mais recursos financeiros seria a solução.

    Nós investimos o equivalente a países desenvolvidos e nosso resultado é 40% de desistência nos cursos superiores e 55% de analfabetos funcionais em nosso país. São evidências claras de que dinheiro não é o principal problema e por isso devemos mudar.

    Graças ao SISU, passei pela graduação, mestrado e doutorado em vários estados brasileiros e posso lhe garantir que muito dinheiro é jogado no lixo. Talvez na sua universidade seja diferente, mas, em todas que eu passei, haviam muitos eventos completamente inadequados para a produção de ciência. O consumo de drogas é algo que faz parte do dia-a-dia em departamentos e DCEs, lamentavelmente. A partir do momento em que a polícia possa entrar nas universidades públicas, vamos ter estatísticas sobre tudo isso – como hoje não é possível, é fácil falar que esses problemas inexistem.

    Portanto, acho que o exercício de autocrítica, tão difícil no ambiente acadêmico, é algo urgente e necessário.

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