Para o biólogo Pedro Carneiro é preciso encontrar um ponto de equilíbrio entre os critérios técnicos e políticos para avançarmos com a proteção da natureza
A entrevista dessa semana foi realizada com Pedro Bastos de Macedo Carneiro. Pedro é Doutor e Mestre em Ciências Marinhas Tropicais, bem como graduado em Ciências Biológicas (Licenciatura e Bacharelado), todos pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Ele trabalhou mais de 10 anos como biólogo no Instituto de Ciências do Mar (Labomar) da UFC, onde atuou na Coordenação, Direção e Administração do Laboratório de Mergulho Científico e do Laboratório de Macroalgas; atuou ainda como Curador do Herbário Professora Francisca Pinheiro, especializado em macroalgas e plantas marinhas; e como Representante dos técnico-administrativos no Conselho diretor da Instituição. O biólogo atuou também como Conselheiro de diversas e importantes instituições relacionadas à preservação e conservação ambiental, a saber: Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), Governo do Estado do Ceará – Secretaria do Meio Ambiente (SEMA), Governo do Estado do Ceará – Conselho Estadual do Meio Ambiente (COEMA) e Associação de Pesquisa e Preservação de Ecossistemas Aquáticos (AQUASIS). Atualmente trabalha como biólogo na Universidade Federal do Piauí (UFPI).
Coluna do Jucá: Você é um dos três autores do artigo publicado na revista Marine Biodiversity (Oliveira Soares e colaboradores 2018), no qual há o primeiro registro da ocorrência do Coral-Sol (Gênero Tubastraea) no litroral cearense. Você poderia falar um pouco dessa descoberta, bem como desse bioinvasor cuja presença representa uma série ameaça à biodiversidade do litoral brasileiro?
Pedro Carneiro: O Coral-Sol foi encontrado no Ceará por acaso. O mergulhador Marcus Davis (outro dos autores do estudo) retornou de uma operação no Petroleiro do Acaraú, navio afundado durante a Segunda Guerra Mundial no litoral daquele município, e relatou a presença de um tipo diferente de coral crescendo no casco do naufrágio. Posteriormente, ele, eu e o professor Marcelo Soares (o terceiro autor do artigo) constatamos ser uma das espécies invasoras do gênero Tubastrea. Esses animais começaram a chegar ao Brasil na década de 1980. Apareceram primeiro no Rio de Janeiro, e de lá se expandiram tanto para norte quanto para sul. Antes do nosso estudo, o relato mais ao norte era em Sergipe, o que sugere que houve um salto grande na distribuição da espécie. Isso indica que o Coral-Sol não vem se expandindo paulatinamente ao longo da costa brasileira, mas que provavelmente anda pegando carona em cascos de navio. Como muitos desses animais são encontrados em plataformas de petróleo, acreditamos que eles podem ter sido trazidos por algum veículo saído da região Sudeste a caminho dos portos ou plataformas existentes no Ceará, e encontraram no naufrágio do Acaraú um ponto adequado para se estabelecerem, algo que deve ter ocorrido em algum momento ao longo da última década. No entanto, apesar de a espécie poder ter chegado ao Ceará pegando carona em navios, é improvável que ela fique restrita ao casco do Petroleiro naufragado. O Coral-Sol se reproduz agressivamente e devido à direção das correntes, existe o risco da sua expansão para os estados do Piauí e Maranhão. Isso traz grande preocupação, já que, principalmente a partir da costa maranhense, existem grandes aglomerações de corais nativos, que se estendem até a Guiana Francesa. Se o Coral-Sol chegar a esse ambiente, e encontrar condições favoráveis para crescer e se reproduzir, poderá vir a causar um impacto de grandes proporções. Nesse ponto vale ressaltar que um dos problemas das espécies invasoras é a ausência de competidores e predadores naturais. Isso permite que essas espécies se reproduzam livremente, o que faz com que elas cresçam tanto que acabam por prejudicar as espécies nativas. Dessa forma, apesar de ainda não termos informações concretas sobre esse processo, existe o temor de que o Coral-Sol possa alcançar os recifes brasileiros e que com isso venha a causar a diminuição das populações dos corais naturais, reduzindo a biodiversidade dos ambientes recifais brasileiros como um todo.
