A expressão máxima da soberania reside em grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer
(Por Homero Costa)
Necropolítica é um conceito utilizado pelo filósofo camaronês Achille Mbembe, atualmente professor de História e Ciências Políticas na Universidade de Witwatersrand, em Joanesburgo, África do Sul e também na Duke University, nos Estados Unidos. É autor de vários livros, alguns traduzidos para o português como A crítica da razão negra e Necropolítica, publicados no Brasil pela Editora N-1 Edições em 2018 e Sair da grande noite: ensaios sobre a África descolonizada (Editora Vozes, 2019).
Para ele, a necropolítica significa uma alteração na forma com que são exercidas as noções de soberania e poder, que passam a ser estruturadas a partir do princípio de quem pode viver e quem pode morrer. Soberania enquanto a capacidade de definir quem importa e quem não importa, quem é ‘descartável’ e quem não é. Daí sua afirmativa de que “expressão máxima da soberania reside em grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer. Por isso matar ou deixar viver constituem os limites da soberania, seus atributos fundamentais. Exercitar a soberania é exercer controle sobre a mortalidade e definir a vida como a implantação e manifestação de poder”.
Além disso, propõe a noção de necropolítica e de necropoder “para dar conta das várias maneiras pelas quais, em nosso mundo contemporâneo, as armas de fogo são dispostas com o objetivo de provocar a destruição máxima de pessoas e criar ‘mundos de morte’, formas únicas e novas de existência social, nas quais vastas populações são submetidas a condições de vida que lhes conferem o estatuto de mortos-vivos”.
Como ele explicita no início do ensaio, há um contraponto com a ideia de biopoder e biopolítica, desenvolvida por Michel Foucault, relacionando com outros conceitos – estado de exceção e estado de sítio do filósofo italiano Giorgio Agamben. Para Mbembe “o estado de exceção e a relação de inimizade tornaram-se a base normativa do direito de matar”, assim como o poder “apela à exceção, à emergência e a uma noção ficcional do inimigo” para justificar o extermínio dos indesejáveis, dos que ousarem resistir.
Ele utiliza as noções de biopoder e biopolítica de Michel Foucault para analisar como a necropolítica pode se aplicar ao conjunto da periferia do capitalismo, nas quais as “massas supérfluas” (sobre) vivem num estado de pobreza, excluídos do ponto vista social, econômico e político.
No entanto, segundo Mbembe, o biopoder não é suficiente para explicar as formas contemporâneas de subjugação da vida ao poder da morte. E propõe a noção de necropolítica e necropoder no qual afirma que as experiências contemporâneas de destruição humana sugerem que “é possível desenvolver uma leitura da política, da soberania e do sujeito, diferente daquela que herdamos do discurso filosófico da modernidade”.
Ele cita como um dos exemplos o que ocorre na Palestina, que considera como uma forma mais bem-sucedida de necropoder no qual o alvo do soberano são populações inteiras, “vilas e cidades sitiadas são cercadas e isoladas do mundo, a vida cotidiana é militarizada e é outorgada liberdade aos comandantes militares locais para usar seus próprios critérios sobre quando e em quem atirar”. Esta população sitiada experimenta “uma condição permanente de ‘viver na dor’: estruturas fortificadas, postos militares e bloqueios de estradas em todo lugar”.
Está presente também nas guerras com seu poder de matar e destruir, sem pensar nos ‘danos colaterais’ das ações militares. Os pilotos, por exemplo, “são convertidos em computadores quase nunca têm a chance de olhar suas vítimas no rosto e avaliar a miséria humana que têm semeado. Militares profissionais do nosso tempo não vêem cadáveres nem ferimentos. Talvez eles durmam bem; nenhuma pontada em suas consciências os manterá acordados”.
Ele se refere também aos chamados homens-bomba e indaga se há diferença entre “matar usando um helicóptero de mísseis, um tanque ou o próprio corpo”. Não há. No caso, é apenas diferente do que ocorre na guerra, na qual se quer a morte dos outros preservando a própria vida. No homem bomba, há subjacente a ideia de “mártir” e “pelo sacrifício, trazer a vida eterna ao ser”. A diferença é que ocorre, simultaneamente, homicídio e suicídio “no qual o corpo não esconde apenas uma arma: ele é transformado em arma, no sentido ‘verdadeiramente balístico’.
No processo de ocupação e colonização e escravidão na África, afirma que na visão dos colonizadores europeus era como se o continente fosse habitado por selvagens e, portanto, destituídos de humanidade, sem garantias, no qual a violência do estado era usada como se fosse a serviço da ‘civilização’, quando na realidade cometiam crimes e justificavam a exploração e os massacres.
Para Mbembe, a era do humanismo está terminando: “Isso explica a crescente posição anti-humanista que agora anda de mãos dadas com um desprezo geral pela democracia. Chamar esta fase da nossa história de fascista poderia ser enganoso, a menos que por fascismo estejamos nos referindo à normalização de um estado social da guerra”.
