Como a reforma da previdência proposta pelo governo afetaria a vida das mulheres, caso fosse aprovada?
Hoje, apesar dos muitos avanços, o perfil previdenciário das mulheres brasileiras ainda é bem mais precário do que o dos homens. As mulheres, em geral, se aposentam em maior proporção na modalidade de aposentadoria por idade – que requer menor tempo de contribuição e gera benefícios previdenciários com valores mais baixos – e são sobre representadas em benefícios de caráter não contributivo, como o BPC (benefício de prestação continuada). Em função da inatividade econômica e também porque têm uma expectativa de vida maior, as mulheres também são maioria entre os pensionistas.
Esse perfil é explicado pelo fato de que a aposentadoria é o reflexo da trajetória laboral dos indivíduos. Como as mulheres continuam tendo uma trajetória laboral mais instável, caracterizada por menor participação no mercado de trabalho, mais desemprego, longos períodos de inatividade, sobre representação em atividades informais e exercício de ocupações menos qualificadas e pior remuneradas, elas também acabam se aposentando em piores condições do que os homens e sobrecarregando a assistência social.
As mulheres continuam tendo uma trajetória laboral mais instável, caracterizada por menor participação no mercado de trabalho, mais desemprego, longos períodos de inatividade e sobre representação em atividades informais.
Parte dessa trajetória tem forte correlação com o peso do trabalho doméstico no cotidiano feminino e é ainda maior, se consideradas as diferenças raciais, por nível de escolaridade e regiões. Isso ocorre porque se observa no país a combinação de modelos distintos de alocação do tempo em trabalho remunerado e não remunerado por nível socioeconômico. Entre as mulheres de camadas de mais alta renda o que se observa é o modelo de delegação, em que as mesmas podem recorrer à terceirização do trabalho doméstico não remunerado, através da contratação de empregadas domésticas, o que as permite participar de maneira contínua no mercado de trabalho. Já as mulheres de camadas mais baixas de renda têm menos opções para conciliar as esferas pública e privada, já que não encontram suporte do Estado para tal conciliação e são, portanto, duplamente penalizadas.
Outra desigualdade a se considerar é a geográfica. Segundo o IPEA, em 2014, a maior idade média à aposentadoria de trabalhadores urbanos era no estado de Roraima, 64,8 anos e, a menor, no estado de Santa Catarina, 57,2 anos. A diferença entre esses dois extremos é de 7,6 anos, o que evidencia desigualdades já existentes no acesso a aposentadoria no Brasil. A idade média à aposentadoria é menor onde mais pessoas conseguem se aposentar atualmente por tempo de contribuição, o que ocorre em Santa Catarina. E é maior quanto maior for a incidência de pessoas que se aposentam por idade, por terem conseguido acumular os 15 anos mínimos exigidos. Espera-se, portanto, que a proposta de fixar uma exigência de 20 anos de tempo de contribuição exija mais dos trabalhadores dos estados do Norte e Nordeste que, atualmente, já demonstram maiores dificuldades no acúmulo de tempo mínimo de contribuição. Nesse sentido, a Proposta de Emenda Constitucional 06/2019, do governo Bolsonaro, poderia aprofundar as desigualdades regionais já existentes.
Mas a proposta de reforma da previdência, além de retardar ainda mais a aposentadoria feminina, reduzir o valor do benefício de forma drástica e ampliar a exclusão previdenciária das mulheres, também promove amplos cortes nos valores das futuras pensões e do BPC. As pensões por morte e o BPC são benefícios em que a as mulheres são mais representativas 84% e 59%, em 2017, respectivamente.
Às mulheres cabe o exercício de ocupações menos qualificadas e pior remuneradas, por isso elas também acabam se aposentando em piores condições do que os homens e sobrecarregando a assistência social.
No caso da pensão por morte, caso seja aprovada a proposta, a família terá direito a 50% do benefício mais 10% por cada dependente, não acumuláveis após a perda de direito. Ou seja, quando os filhos alcançarem a idade de 21 anos, eles perdem o direito dos seus 10% e essa cota não poderá permanecer com o cônjuge que sobreviveu. Além disso, a PEC desvincula o benefício de pensão por morte do salário mínimo, permitindo que o mesmo alcance valores abaixo desse limite. Cabe ressaltar também que a pensão não poderá ser acumulada com outros benefícios, em 100% dos valores de ambos, à exceção dos casos previstos (por exemplo: profissionais da educação e da saúde), para tanto, o indivíduo poderá escolher ficar com 100% do benefício de maior valor e receber um percentual do outro, variável segundo a faixa salarial e com valor máximo limitado a dois salários mínimos.
O BPC, destinado a idosos acima de 65 anos que vivem em famílias cuja renda per capta é abaixo de um quarto (1/4) do salário mínimo, com a proposta passa a ser de apenas R$ 400, a partir dos 60 anos, e atinge o valor de um salário mínimo, somente para idosos com 70 anos ou mais. Além disto, a PEC também propõe mais um critério de elegibilidade a esse benefício assistencial, que é a exigência de não ter um patrimônio acima de 98 mil reis. Portanto, se o idoso conseguiu comprar um imóvel, que hoje custa mais que 98 mil, mesmo que ele viva em uma família com renda per capta inferior a ¼ do salário mínimo, ele não poderá fazer jus ao BPC. Sendo mais frequentes em situações de pobreza, as propostas de mudança nas regras do BPC afetaria mais as mulheres.
Para completar, a PEC obriga a criação, para as gerações futuras, de regimes de previdência de capitalização individual com modalidade de contribuição definida, que acaba com qualquer forma de subsidio cruzado entre os grupos mais e menos favorecidos e que são menos amigáveis para as mulheres, como mostra a experiência internacional. Isso ocorre porque nesse tipo de regime financeiro com esse molde de benefício, o valor da aposentadoria é calculado com base no montante acumulado durante toda a idade ativa. Nesse sentido, seria uma dificuldade maior para as mulheres vivenciar aposentadorias dignas, tendo em vista a experiência das últimas gerações no mercado de trabalho e as lentas tendências de mudanças nos indicadores de gênero no mercado de trabalho. Portanto, a consideração desses aspectos é essencial para se garantir uma reforma com justiça de gênero e por nível socioeconômico.
Maria de Fátima Lage Guerra (DIEESE), Jordana Cristina de Jesus (UFRN) e Luana Myrrha (UFRN)
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Maria de Fátima Lage Guerra (DIEESE), Jordana Cristina de Jesus (UFRN) e Luana Myrrha (UFRN)