Coluna do Jucá: Um estudo publicado na revista Science Advances no ano passado traz respostas, embora não definitivas, para o seguinte dilema: “Para salvar o máximo de biodiversidade do planeta, o que faz mais sentido: criar grandes áreas protegidas ou pequenas reservas isoladas?”. De acordo com os autores, a predileção dos governos nacionais é pela proteção de áreas que são “selvagens”. Porém, advertem que proteger até metade das grandes áreas selvagens do mundo não protegerá, necessariamente, muito mais espécies do que atualmente, uma vez que para proteger o maior número possível de espécies em risco, especialmente aquelas endêmicas de hábitats pequenos, os governos devem expandir seu foco de conservação e priorizar a proteção de hábitats-chave fora das florestas, parques e reservas existentes. Trazendo essa discussão para os ecossistemas marinhos, é possível falar em uma estratégia mais oportuna que a outra?
PC: Recentemente houve uma discussão parecida no Brasil por conta da criação de novas áreas de proteção nos mares do país. Em resumo, a proposta previa o estabelecimento de unidades de conservação gigantes em tamanho, mas que, em grande medida, iriam proteger apenas oceano aberto, deixando de fora as áreas mais ricas e sensíveis próximas do litoral e das ilhas oceânicas. Talvez a comunidade científica tenha passado tanto tempo falando da importância do tamanho das unidades de conservação, que ficou a impressão de que o espaço a ser abrangido pelas áreas de proteção é uma grandeza absoluta, quando na verdade é relativa, dependente do tamanho dos ambientes a serem resguardados. Só para deixar claro, para proteger um dado ecossistema, uma floresta por exemplo, é melhor uma unidade de conservação grande do que várias pequenas. Mas a questão é que nem toda floresta é igual e se eu quero proteger a biodiversidade de todas as florestas brasileiras, uma única área protegida na Amazônia, por maior que ela seja, será insuficiente. Além disso, fora a área dos ecossistemas, também é importante definir quais processos se pretende proteger, já que na maioria dos casos será impossível conservar tudo. Por exemplo, se o foco for a manutenção da biodiversidade, além da área, é necessário considerar todo o mosaico de condições que dá sustentação a essa biodiversidade, não bastando proteger indiscriminadamente milhares de quilômetros quadrados. No caso dos ambientes marinhos é preciso ainda ter em mente que eles são, via de regra, bastante interconectados. Por exemplo, muitos animais marinhos utilizam as zonas costeiras – praias, rios, estuários, etc. – quando juvenis, mas migram para alto mar quando chegam à vida adulta. Assim, uma política de proteção para essas espécies deve considerar todas as fases do seu ciclo de vida ou, por mais bem-intencionada que seja, tenderá ao fracasso. E nem sempre é fácil abranger tudo se considerarmos apenas a área. Com isso quero dizer que, sobretudo no ambiente marinho, tão importante quanto o tamanho e a quantidade das unidades de conservação, é a dinâmica dos ecossistemas, nas suas diferentes escalas espaciais e temporais, inclusive no que tange bens e serviços ambientais utilizados pelo ser humano. Por fim, gostaria de lembrar que essa discussão traz implícito um forte componente político. Ele é fundamental para o bom funcionamento das áreas de proteção, já que sem o apoio da população dificilmente uma unidade de conservação consegue se manter intacta. Mas infelizmente a política pode por vezes ofuscar os critérios técnicos. Um caso recente, que não tem relação direta com as áreas de proteção, mas que serve de exemplo, foi a elaboração da lista de espécies de peixes ameaçados do Brasil. Apesar de essa lista ter sido referendada por dezenas de estudiosos, ela foi contestada pela indústria pesqueira, que temia prejuízos financeiros, e acabou sofrendo modificações para permitir a pesca mesmo de espécies ameaçadas. Da mesma forma, os governos de muitos países preferem criar áreas protegidas enormes em locais distantes, evitando assim conflitos de uso. Muitas vezes não se chega nem a elaborar planos de manejo, fazendo com que essas unidades de conservação só existam no papel. Com essa prática o risco que corremos é duplo: podemos estar criando áreas de proteção desnecessárias por um lado, ou insuficientes por outro. Encontrar um ponto de equilíbrio entre os critérios técnicos e políticos é, portanto, fundamental para avançarmos com a proteção da natureza.