Como analisar o Brasil e mais especificamente o atual governo nesta perspectiva? No artigo Bolsonaro e a necropolítica, publicado no dia 12 de junho de 2019, Erick Kayser diz “Mesmo tendo um início errático, marcado por uma incapacidade política de natureza variada e generalizada no governo, um traço distintivo da presidência de Jair Bolsonaro em seus primeiros meses é a ausência de políticas que preservem a vida, que a tornem vivível. Pelo contrário, o ímpeto geral das ações do governo, especialmente daquelas diretamente promovidas pelo presidente, são de políticas que, como consequência direta ou indireta, promovem a morte”.
Em termos de necropolítica “como não mencionar suas ações contra os povos indígenas e quilombolas, de incentivo aos desmatamentos, de liberação de agrotóxicos ou seu decreto que permite a impunidade ao proprietário de terra que mate ou mande matar invasores? Os projetos do governo enviados ao Congresso também vão nesta mesma direção, como o demagógico ‘Pacote anticrime do Moro’, criando uma verdadeira licença para matar, ou ainda, de forma doidivana, num projeto para o trânsito que, caso aprovado, deverá ampliar as mortes nas estradas”.
É possível inserir também nesse cenário a liberação e escalada de agrotóxicos. Diversos estudos têm mostrado que o Brasil é um dos maiores consumidores de agrotóxicos do mundo, com um dos maiores níveis de uso de pesticidas na agricultura. Assim, uma parcela da população está sendo envenenada, silenciosamente, vítima dos malefícios causados à saúde pelo uso e ingestão de alimentos com agrotóxicos, a partir de uma política de governo.
Débora Diniz e Giselle Carino no artigo A necropolítica como regime de governo publicado no jornal El País no dia 17 de julho de 2019, utilizam o conceito de necropolítica para tratar das ameaças, especialmente às mulheres, que atuam na defesa de direitos humanos na América Latina onde “as relações de inimizade se movimentam pelo direito de matar, ‘estabelecem cortes de aceitabilidade para tirar uma vida’, instaurando os regimes de medo e precariedade”.
Uma das principais características da necropolítica é o desprezo pela vida humana que “está presente em políticas de perseguição de minorias e populações vulneráveis, de abandono e expulsão de imigrantes, de corte de recursos para a saúde, a educação e a seguridade social como ocorrem hoje em diferentes graus no Brasil, Estados Unidos, Itália e outros países onde avançam variantes da necropolítica, com líderes medíocres e autoritários invertendo mecanismos sociais que normalmente impediam o assassinato, passando agora a promovê-lo”.
Denunciam o que chama de instauração das táticas de exclusão e perseguição no funcionamento do Estado e a necropolítica como regime de governo “Quando o funcionamento do Estado escancara a necropolítica como regime de governo das populações, passamos a descrever a desordem como ‘emergência’, ‘conflito armado’ ou ‘crise humanitária’. A verdade é que as táticas de exclusão e perseguição já estavam instauradas muito antes de nomeá-las pelos vocábulos do horror”.
Para elas, “as mudanças políticas como onda conservadora, populista ou evangélica. Todas essas são táticas da necropolítica para estabelecer o corte entre o que “pode fazer viver e o que pode deixar morrer”. Quanto mais frágeis forem as populações, como as mulheres e as meninas negras, indígenas ou com deficiência, maior o desequilíbrio entre o poder da vida e da morte”.
No artigo publicado no dia 12 de maio de 2019 no jornal Folha de S. Paulo, por Jânio de Freitas A vida pública de Bolsonaro é demarcada por ideia da morte ao se referir à campanha presidencial de 2018 diz que é “impossível esquecer um candidato cujo simbolismo era a pose de mocinho ou de bandido com a mímica de pistoleiro. Por escolha sua, de prazer aberto no rosto, sem distinguir lugares e ocasiões. Nas palavras, de variação muito limitada, sempre a difusão das armas letais, a validade da morte alheia a pretexto de defesa, a promessa prioritária de armar os civis. Programa para saúde, educação, retomada do crescimento, emprego-nada, isso seria programa para vida”.
Para Jânio de Freitas “A vida pública de Jair Bolsonaro é demarcada por uma ideia persistente: a morte. Alheia. Provocada. Não importa de quem. Iniciante na carreira militar, sua estreia no noticiário se deu pela maneira como pensou em elevar os vencimentos dos tenentes. Não com um manifesto, greve, um movimento de solidariedade civil. Sua atitude foi ameaçar de explosão o abastecimento de água do Rio e de explodir quartéis, caso não saísse o aumento”.
E afirma que ele, sempre apoiado pelo mesmo segmento eleitoral, “em Brasília ligou-se à bancada da bala e aos ruralistas. E deu continuidade ao uso da tribuna para a apologia dos crimes de morte da ditadura, torturadores, policiais degenerados e operações de extermínio. A relação dos Bolsonaros com milicianos estava aí anunciada. Questões como saúde e educação nunca o interessaram. Já a tomada de terras indígenas, o morticínio de tribos por grileiros, madeireiros e policiais, a expulsão de favelados não deixaram de o animar: contra as vítimas, sempre na defesa da violência. A letal, sobretudo. Trinta anos de vida mansa, egocêntrica, desumana em muitos sentidos”.
Talvez não possa ser considerado como “regime de governo” nos termos utilizados por Débora Diniz e Giselle Carine, mas determinados regimes criam as condições propícias para a necropolítica.
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Homero de Oliveira Costa é Professor Titular (Ciência Política) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Homero de Oliveira Costa