Imagens recentes sobre a temporada de alpinismo rumo ao cume do Everest têm muito a dizer sobre a relação das pessoas com a natureza
No final do mês de maio de 2019 circulou uma fotografia na internet que, pela improbabilidade do que estava a se mostrar, levava-nos a acreditar se tratar de uma imagem manipulada. Surpreendentemente, a cena era real. Tratava-se de um congestionamento de alpinistas rumo ao cume do Everest, a quase 9 mil metros de altura.
Outra imagem quase tão impactante quanto a anterior foi a que mostrou a imensa quantidade de lixo deixado na montanha após o término da temporada de escaladas desse ano. Não deve ser fácil para os nepaleses removerem tanto lixo da “lixeira mais alta do mundo”, como ficou conhecido o ponto mais elevado da cadeia de montanhas dos Himalaias após a foto viralizar nas redes sociais.
Somos quase 8 bilhões de pessoas com diferentes sonhos, relações sociais, habilidades, perspectivas e necessidades. Alcançar o cume do Everest, certamente, é um dos desejos que permeiam o imaginário de boa parte da humanidade. Todas essas diferenças que caracterizam as sociedades humanas moldaram, ao longo da história da vida humana na Terra, o ambiente no qual estamos inseridos. Hoje, já não restam dúvidas, as mudanças em curso não têm precedentes.
Tais mudanças são geralmente atribuídas à nossa aparente “posição dominante” em relação às demais espécies. Diversas áreas do conhecimento humano, inclusive, buscam entender os fatores que nos levaram a reivindicar tal status. A capacidade de correr riscos provavelmente é uma delas. Tal capacidade, por sua vez, insere-se num intricado sinergismo que engloba desde questões bioquímicas, com a participação de “personagens” como os hormônios adrenalina e dopamina, até a interação social visando o benefício do grupo. Uma das letras do grupo musical Titãs que diz que “a gente não quer só comida, diversão e arte” poderia exemplificar essa questão. Bastaria adaptá-la para “a gente não quer só um estilo de vida moderno e abundante em recursos, a gente quer correr riscos também”. Além disso, talvez queiramos o “melhor” que o planeta tem a oferecer-nos.
Mas a questão não se endereça aos riscos e nem às mortes relacionadas à temporada de escalada de 2019. Olhando para a imagem dos alpinistas no cume do Everest parece até que o gigante selvagem encolheu. Olhando para o lixo deixado parece até que a Bela se tornou uma Fera, de tão feia. Pensando nisso, cai como uma luva o editorial publicado na revista Science, no final do mês de junho de 2019, e intitulado, em tradução livre, “Compartilhando a terra entre a natureza e as pessoas”.
O editorial adverte que administrar a Terra em direção a um futuro melhor não é um apelo ao fim do desenvolvimento, mas sim um chamado para se desenvolver melhor. E tal desenvolvimento, pontua o texto, exige um desafio coletivo por meio de um novo nível de engajamento social na conservação. O autor desse texto alega, contudo, que cultivar e disseminar as aspirações de conservação não serão suficientes, a menos que também se levem em consideração as ações efetivas de conservação que não sobrecarreguem injustamente as pessoas mais vulneráveis da Terra, daí o seu apelo ao engajamento social.
Há poucos dias também foi publicado na revista Science outro artigo intitulado “Aceleração da perda de gelo nos Himalaias nos últimos 40 anos”, em tradução livre. Este texto adverte sobre a importância das geleiras dos Himalaias no fornecimento de água derretida para os rios da região que, por sua vez, fornecem água para áreas densamente povoadas no sul da Ásia. Portanto, o compartilhamento da Terra entre a natureza e as pessoas é uma condição premente e imprescindível também para o futuro do mundo não-humano, já que muitos insistem em usufruir deste planeta como se ele fosse exclusivamente nosso, ou melhor, estivesse a nosso dispor.
Para finalizar, voltemos às duas imagens anteriormente citadas. Aquela que mostra um congestionamento de alpinistas rumo ao cume do Everest não diz nada acerca da aparente “posição dominante” da espécie humana em relação às demais. Já a imagem da “lixeira mais alta do mundo” diz muito sobre o longevo legado da história humana sobre a Terra, inclusive sobre a nossa tolice de querer impor ordem ao Cosmos.
Referências bibliográficas
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Thiago Jucá é biólogo, doutor em Bioquímica de Plantas e empregado da Petrobrás.
Thiago Jucá
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