Coluna do Jucá: Os microplástcos são contaminantes ambientais cuja presença é tida como um dos possíveis indicadores geológicos do Antropoceno, haja vista o enorme potencial do seu impacto global. Importantes revistas como a Trends in Ecolgy & Evolution e a Science já vem há algum tempo advertindo sobre os efeitos desses contaminantes nos ambientes marinhos, tanto sobre a megafauna cuja alimentação ocorre por filtração, quanto nos recifes de corais distribuídos pelo planeta. Em escala global, as mudanças no padrão de consumo de plásticos e o seu descarte inadequado são imprescindíveis. É possível falar em outra ação premente ou até outras para evitar um possível colapso desses ecossistemas marinhos em decorrência desses contaminantes?
PC: O caso dos microplásticos chama atenção porque é uma poluição quase invisível, mas que vem sendo encontrada em praticamente todos os ambientes marinhos, com impactos ainda pouco compreendidos. Mas eles são só um exemplo extremo das mudanças que o homem vem causando nos oceanos. As maiores cidades do mundo ocorrem na zona costeira. E todos os dias, além dos microplásticos, são lançados nos mares esgoto doméstico, produtos de higiene, fármacos, materiais utraprocessados, coisas que não existem naturalmente nos oceanos e que, portanto, não estão integrados à dinâmica original dos ambientes marinhos. Ao mesmo tempo, processos naturais, como o desague de rios e o fluxo de sedimentos estão sendo bastante alterados. O próprio gás carbônico, que faz aumentar a temperatura do planeta, tem nos oceanos o efeito secundário de tornar a água mais ácida, o que pode ter consequência drásticas em determinados ecossistemas. E aqui vale ressaltar, independente da sua opinião a respeito dos efeitos do CO2 na atmosfera, é impossível negar que as mudanças nos oceanos estejam sendo causadas pelo homem, como muito bem exemplificado pelo próprio caso dos microplásticos. Todas essas mudanças têm consequências drásticas para o planeta. E antes que pareça excessivamente alarmista, gostaria de lembrar alguns casos do próprio Ceará, um estado em que milhares de pessoas sobrevivem da pesca ou do turismo no litoral: se pegarmos os boletins da SEMACE ao longo da última década veremos que boa parte das praias de Fortaleza estão sempre impróprias para banho por conta da poluição; se formos no Mercado dos Peixes, também em Fortaleza, poderemos encontrar várias histórias da diminuição dos estoques pesqueiros; se formos em Caucaia será fácil constatar que muitas das praias desapareceram, levadas pela erosão costeira, em grande parte causada pelos espigões de Fortaleza, principalmente do Porto do Mucuripe; se trafegarmos pelo rio Cocó e rio Ceará, ou pelas lagoas de Fortaleza, veremos que grande parte dos corpos hídricos do município está muito poluída. Tudo isso, ressalto, ocorre em um estado que é bastante dependente dos bens e serviços prestados pelos ambientes marinhos. Mas por favor não pense que isso é coisa de cearense ou brasileiro. Problemas similares são encontrados em todas as grandes cidades costeiras do mundo. Hoje, infelizmente, estou um pouco cético quanto a nossa capacidade de reverter tudo isso. Sim, existem soluções técnicas para vários problemas, mas dificilmente serão soluções de longo prazo, já que os impactos se sucedem. Por exemplo, há 50 anos o rio Tâmisa, que cruza Londres, capital da Inglaterra, foi declarado biologicamente morto. Ele era tão poluído que era responsável por grandes epidemias de cólera naquele país. Depois de anos de esforços o rio realmente foi despoluído e voltou a abrigar vida. Mas se antes o problema eram os esgotos sem tratamento, hoje, para não fugir muito da pergunta, são os plásticos que se acumulam. E as soluções que serviram no passado, são insuficientes para garantir a limpeza do rio hoje. Por fim, apesar desse meu pequeno ceticismo quanto a uma solução realmente abrangente, penso que precisamos parar de imaginar que os mares resistem a tudo, que podem absorver todos os nossos rejeitos ao mesmo tempo em que fornecem, gratuitamente, pescado e lazer de qualidade. Se paramos de imaginar que o que deixamos de ver, por ser carregado pelas ondas, não nos afeta mais, e repensarmos o funcionamento das nossas cidades em integração com os ambientes marinhos, não em oposição a eles, talvez possamos mitigar os impactos que andamos causando.
