A ciência como uma voz política diante das doenças negligenciadas – Parte 2 Coluna do Jucá

quinta-feira, 30 maio 2019
Antídotos antivenenos de cobras são produzidos ao injetá-los em grandes animais, como cavalos. Fonte: Credit: Werner Rudhart/VISUM/eyevine

Despercebido até entre especialistas, o envenenamento por serpentes também é reconhecido pela OMS como doença negligenciada

Um fato curioso é que quando se usa o termo “doenças negligenciadas”, normalmente vêm à tona na mente de muitas pessoas leishmaniose, raiva, esquistossomose, tripanossomíase humana africana, cisticercose, doença de chagas e outras. Certíssimo! Porém, uma doença negligenciada que poucos imaginam e que passa despercebida até entre especialistas é o envenenamento por serpentes. Atualmente são conhecidas mais de 3.000 espécies de cobras no planeta, as quais se distribuem por quase todos os lugares, exceto na Antártica, Islândia, Irlanda, Groenlândia e Nova Zelândia. Das cerca de 600 espécies venenosas, estima-se que 200 são capazes de matar ou ferir gravemente o homem.

Para ser ter uma ideia da gravidade do problema, a OMS estima que entre 81.000 e 138.000 pessoas morrem anualmente, e, que a cada 5 minutos, 50 pessoas são picadas. Ademais, estima-se que 400.000 pessoas sofrem invalidez permanente a cada ano, como nos casos em que há amputação. Diante disso, a própria OMS reconheceu esse negligenciamento e voltou a categorizar os acidentes ofídicos com tal status em 2017. Semana passada, inclusive, essa organização divulgou uma série de estratégias para reduzir pela metade a mortalidade por picadas de cobras até 2030.

Estatísticas da instituição Welcome Trust sobre envenenamentos de cobras no mundo. Fonte: Welcome Trust.

Diante desse cenário global, a Wellcome Trust, uma instituição de caridade que financia pesquisas na área biomédica, anunciou no último 16 de maio uma iniciativa ambiciosa cujo intuito é a melhoria dos tratamentos contra acidentes ofídicos em países pobres por meio de um programa de financiamento de alguns milhões de dólares. A importância dessa iniciativa é tamanha que a mesma virou assunto nos editoriais de prestigiadas revistas científicas como Science e Nature, além de importantes jornais espalhados pelo mundo, como o inglês The Guardian.

A instituição justifica que nos principais locais de ocorrência de acidentes com cobras, os antivenenos são escassos, e, mesmo quando hospitais os possuem, eles são ineficazes contra as espécies de cobras locais. Esse fato só reforça a constatação de que existem antivenenos para apenas uma parcela das cobras capazes de matar ou ferir gravemente o homem. Portanto, é premente a busca por novas drogas para picada de cobra. A instituição ressalta ainda que o tratamento atual, desenvolvido há mais de 100 anos e que consiste na injeção do veneno de cobra em cavalo para colher os anticorpos produzidos, embora ainda seja a melhor opção, é muito caro, pode não funcionar e ainda causar reações alérgicas letais.

Mordidas de cobras venenosas como a mamba (Dendroaspis jamesoni) são uma crise de saúde pública.

Por enquanto pode soar como ficção científica, mas por que não imaginar que iniciativas como essa vão permitir aos pesquisadores encontrar substâncias que neutralizem toxinas do veneno de uma grande variedade de cobras e que possam ser ministrados em campo, logo após uma mordida? Quem sabe! Quem sabe num futuro logo ali, os envenenamentos por serpentes perderão o status de negligenciado? Quem sabe os mais vulneráveis, as crianças, um dia poderão correr e brincar livremente pelos terreiros sabendo que uma picada de cobra não lhe custará nem a vida nem a amputação de um membro? Quem sabe essas mesmas crianças crescerão compreendendo que as serpentes são animais incríveis, apesar de intimidadores, e que podem fornecer substâncias para a cura e o tratamento de inúmeras doenças, inclusive aquelas consideradas negligenciadas e que, portanto, devem ser preservadas? Quem sabe o captopril não seja apenas mais uma cereja do bolo, dentre centenas que estão por surgir? Quem sabe!

Referências

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Leia o texto anterior: A ciência como uma voz política diante das doenças negligenciadas – Parte 1

Thiago Jucá é biólogo, doutor em Bioquímica de Plantas e empregado da Petrobrás.

Thiago Jucá

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