Artigo do biomédico e empreendedor social pernambucano, Onicio B. Leal Neto, para o Nossa Ciência
As arboviroses são aquelas doenças que tem como vetor ou agente de transmissão artrópodes, como mosquitos por exemplo. Muitas destas arboviroses já são conhecidas por nós como a Dengue, a Zika ou a Chikungunya. Deixando de lado a crise de identidade de gênero (se “a”dengue ou“o”Zika) o que realmente importa são os danos que estas doenças tem causado de maneira histórica à população brasileira.
O vírus da Dengue é sabidamente reemergente, onde no início do século já se fazia endêmico em algumas partes do país. Entretanto com a inviabilidade do hospedeiro intermediário (os mosquitos) naquele momento, acabou existindo um controle parcial no qual este mal só veio a trazer novos danos à população nos anos 80.
Há pelo menos 20 anos a Dengue tem sido uma pauta constante na mídia estando presente nos documentários e na mente das pessoas, não sendo proporcional a diminuição de casos. Pouco antes da Copa do Mundo em 2014, um buzz existia sobre a nova companhia para o vírus da Dengue que estaria sob risco eminente de sua entrada no Brasil: o Chikungunya. Mesmo sendo menos letal que o primeiro, a morbidade do CHIK trazia novos problemas para a saúde pública, deixando por vários dias de seus postos de trabalhos ou atividades do cotidiano diversas pessoas acometidas por mais esse desafiador elemento no universo das doenças tropicais.
Para completar o rol de problemas da saúde coletiva no componente dessas arboviroses que já estávamos acostumados a não saber lidar, o vírus Zika (apesar de introduzido em meados de 2013) acabou trazendo ano passado todo o seu papel midiático enquanto novo inimigo da saúde dos brasileiros, com um agravante digno de futuro catastrófico: a projeção de gerações sequeladas por microcefalia.
Dada a gravidade desta nova paisagem epidemiológica no Brasil, vários setores, além-saúde, começaram a se preocupar numa força-tarefa de encontrar/desenvolver/refinar o arsenal tecnológico para combate a este risco que poderia postergar planos de muitas famílias em terem filhos pelos próximos anos. O único problema foi o setor de Tecnologia, Informação e Comunicação achar as ideias que estavam tendo naquele momento seriam inéditas e que ninguém na área de epidemiologia (ciência que estuda os determinantes de saúde) ou vigilância em saúde havia pensado.
Para contextualizar, desde 1996 iniciativas da chamada Detecção Digital de Doenças (DDD), capitaneados por epidemiologistas e cientistas de dados começaram a desenvolver mecanismos para conectar pessoas sobre situações epidemiológicas ao redor do mundo. Um dos grandes exemplos foi o Promed-Mail, plataforma semelhante a um feed de notícias sobre saúde que garantia o envio para um grande mailing list, disseminando a informação da maneira mais rápida que os tempos de início da internet permitiam. Obviamente que naquele momento isso parecia de uma sofisticação tremenda, entretanto anos mais tarde e com a evolução da “sociedade digital” a área de DDD começou a ganhar novos elementos em seu acervo “bélico” nesta guerra contra as epidemias.
Com o surgimento das redes sociais, blogs e cultura wiki disseminada pelos fóruns, uma oportunidade de olhar para essa massa de textos e palavras ascendeu diante dos mesmos epidemiologistas que estavam no início do movimento de DDD. Desde então cientistas como Gunther Eysenbach do Centre Global for eHealth Innovation iniciaram um desenvolvimento de ferramentas que utilizassem o crowdsourcing (produção coletiva de informação) voltados para identificação oportuna de ameaças em saúde. Daí surgiram plataformas como InfluenzaNet, Flutracking, Flu Near You, Salud Boricua, Saúde Na Copa, Guardiões da Saúde, Doctor Me, dentre outras, que faziam ou fazem na sua essência o que os sistemas tradicionais de saúde não conseguem: detectar de maneira antecipada o risco da ocorrência de surtos ou epidemias num determinado local.
