O fruto proibido Coluna do Jucá

quinta-feira, 13 junho 2019

A questão da Cannabis não se limita à Segurança Pública, mas às diversas áreas do conhecimento humano, dentre elas a Ciência

A Folha de São Paulo lançou editorial, na última segunda-feira (11/06), intitulado Maconha com Ciência. O editorial considera como prementes e positivas as pretensões da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) de dar início ao debate sobre a regulamentação do uso da maconha para fins medicinais no país. Segundo os editores, a agência federal discute a possibilidade de submissão à consulta pública de duas propostas de resolução, quais sejam: plantio da Cannabis para a pesquisa e produção de medicamentos, e regras para o registro e controle dos produtos oriundos dessa produção.

A despeito do conhecimento científico crescente sobre os efeitos terapêuticos da maconha, bem como de seus inúmeros princípios ativos, em especial o canabidiol (CBD) e o delta-9-tetra-hidrocanabidiol (THC), a discussão acerca dessa planta é permeada por muito preconceito, além de questões, muitas vezes, estritamente ideológicas. Obviamente, não se trata, “apenas”, de ser contra ou a favor. Para muito além dessa simplificação, trata-se de uma questão complexa e, para tal, não se limita apenas à Segurança Pública, mas também ao Direito, à Política, à Saúde Pública, à Psicologia, à Economia (Mercado), à Assistência Social e à Ciência. Na verdade, essa lista não se limita “aos personagens” citados, ou seja, é bem mais extensa, haja vista o contexto no qual esse assunto se insere: o social. Por isso, fica a critério do leitor estendê-la ou não. Por outro lado, ao não encarar esse assunto com a lucidez que o mesmo exige, engavetando-o ou inserindo-o em uma discussão estritamente preconceituosa e ideológica, acaba-se criminalizando-o antes mesmo de decidir, por exemplo, pela descriminalização da Cannabis quanto ao seu uso terapêutico ou não, quanto ao consumo próprio ou não, ao seu porte ou não, ao seu cultivo ou não. Isto é, perde-se a oportunidade de pavimentar a estrada que muitos chamam de progresso, referindo-se aqui, especificamente, às implicações terapêuticas, que avançam a passos largos em outras nações.

Evidências químicas da presença de algumas substâncias psicotrópicas (bufotenina, dimetiltriptamina, harmina e cocaína) de plantas foram encontradas em artefatos arqueológicos datados com mais de 1000 anos, localizados num abrigo rochoso em Lípez Altiplano, no sudoeste da Bolívia. Miller et al 2019, PNAS.

A prova dessa falta de lucidez é que esse assunto já ocupou parte do noticiário nacional em 2019 sem, contudo, ser alvo do “bom combate”, aquele no campo das ideias, do bom senso, da lucidez, das estatísticas, da saúde pública, do bem-estar social, do Direito e, no nosso caso, da Ciência. Desse modo, o debate estéril acaba por prevalecer, infelizmente. No mais, discutir a política de drogas no Brasil limita-se, muitas vezes, a se ater passivamente ao noticiário: seja à Marcha da Maconha, seja ao Projeto de Lei 37/2013, transformado em lei (13.840) no dia 5 de junho de 2019 e que aumenta as possibilidades de internação involuntária de usuário de drogas, seja à falta de divulgação do 3° Levantamento Nacional sobre o Uso de Drogas pela População Brasileira, realizado pela renomada e prestigiada Fiocruz — seja, enfim, ao próximo episódio que ainda não veio à tona sobre esse assunto.

Enquanto não surge o próximo noticiário, gostaria de me ater ao estudo publicado na renomada e prestigiada revista científica americana Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS). Os pesquisadores encontraram evidências químicas da presença de algumas substâncias psicotrópicas (bufotenina, dimetiltriptamina, harmina e cocaína) de plantas em artefatos arqueológicos datados de mais de mil anos, localizados num abrigo rochoso em Lípez Altiplano, no sudoeste da Bolívia, e utilizados em rituais xamânicos, isto é, práticas religiosas de povos ancestrais, as quais envolvem cura e transe, por exemplo. Ainda de acordo com o artigo, esse local está a uma altitude de 3.900 metros acima do nível do mar e contém evidências de ocupações humanas durante os últimos 4 mil anos. Os autores ressaltam que a importância desse estudo reside, entre outras coisas, no fato de que o mesmo aprofunda o conhecimento botânico sobre as propriedades curativas e psicoativas de algumas espécies de plantas nativas da América do Sul, bem como sobre práticas rituais consideradas bem estabelecidas e difundidas entre os povos pré-colombianos da época. Além disso, chamou atenção dos pesquisadores, o fato de as substâncias encontradas serem oriundas de plantas que não são nativas do Altiplano boliviano. Isso sugere o transporte dessas espécies vegetais entre longas distâncias, o que reforça possível prestígio social na adoção e prática desses rituais xamânicos.

Resumo da ópera: as evidências químicas sugerem que “os especialistas” daquela época eram muito bons em fazer preparações psicoativas com múltiplas espécies vegetais. A pergunta que fica então para o caro leitor é: será que os povos daquela época eram tão bons na alquimia psicoativa, como muitos de nós somos na capacidade de criminalizar quem pensa diferente, o que dificulta, por exemplo, um debate sério sobre a Cannabis? Por fim, debate sério não é sinônimo de apologia.

Referências bibliográficas

Miller et al., 2019. Chemical evidence for the use of multiple psychotropic plants in a 1,000-year-old ritual bundle from South America. | www.pnas.org/cgi/doi/10.1073/pnas.1902174116

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Thiago Jucá é biólogo, doutor em Bioquímica de Plantas e empregado da Petrobrás.

Thiago Jucá

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