Não se pode nem se deve subestimar ou desprezar os apoiadores de populistas autoritários, vencedores das eleições. É preciso procurar compreender em que cenário isso foi possível
No livro “O povo contra a democracia – por que nossa liberdade corre perigo e como salvá-la”, publicado em 2018 nos Estados Unidos e em 2019 no Brasil (Editora Companhia das Letras), Yascha Mounk, professor da Universidade John Hopkins (EUA), faz uma defesa da democracia liberal e alerta para os perigos que ela corre, com o crescimento do populismo autoritário, de partidos de direita e de extrema direita em várias partes do mundo, incluindo o Brasil (há um prefácio do autor à edição brasileira).
Para ele, há uma estreita relação entre liberalismo e democracia que, ao longo da história, “permaneceram colados graças a uma série de contingente de precondições tecnológicas, econômicas e culturais”, mas que esta “cola” está perdendo aderência: a democracia liberal “mistura única de direitos individuais e soberania popular que há muito tempo caracteriza a maioria dos governos da América do Norte e da Europa Ocidental – está se desmanchando”.
O entendimento é que a democracia liberal como um sistema político ao mesmo tempo liberal e democrático, protege os direitos individuais e traduz a opinião popular em políticas públicas, mas pode se desvirtuar de duas formas: se tornando iliberais, onde há uma subordinação das instituições aos caprichos do Executivo, ou seja, uma democracia sem direitos (o que é uma contradição) e, em segundo lugar, como conseqüência, por restrições aos direitos das minorias.
Segundo Mounk os regimes liberais podem ser antidemocráticos, a despeito de contarem com eleições regulares e competitivas e que Isso tende a acontecer, sobretudo em lugares “onde o sistema político favorece de tal forma a elite que as eleições raramente servem para traduzir a opinião popular em políticas púbicas”.
Nesse sentido, o que se constata hoje é que duas formas de regime estão ganhando projeção: a democracia iliberal e o liberalismo antidemocrático: ”quando a história do século XXI for escrita, a decomposição da democracia liberal nessas duas partes integrantes provavelmente ocupará o centro do palco”.
Ele afirma que a democracia liberal se consolida com o fim da União Soviética (1991) e que está sob perigo com a ascensão de governos de direita e extrema-direita – além do Brasil, Rússia, Turquia, Egito e Estados Unidos e crescimento, entre outros países, na França, Áustria, Itália, Holanda, Alemanha e Hungria e assim constata-se que há “um encolhimento global da democracia, com a ascensão, pelo voto, de populistas autoritários”.
O problema central dos seus argumentos, a meu ver, é o de relacionar liberalismo com democracia e nesse sentido uma referência importante para se analisar esta relação é o livro de Domenico Losurdo “Contra-História do liberalismo (Editora Ideias& Letras, 2006). Com base em sólida pesquisa histórica, ele questiona se o liberalismo foi ou é sinônimo de democracia econômica e social e procura desfazer o equívoco (eurocêntrico) e demonstrar que o liberalismo, ou o poder liberal, desde o início, conviveu com a escravidão e jamais, em qualquer contexto histórico, se colocou a serviço dos “de baixo”. Ele mostra como o liberalismo clássico, é excludente, racista e escravista. E para fundamentar suas afirmativas, analisou os papéis que diversos grupos políticos que, no exercício do poder, ou serviam ou eram os próprios integrantes das classes dominantes, falando em nome de ideias e ideais liberais, como se representassem os interesses da sociedade.
Um dos exemplos citado por ele é o de John Calhoun, que foi vice-presidente dos Estados Unidos entre l829 e 1832 e líder do Partido Democrático. Além de político, também publicou textos em defesa da liberdade individual, das minorias e garantias constitucionais, contra o que considerava “os abusos do Estado”. A referência de Calhoum, assim como de muitos liberais antes e depois dele é Jonh Locke, considerado como o pai do liberalismo político. Mas, como ele mostra, assim como Locke, os liberais conviveram com a escravidão, ou seja, defendiam a escravidão dos negros africanos, considerando que era uma forma de propriedade garantida pelas Constituições liberais.
Cabe lembrar que a liberal Inglaterra, pós a chamada Revolução Gloriosa de 1688, foi hegemônica no tráfico de escravos ao longo do século XVIII e John Locke era acionista da Royal África Company que tinha o monopólio (que pertencia antes a Espanha) do tráfico de escravos. Entre as obras de Locke, consideradas como fundadoras do liberalismo clássico, estão o Segundo Tratado Sobre o Governo Civil (1681) e Cartas sobre Tolerância. No primeiro caso estabelece um governo limitado, respeitoso dos direitos de propriedade privada: uma defesa dos direitos dos ingleses à propriedade e à liberdade que serviria de justificativa para a privação desses direitos aos negros e indígenas.
