O mais recente surto do vírus Ebola nos ensina que, se populações locais não dispuserem de informações básicas, as intervenções na área de saúde pública serão ineficazes
Uma marca registrada dos regimes ditatoriais é a disponibilidade limitada à informação, isso quando há. Outras vezes, a mesma é repassada enviesada, não com o intuito de informar, mas de alcançar um objetivo específico a que se destina. Em teoria, as informações do mundo dito “globalizado, democrático e liberal” correm “às soltas”. Mas, na prática, sabemos que também não é bem assim que funciona. Yuval Noah Harari lança um pouco de luz sobre essa questão em seu livro mais recente, 21 Lições para o século XXI, no qual ele argumenta que, se em muitos momentos do passado estivemos privados da informação (essa realidade ainda permanece em muitos cantos do planeta), agora estamos imersos em um oceano de informações, desinformações e distrações.
Imagine, então, que ter lucidez ao navegar por esse mar revolto não é algo tão trivial, como muitos podem pensar. Falo isso para os que têm acesso fácil à informação, uma boa instrução e que vivem em sociedades onde prevalece uma dada estabilidade política-econômica-social, e isso mesmo se considerarmos as crises, a violência, os desastres ambientais etc. Imagine, agora, como essa questão se torna ainda mais complexa em locais de extrema vulnerabilidade social, econômica e ambiental, como em alguns bolsões na América Latina, Ásia e África. Nesses casos, a desinformação tem efeito similar às armas de destruição em massa. E não me atenho aqui apenas às fake news, falo, principalmente, da desinformação.
Agora no final de março, a prestigiada revista científica The Lancet Infectious Diseases publicou um artigo cujo título em tradução livre é “Confiança institucional e desinformação em resposta ao surto de Ebola (2018-2019) na cidade de Kivu do Norte, República Democrática do Congo”. O estudo compilou dados oriundos de entrevistas realizadas em setembro de 2018 com os moradores locais, um mês após o país ter declarado seu décimo surto do vírus Ebola.
O que chamou a atenção dos pesquisadores é que a maioria dos entrevistados ouviu e/ou acreditou em rumores falsos sobre o surto da doença. Entre os entrevistados, mais de um quarto (25,5%), ou seja, cerca de 1 em cada 4 entrevistados, acredita que o surto do vírus Ebola não é real, mas sim uma invenção. Por outro lado, apenas 31,9% dos entrevistados acreditam que as autoridades locais representam seus interesses – esse baixo índice chega a ser quase uma questão intuitiva. Além disso, há crenças generalizadas entre os entrevistados de que o vírus Ebola é fabricado com o intuito de propiciar ganhos financeiros a certos grupos e que é produzido para desestabilizar o país. Já em um editorial lançado na mesma revista após a publicação do referido artigo, o autor, Joe Trapido, lembra que o cancelamento das eleições presidenciais de 2018 nas regiões afetadas, como em Beni e Butembo, potencializaram tais percepções.
A consequência dessas desinformações é que as pessoas deixam de buscar cuidados e de adotar medidas preventivas e protetoras, como a vacina. Não o bastante, a desinformação potencializa inadvertidamente o surto do vírus Ebola, o qual provoca uma doença infecciosa grave que, muitas vezes, é fatal. Além, é claro, do risco de disseminação da doença para outras regiões. Vale lembrar que os indivíduos são infectados pelo contato direto com a pele, sangue, vômito, fezes ou fluidos corporais de alguém com a doença. A mesma não está no ar, como a gripe. Portanto, é necessário contato direto muito próximo com alguém infectado para que o vírus seja passado de uma pessoa para outra.
Então imagine a mistura dos seguintes ingredientes em um caldeirão: ambiente político conturbado, grupos paramilitares, ambiente violento, condições precárias de saúde, diferenças étnicas e uma grave crise econômica. Imagine agora que o caldo desse preparo é um ambiente de extrema vulnerabilidade social. Agora só falta o tempero: a desinformação e as fake news propagadas em massa e de maneira instantânea. Ou seja, em contextos como esse, as respostas médicas e as intervenções na saúde pública tornam-se ineficazes.
Infelizmente, essa nova guerra moderna agora tem dois frontes. Para um destes − a desinformação −, as estratégias de combate ainda são muito incipientes. Claro que a desinformação, em especial aquela de cunho científico, pode e é, em algumas ocasiões, utilizada como arma política. O medo do inimigo, infelizmente, aproximou muitas sociedades, dito civilizadas, das armas nucleares e biológicas, por exemplo. Diante de contextos assim, não é preciso ser um expert para perceber que essas respostas têm um cunho político, haja vista os contextos de violência, de pobreza e de fome.
Tanto a desinformação quanto as fakes news acabam criando narrativas, as quais impedem que se enxergue os reais problemas − apenas as ameaças fantasiosas. Se é difícil percebê-los, imagine solucioná-los. Essa mesma desinformação que potencializa o vírus Ebola desacredita as Doenças Tropicais Negligenciadas, discrimina as vacinas, exalta a terra plana, execra o SUS, desacredita o aquecimento global e ojeriza as diferenças, isso só para citar alguns exemplos. Talvez a ferramenta mais limitada de todas, com exceção de todas as outras, a Ciência, possa se valer do bom combate e assim combater este mau combate − a desinformação. Quem sabe, com as primeiras vitórias, se comece a propagar por aí que as questões de saúde pública beneficiam, antes de tudo, à coletividade.
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Thiago Jucá é biólogo, doutor em Bioquímica de Plantas e empregado da Petrobrás.
Thiago Jucá
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