O esgoto − algo sempre visto como repugnante e sujo − pode nos dizer muito sobre nós mesmos
Não é preciso ser um expert, apenas um pouco intuitivo, para imaginar que grande parte daquilo que entra no corpo humano sai na urina, mesmo após a metabolização incompleta. A urina escorre pelos ralos ou entra nos vasos sanitários, desagua nos esgotos e, por vezes, chega ao meio ambiente. Sob essa perspectiva, pontua John Carey, as águas residuais podem vir a se tornar uma fonte valiosa de informações sobre o uso de drogas, a resistência aos antibióticos e a saúde geral das pessoas. Parte daí a iniciativa do governo canadense de monitorar as águas residuais de cidades como Vancouver, Montreal, Edmonton, Toronto e Halifax.
Esse monitoramento faz lembrar as pesquisas selecionadas para participar do Ig Nobel, as quais te fazem rir e depois pensar (Ig Nobel, a ciência do absurdo?). É possível, por exemplo, ter uma ideia do que as pessoas estão consumindo, quando, onde, isto é, os seus comportamentos. Abrem-se muitas perspectivas a partir desse monitoramento, como uma possível relação entre o consumo de drogas lícitas e ilícitas, quanto ao uso dos antibióticos, de opiáceos e das mais diversas drogas e produtos químicos que as pessoas ingerem, e até o perfil dos micróbios que habitam o intestino humano em cada bairro. Esses dados podem, inclusive, ajudar a criar perfis dos indivíduos de acordo com a localidade em que moram, já pensou?
Por outro lado, adverte o autor, não é difícil imaginar o possível potencial que esses esgotos têm de “alimentar” e, portanto, contribuir com o aumento da resistência aos antibióticos. Por isso, surge uma pergunta premente: será que os esgotos estão alimentando a disseminação da resistência aos antibióticos? Segundo os especialistas apontados pelo autor no texto, as condições predominantes nesses esgotos como a presença de biofilmes, o estresse ambiental decorrente das oscilações de pH e temperatura e a lise bacteriana podem favorecer a transferência de genes entre os microrganismos, facilitando desta maneira a resistência destes. Acende-se, assim, outro sinal de alerta quanto ao controle de uso de antibióticos não apenas em clínicas, hospitais e na agropecuária. Por fim, o autor aborda outra questão interessante, igualmente preocupante e complexa: o uso crescente das águas residuais tratadas e que são utilizadas de maneira cada vez mais frequente para a irrigação, recarga de aquíferos ou mesmo para o abastecimento de água potável.
Nos próximos anos, presumivelmente, os conteúdos dos esgotos estarão associados às identidades dos bairros e municípios de uma região. A confirmação da presença de diversas substâncias como morfina, codeína, fentanil, cafeína e seus metabólitos, por exemplo, apontam para esse caminho. Imaginem, agora, as diferenças nos conteúdos dos esgotos de cidades como Nova York, São Paulo, Fortaleza e Natal? E ao que tudo indica, essas identidades dirão muito sobre as políticas de saúde pública a serem implementadas.
O esgoto − algo sempre visto como repugnante, sujo, sinônimo do que não presta e do que deve ser descartado − pode nos dizer muito sobre nós mesmos, inclusive sobre a imbecilidade reinante no nosso país.
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Leia o texto anterior: O submundo esgoto – parte 1
Thiago Jucá é biólogo, doutor em Bioquímica de Plantas e empregado da Petrobrás.
Thiago Jucá
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