Escravidão moderna são situações que vilipendiam a dignidade do trabalhador e são o extremo oposto do trabalho digno ou decente
As formas históricas de escravidão, com cerceamento à liberdade por meio de grilhões e feitores, quase desapareceram no mundo contemporâneo. Mas, com outras ambientações, não menos violentas, condições análogas às do trabalho escravo subsistem e constituem um elo importante nas cadeias produtivas da economia capitalista do século 21.
Silvio Beltramelli Neto, professor titular da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas) e integrante do Ministério Público do Trabalho (MPT), apontou os quatro traços que, isoladamente ou em conjunto, definem o trabalho escravo contemporâneo.
“Quando falamos de trabalho escravo contemporâneo estamos nos referindo a situações que vilipendiam a dignidade e são o extremo oposto do trabalho digno ou decente. Segundo a norma internacional, o trabalho escravo caracteriza-se pelo exercício do poder de propriedade de uma pessoa sobre outra. Mas, no Brasil, temos uma legislação mais detalhada, que consta do artigo 149 do Código Penal. Ela considera quatro situações que configuram o crime de reduzir alguém a condição análoga à escravidão: o trabalho forçado, que limita o direito de ir e vir; as jornadas habituais extenuantes, excedendo o limite de 10 horas diárias estabelecido pela legislação; o trabalho degradante, que submete a pessoa a altos riscos para a saúde e a segurança; e a servidão por dívida”, disse Beltramelli à Agência FAPESP.
“Seja em ambientes urbanos, ligados ao setor têxtil, por exemplo, ou em ambientes rurais, ligados à agropecuária, as jornadas extenuantes muitas vezes se associam a condições de trabalho absolutamente degradantes, em instalações precárias, com altos riscos de incêndio ou desabamento, sem água potável, sem banheiros, sem fornecimento de alimentação, sem proteção contra intempéries e assim por diante”, disse.
Crises capitalistas
Beltramelli lembrou que o modo de produção e o modelo de sociedade baseados na economia capitalista passaram por importantes reestruturações após grandes crises, como a de 1929, a dos anos 1970 e a de 2008.
Assim, foram adotados, sucessivamente, o modelo fordista, com a produção em massa baseada na linha de montagem; o modelo toyotista, com a produção sob demanda e a diversificação dos produtos oferecidos pela empresa, baseadas na maior qualificação dos trabalhadores e na automação de várias etapas do processo produtivo; e, agora, a chamada uberização do trabalho, com a prestação de serviços sob demanda por trabalhadores autônomos, intermediada por grandes empresas detentoras de aplicativos digitais.
“A escravidão sobreviveu e se reinventou a cada reestruturação do capitalismo. As condições análogas às do trabalho escravo sempre estiveram presentes. Foram denunciadas e combatidas, mas não eliminadas. Porque nenhuma dessas reestruturações do capitalismo trouxe uma redução das desigualdades sociais. E a escravidão encontra terreno fértil exatamente nas desigualdades e em sua intensificação”, disse.
Por isso, segundo Beltramelli, os trabalhadores migrantes, do próprio país ou estrangeiros, são os mais vulneráveis às formas contemporâneas de escravidão.
“O artigo 149 do Código Penal, que data de 1940, foi alterado em 2003. Ele tinha uma enunciação genérica e passou a ter uma enunciação muito mais detalhada, tipificando as quatro modalidades mencionadas: trabalho forçado, jornada extenuante, trabalho degradante e servidão por dívida. A partir daí, o Brasil deu um passo à frente em relação ao padrão internacional, tornando-se uma referência, que foi reconhecida pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) e pela Organização das Nações Unidas (ONU). E, com as políticas públicas adotadas a partir das novas normas, o país tornou-se também uma referência em termos de combate à escravidão contemporânea, com número crescente de resgates”, disse.
“No entanto, temos hoje uma situação de ameaça, tanto em relação à referência normativa, com projetos de lei em tramitação no Congresso que tentam reverter a mudança do Código Penal realizada em 2003, quanto em relação às políticas públicas, com a extinção do Ministério do Trabalho e com a diminuição das ações dos grupos móveis de resgate, principalmente pelo contingenciamento de orçamento”, disse Beltramelli.
(Fonte: José Tadeu Arantes | Agência FAPESP)
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