O conhecimento tradicional pode ser utilizado na construção de pontes entre a comunidade científica e as pessoas responsáveis pelas tomadas de decisões
Como lidar com a estação chuvosa, a qual é responsável por inundações e, logo em seguida, com longos períodos de seca? Tudo isso tendo que fornecer água para milhões de habitantes, para a indústria, para a criação de animais e para a agricultura? Situações como essa bem que poderiam se aplicar ao Nordeste brasileiro, mas isso é claro, nos anos de ótimo inverno. Mas, na verdade, trata-se da região costeira do Peru, entre o Oceano Pacífico e a Cordilheira dos Andes, a qual depende das águas superficiais que descem dos Andes, já que a chuva raramente cai nas planícies desérticas dessa região.
A solução para esse problema ainda não é conhecida, mas um estudo recente, publicado na revista Nature Sustainability, lança luz sobre uma das possíveis soluções para essa questão: a construção de canais para a captação, desvio e retardamento do percurso do excesso de água da chuva para armazenamento no subsolo. A engenhosidade dos trabalhos das antigas civilizações pré-incas, como a dos povos indígenas do Peru, assemelha-se às grandes obras da engenharia moderna. Tamanhas eram a habilidade e a criatividade desses povos, que ainda hoje muitos preferem não atribuir tais feitos aos “engenheiros” daquela época. O memorável escritor Eduardo Galeano, em As Veias Abertas da América Latina, descreve-os citando alguns desses feitos de elevada grandeza, como os monumentos religiosos que nada devem às pirâmides egípcias; os eficazes inventos técnicos para enfrentar as secas; e os objetos de arte que revelam um invicto talento. Mesmo assim, ainda hoje muitos preferem associar tais feitos aos seres, até agora nunca avistados, de outros planetas.
Nesse estudo, os autores avaliaram que esse sistema de aumento de infiltração da água da chuva, utilizado há 1.400 anos, desvia a água dos córregos das cabeceiras para as encostas das montanhas durante a estação chuvosa com o intuito de aumentar o acúmulo e a longevidade das águas das nascentes naturais dos declives. Os autores puderam constatar que a água infiltrada é retida por uma média de 45 dias antes de retornar à superfície, o que confirma a capacidade desse sistema de contribuir com o aumento da vazão, mesmo durante a estação seca, postergando, assim, um pouco do seu deficit hídrico. Em suma, essa estratégia ajuda a economizar e a canalizar a água durante a estação chuvosa para utilizá-la quando é mais escassa, na estação seca. Durante a avaliação e medição da eficiência desses canais, os autores utilizaram corantes como marcadores e monitoramento hidrológico.
É interessante observar que apesar da existência de registros históricos dessas civilizações na utilização de técnicas para enfrentar as secas, há escassez de evidências científicas sobre essas possíveis contribuições hidrológicas de captação, o que valoriza os achados publicados nesse estudo. Além disso, as tecnologias que visam aumentar a segurança hídrica tem ganhado atenção especial, tanto em função da demanda de consumo crescente, como é o caso da cidade peruana de Lima, quanto devido aos extremos climáticos frequentes.
Carlo leitor, permita-me agora traçar um paralelo do momento atual com a questão do conhecimento tradicional associado aos povos indígenas. A nossa época presencia, a passos largos, um fenômeno recorrente: a naturalização dos absurdos. A narrativa em torno desse fenômeno foi usada com maestria contra os povos tradicionais, que historicamente sempre tentaram resistir às duras intempéries impostas contra si. Mas esse fenômeno não teve como alvo apenas os povos tupiniquins, os quais, inclusive, travam uma dura batalha quanto às questões da saúde indígena e da demarcação de terras neste ano de 2019. Talvez, a América Latina, com a diversidade de povos indígenas que abriga, seja o modelo mais emblemático desse fenômeno.
Por outro lado, o estudo publicado na Nature Sustainability, adverte-nos quanto à necessidade de desconstruir essas narrativas, bem como da importância da valorização e da compreensão do conhecimento desses povos, os quais podem ser utilizados “na construção de pontes” entre a comunidade científica e as pessoas responsáveis pelas tomadas de decisões. Afinal, temos muito que aprender com as soluções criativas dos nossos ancestrais, como essa de quase 1500 anos, exemplificada no artigo. Atentar e cuidar das nascentes dos nossos rios é uma condição preemente quando se pensa em segurança hídrica.
Por tudo isso, a dessalinização, tão propagada recentemente como “nova e única solução” para a crise hídrica no nordeste brasileiro, deve, na verdade, ser integrada a outras práticas já bem sucedidas, incluindo aquelas da engenharia tradicional, passando pela recarga e conservação das nascentes. Às vezes, soluções rápidas, eficientes e de baixo custo não precisam ser importadas do outro lado do mundo. Claro que se for necessário, por que não utilizá-las? Por outro lado, pode ser que a solução seja local e esteja logo ali. Pode, inclusive, ser bastante antiga, isto é, pode vir dos povos tradicionais, os quais merecem ser tratados com respeito e dignidade, como guardiões de um conhecimento que nos é muito pertinente, mas, muitas vezes, desconhecido. Por fim, o conhecimento tradicional não se confunde com a glorificação da ignorância, na verdade, antagoniza-a.
Referências bibliográficas:
Júlio Postigo. Bridging past and future to address water stress. Nature Sustainability volume 2, pages543–544 (2019)
Boris F. Ochoa-Tocachi et al. 2019. Potential contributions of pre-Inca infiltration infrastructure to Andean water security. Nature Sustainability volume 2, pages 584–593 (2019).
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Thiago Jucá é biólogo, doutor em Bioquímica de Plantas e empregado da Petrobrás.
Thiago Jucá
Concordo plenamente e vejo que a captação de água de chuva é uma saída às águas poluídas quimicamente, que os tratamentos comuns não tiram, como antibióticos e hormônios. Quando vejo os caminhos criados para juntar água em Petra, as cisternas com torres de vento, vejo que temos muito que aprender e usar.