Coluna do Jucá: Apesar da utilização milenar das algas, bem como da diversidade de usos na sociedade contemporânea, talvez nunca esses organismos tenham sido tratados de maneira tão promissora como em relação à sua utilização na terceira geração de biocombustíveis. Essa perspectiva é fantástica e cai como uma luva diante do vício da sociedade moderna por combustíveis fósseis. Porém, tendo Coordenador do Laboratório de Macroalgas, você não acha que o potencial desses organismos não apenas é subutilizado, como chega a ser negligenciado?
PC: Sim, o potencial das algas ainda é subutilizado. Mas, no caso específico do biocombustível, ainda existem barreiras técnicas e logísticas a serem vencidas antes de se chegar a uma produção realmente viável a partir das algas. Já para outros usos, como o alimentício, seria possível obter resultados em prazos mais curtos. Inclusive, o estado do Ceará tem um histórico importante de produção e comercialização de biomassa de algas, oriunda tanto de extrativismo quanto de áreas de cultivo. Hoje, no entanto, essa produção encontra-se limitada por motivos que vão da redução das populações naturais devido à exploração desenfreada, à competição com outras atividades econômicas mais tradicionais, como o turismo e a pesca. A recomposição dos estoques naturais, e uma maior organização dos produtores, inclusive no que diz respeito ao beneficiamento e à venda das algas, poderiam certamente trazer dividendos ao estado.
Coluna do Jucá: O renomado paleontólogo Max Cardoso Langer defendeu, em artigo na Folha de São Paulo, que as extinções causadas pelo homem em nada diferem de processos semelhantes ocorridos no passado longínquo, a não ser pelo agente causador. Você acha que o “imperialismo ecológico” do Homo sapiens não tem nada de especial em relação ao de outros organismos?
PC: Se assumirmos uma postura rigorosamente científica, as extinções decorrentes da ação humana podem sim ser consideradas como equivalentes aos eventos de extinção em massa que ocorreram no passado. Mas equivalente não quer dizer igual. A influência humana se distingue por pelo menos dois motivos principais: o primeiro é que os impactos antrópicos que vem acelerando o ritmo das extinções no planeta não decorrem de uma necessidade biológica inerente da nossa espécie, mas sim da nossa forma atual de produzir e consumir. O segundo motivo é que nós temos plena consciência do problema. Por conta disso, essa discussão não pode ficar restrita à esfera científica, mas deve incluir também dimensões políticas e morais. Assim, ao ler artigos como o do Dr. Langer precisamos tomar cuidado para não cair num cinismo científico (e que fique claro, não o estou acusando disso, sobretudo quando seu artigo pode ser lido simplesmente como uma defesa da condição natural do homem). Por exemplo, seria um absurdo naturalizar as extinções com a intenção de minimizar o problema, ou dar a entender que, por conta disso, não podemos ou devemos fazer nada. Isso seria equivalente à desistir do combate à fome ou às doenças, simplesmente por esses fenômenos também serem naturais. Ou por outra, o impacto de um asteroide é um evento totalmente natural, mas praticamente inevitável, e mesmo assim tem gente trabalhando hoje para prevenir ou mitigar desastres do tipo. Portanto devemos perceber que, nessa discussão, tão ou mais importante que a natureza do fenômeno, é o que iremos fazer a respeito. E o fato é que estamos fazendo muito pouco para evitar a perda de biodiversidade no planeta.
Referências Bibliográficas
de Oliveira Soares, M., Davis, M. & de Macêdo Carneiro, P.B. Mar Biodiv (2018) 48: 1651. https://doi.org/10.1007/s12526-016-0623-x
Artigo de Max Cardoso Langer – Folha de São Paulo (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2018/07/extincao-de-especies-por-humanos-e-um-processo-natural-diz-cientista.shtml)
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Leia o texto anterior: A divulgação científica não pode parar, jamais!
Thiago Jucá é biólogo, doutor em Bioquímica de Plantas e empregado da Petrobrás.
Thiago Jucá
Excelente trabalho..Triste é ver a degradação do planeta pelos próprios habitantes..sem ter a consciência que estamos de passagem e o legado que deixaremos pras gerações futuras é desolador…E que as ações governamentais são inexpressivas ou melhor inexistentes.