Em relação ao liberalismo, Domenico Losurdo cita a Holanda, um dos primeiros países com uma Constituição liberal e considerada como um dos países europeus de maior tolerância religiosa nos séculos XVII e XVIII, mas que conviveu tranquilamente com o tráfico de escravos.
E não foi específico do século XVIII. Como mostram vários estudos, o número de escravos trazidos da África aumentou na primeira metade do século XIX no Brasil, no momento em que o liberalismo se convertia em ideal hegemônico. A historiadora Beatriz Mamigonian, professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), traçou um retrato do Brasil do século XIX no livro “Africanos livres – A abolição do tráfico de escravos no Brasil” (Ed. Companhia das Letras, 2017) e mostra como entre o início dos anos 1830 e 1850 cerca de 800 mil africanos foram trazidos ilegalmente para o país, número tão expressivo quanto o registrado antes da proibição do tráfico de escravos.
E onde estavam os liberais que defendiam os princípios da tolerância, dos direitos e às liberdades individuais? Como afirma Losurdo, uma das razões alegadas para justificar a escravidão dos negros era a (pretensa) inferioridade racial, ou seja, princípios serviam apenas para justificar a exploração.
Um dos aspectos analisados por Domenico Losurdo na história do liberalismo é a relação entre o liberalismo e escravidão e mostra como John Locke, solicitado pelos proprietários da Carolina (Estados Unidos) para ajudar na elaboração da sua Constituição, subscreveu um artigo qual se afirma que “todo homem livre da Carolina deve ter absoluto poder e autoridade sobre seus escravos negros, seja qual for sua opinião e religião”. E que até mesmo presidentes dos Estados Unidos eram proprietários de escravos, como George Washington, John Madison e Thomas Jefferson, autores da Declaração da Independência e da Constituição Federal em 1787.
E, fato relevante, a discriminação racial permaneceu depois da abolição, e ao longo do século XIX e XX, confirmando como a burguesia liberal e seus aliados, chegando ao poder, souberam como e quem excluir.
No Brasil, embora não seja objeto do estudo de Losurdo, a Constituição Imperial de 1824 era formalmente liberal, mas integrado no cenário do capitalismo periférico de então, e conviveu com a escravidão até 1888 (e mais: outra forma de escravidão, o trabalho escravo, sobrevive até os dias de hoje).
Na resenha do livro “Contra-História do liberalismo” publicado em 2007 na revista Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (nº59), Alfredo Bosi afirma que “só no Brasil a burguesia imperial e seus porta-vozes no Parlamento encenaram uma comédia ideológica ao protelarem a abolição do cativeiro. Se farsa houve, ela foi representada em diversos contextos e em todo o Ocidente desde que se criou o termo liberalismo. Não se tratava de comédia, mas do drama composto, em nível mundial, pela estrutura contraditória do capitalismo em expansão”.
Assim, ao analisar o cenário global é preciso ampliar a compreensão do que é democracia e mais ainda, democracia liberal e ilberal, nos termos usados por Yascha Mounk. Que há necessidade de se defender a democracia, é fato, assim como as evidências de que ela está sob ataque em várias partes do mundo e só faz crescer. Um dos aspectos relevantes é que a confiança nas instituições democráticas diminui. Como diz Mounk “Há muito tempo os cientistas políticos estão conscientes de que a confiança nas instituições democráticas diminuiu; de que as avaliações dos políticos estão negativas; e de que os índices de aprovação dos representantes eleitos e das instituições estão em queda. Mas, até recentemente, quase todos eles davam pouquíssimas importância a esses fatos” (p.129).
Em relação ao Brasil, no prefácio do livro, ele afirma que “as evidências sugerem fortemente que a democracia brasileira corre grave perigo”, e também que o destino do país depende das ações dos defensores da democracia.
E mais: não podemos nem devemos subestimar ou desprezar os apoiadores de quem venceu as eleições e procurar compreender em que cenário isso foi possível, para que não se repita porque, a lição fundamental é que na maioria dos países em que populistas autoritários e a extrema direita venceram eleições, só o fizeram porque mentiram, usaram e abusaram de fake news, prometeram o que não vão cumprir, mas também porque seus adversários fracassaram em se unir. E é fundamental que se una, a despeito de suas enormes diferenças políticas, caso queira vencer as eleições. E que assim o povo, enganado, não vote contra a democracia porque é um contrassenso. Esta deve ter um governo do povo, para o povo e pelo povo.
Se você se importa com a sua liberdade, no contexto de uma democracia ilberal, segundo Mounk, ou seja, sem direitos ou os perdendo gradativamente, é seu dever solene diz ele “exercer seus direitos antes que o novo presidente os tire de vez”. Mas, adverte, vá com calma: salvar uma democracia de um populista perigoso é como correr uma ultramaratona – e você acaba de transpor o primeiro quilômetro” e, como sabemos, ainda há muitos quilômetros a percorrer.
Homero de Oliveira Costa é Professor Titular (Ciência Política) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
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Homero de Oliveira Costa