Todo esse conhecimento já existia desde as primeiras preocupações do Brasil com o Chikungunya, mas apenas depois que o Zika e a Microcefalia começaram a apontar suas vítimas, essa mobilização foi iniciada de maneira mais evidente por vários setores da sociedade. Neste momento da epidemia de Zika, começava a co-existir uma outra – pitoresca – epidemia: a de apps.
Até hoje, nas lojas virtuais para aplicativos, você, caro leitor, pode encontrar diversos aplicativos, que em resumo permitem ao usuário fotografar criadouros ou focos de mosquito, enviando para um servidor web onde estas informações são dispostas num mapa de distribuição de locais que armazenam vetores destas arboviroses. Por um lado os pesquisadores que iniciaram esse movimento mencionado acima estão bem felizes, reconhecendo que a mentalidade do crowdsourcing encontrou produtores de plataformas que favoreceram a capilaridade do método.
Por outro, os mesmos pesquisadores se reviram a noite com pesadelos sobre quem olhará os dados. Quem irá interpretar os dados? Ora, não basta apenas desenvolver um aplicativo. Muito menos realizar coletas de dados sem parâmetros metodológicos. Ou pior, iniciar uma saturação na caixa de e-mails ou telefonemas dos setores de vigilância ambiental ou epidemiológica dos estados e municípios que mal dão conta de suas atividades basais.
Será então que houve um exagero do altruísmo em querer convergir expertises técnicas na criação da ferramenta mágica? Acho que não. Pelo contrário, acho muito saudável desenvolvedores, programadores, pessoas das TICs que antes estavam focadas em desenvolver soluções computacionais para problemas pouco relevantes na sociedade, estarem olhando neste exato momento para dificuldades substanciais de gerações futuras.
O problema é que tentaram entender o complexo saúde-doença como uma abordagem simplista, de única causalidade. E não é assim que a banda toca. Aqui o foco não é a discussão das inúmeras dimensões que a compressão do modelo saúde-doença possui, mas sim trazer o enfoque na problemática atual de falta de semântica dos “novos altruístas”. De que vale o desenvolvimento de aplicativos para coleta de dados sem a capacidade da transformação destes dados em informações relevantes? Onde está o “Data to Action” tão comentado nos ambientes acadêmicos do Data Science?
Sou um grande defensor das inovações (principalmente das disruptivas) na saúde. Sou militante inclusive da utilização dos modelos de crowdsourcing para detectar epidemias de maneira oportuna, mas para a utilização de maneira minimamente inteligente destes tipos de abordagem, não será só o conhecimento em linguagens de programação que irá prevalecer. Tampouco o tradicionalismo da área da saúde onde muitas vezes nas esferas públicas ainda utilizam instrumentos computacionais do início da era digital.
Não há competição. Não há segregação de áreas. O que precisamos é sermos seres híbridos. Termos dominação de igual equilíbrio entre TICs e Saúde. Por isso que fundamos a Epitrack, lá em 2013, para tentar resolver esse gap entre os avanços computacionais com a base da área da saúde pública, mais precisamente da Epidemiologia. E temos feito isso com o compromisso em envolver experts da computação com experts em mesmo grau da saúde pública, criando e aprimorando novas formas de combater doenças. Para concluir, há lados bom e ruim nesta co-epidemia dos aplicativos a qual batiza o texto. Se conseguirmos aprimorar o lado bom, teremos o que possivelmente será o início de uma nova onda de inovação na saúde pública.
Onicio B. Leal Neto é biomédico, epidemiologista, especialista em Saúde Coletiva, mestre em Saúde Pública e empreendedor social. Fundou o Centro de Informações Estratégicas de Recife, foi consultor da Organização Panamericana da Saúde e co-fundou a Epitrack, startup na área de HealthTech especializada em combater epidemias, da qual atualmente é o diretor executivo.
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