Com que roupa eu vou? Biologia do Envolvimento

sexta-feira, 10 maio 2019
Embriões de salamandras de Hynobius retardatus

O professor Eduardo Sequerra explica os polifenismos e usa como exemplo as diversas alterações no desenvolvimento das larvas de anfíbios

“…Com que roupa que eu vou
Pro samba que você me convidou?
Eu hoje estou pulando como sapo
Pra ver se escapo desta praga de urubu…”
(Noel Rosa)

Nós sabemos que os organismos tem diversas modificações que são selecionadas pelo ambiente onde vivem. Mas quando o ambiente varia drasticamente regularmente estes podem ter diversos caminhos de desenvolvimento selecionados que são disparados nas diferentes situações, os chamados polifenismos. Para ilustrar esse fenômeno, escolhi falar das larvas de anfíbios que apresentam diversas alterações no seu desenvolvimento induzidas pelo ambiente. Os embriões de salamandras de Hynobius retardatus podem ou não dar origem a um girino com uma cabeça maior que as facilita para terem hábitos carnívoros. E esse Noel Rosa dos anfíbios muda de roupa de acordo com o samba. Acontece que os girinos desta espécie vivem em poças aonde estão outros girinos de outros anfíbios além de seus co-específicos. Quando a densidade destes girinos aumenta, seja por mais animais ou por menos água na poça, os embriões de H retardatus geram mais girinos carnívoros, canibais inclusive. Mas como os embriões sentem a densidade populacional ao redor? Michimae e colaboradores (2205)  mostraram que a vibração das nadadeiras dos girinos ao redor dos embriões induz a formação de girinos cabeçudos carnívoros. E esse fenótipo pode ser induzido inclusive com o bater de nadadeiras falsas feitas de vinil. Assim, da mesma maneira que os fenótipos nesta espécie foram selecionados, também a sensibilidade a alterações ambientais sofreu seleção.

Girinos da rã Rana Pirica

Essa coisa de mudar a cabeça é pra quando a festa tá boa mas às vezes a coisa pode ficar feia pro lado dos girinos dessa salamandra. Acontece que lá no Japão, nas poças aonde estes caras ficam, também tem uma larva de libélula que acha esses girinos bem apetitosos. Mas o grande lance é que as larvas de libélula tão do lado de fora d’água e ai quando tem muitas destas predadoras por perto os embriões desenvolvem brânquias maiores (vejam na foto o embrião da esquerda que foi criado na presenca de larvas de libélula) que possibilitam que estes malandros fiquem mais distantes da superfície e aguentem um ambiente com menos oxigênio.

Já os girinos da rã Rana Pirica são a base da cadeia alimentar. Isso é, são comidos pelas larvas de libélula e pelos girinos de salamandra. Mas esses caras também desenvolvem um corpo mais fortinho na presença dos girinos de salamandra que evitam que estas os engulam, apesar de não conseguirem evitar serem engolidos pelas larvas de libélula. Ai acontece que o Japão é na verdade um arquipélago. Na ilha principal esses pobres girinos tem que se virar quando tem muito predador e desenvolvem esse corpo mais gordinho. E quando os girinos de salamandra desenvolvem o fenótipo cabeçudo carnívoro ai que os girinos de rã desenvolvem corpos mais gordinhos para evitar serem engolidos. Mas então acontece que uma das ilhas japonesas, Okushiri, não tem salamandras! Essa ilha se separou da ilha principal, Hokkaido, a algumas dezenas de milhares de anos e só carregou as rãs. E ai? Será que depois de tanto tempo de moleza os embriões de rã conseguem mudar seus caminhos de desenvolvimento na presença dos girinos de salamandra? Pois é, os girinos de Rana Pirica que não viam girinos de salamandras há tempos ainda fazem corpos mais gordinhos quando se deparam com as tais mas nem de perto ficam tão gordinhos quanto os da ilha principal. Mas mesmo assim é interessante que este possível fenótipo continue lá escondido durante todo este tempo refletindo a história da população.

Vale lembrar que estas alterações são ativadas por gatilhos de desenvolvimento que foram selecionados e não de forma consciente porque os bichos quiseram ficar assim. Muito pouco se sabe sobre como embriões traduzem sinais em forma de vibrações em caminhos de desenvolvimento efetivos. Mas a falta deste conhecimento é uma boa demonstração de que não prestamos muita atenção na influência do ambiente sobre o produto do desenvolvimento dos organismos.

Leitura recomendada:

Existe um livro texto publicado recentemente com uma ótima discussão sobre polifenismos e suas consequências para a evolução, biologia da conservação etc. Chama-se “Ecological developmental biology” e tem como autores Scott Gilbert e David Epel.

Referências:

Michimae e colaboradores (2005)

Iwami e colaboradores, 2007

Kishida e colaboradores, 2006

(Kishida e colaboradores, 2007)

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Leia o texto anterior: Vida maravilhosa na origem dos sistemas nervosos

Eduardo Sequerra

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