A trajetória da pesquisadora Gabriela Lemos é um exemplo de superação de barreiras numa área majoritariamente masculina
Não foi difícil marcar a entrevista. Ao contrário, a pesquisadora que acabara de receber a Medalha Mietta Santiago, da Câmara dos Deputados, com apenas outras quatro mulheres no Brasil, respondeu positivamente e com muita brevidade. Mineira, Gabriela Barreto Lemos mantém um leve sotaque e fala com muita clareza e fluência seja sobre Física Quântica, seja sobre a importância de se fazerem ações para atrair nas meninas o gosto pela ciência ou seja sobre barreiras adicionais que as mulheres enfrentam para se firmarem nas carreiras acadêmicas, sobretudo na sua área de atuação.
Nessa segunda matéria sobre a jovem pesquisadora, hoje com 35 anos, fica claro que ela já inscreveu seu nome na história da Física. O grupo que ela coordenou no Instituto de Ótica Quântica e Informação Quântica, na Áustria, onde fez o segundo pós-doutorado desenvolveu uma pesquisa inovadora, que permite a captação de fotografias através da reprodução de pequenos feixes de partículas, possibilitando a construção de uma imagem que não seria visível a olho nu.
“Trabalhar com Física Quântica mudou toda a forma que eu vejo o mundo”
Trazendo para si a responsabilidade de criar exemplos e de tornar-se inspiração para trazer meninas para a Física, incentiva: “eu sei que o caminho é difícil, às vezes parece um sonho irrealizável esse de tornar-se uma cientista, mas eu digo vai em frente, se agarre às pessoas no caminho que podem te ajudar e te levar adiante com elas e se inspire nas pessoas que conseguiram.” Ela chega a afirmar que se conseguir despertar o interesse de pelo menos uma jovem, seu esforço já terá valido a pena. Assim como no laboratório, esse trabalho também poderá levar muitos anos para apresentar resultados.
Cultura machista
Atualmente são poucas as mulheres no cursos de graduação em Física no Brasil e ainda há tantas outras que abandonam a área durante a trajetória, afirma a pós-doutora. Mas é no topo da carreira onde essa assimetria é assustadora. De cada 100 pesquisadores de nível 1A e 1B, no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), na Física, apenas oito são mulheres. Ela garante que comparada às outras ciências e até ao mundo corporativo, essa área apresenta os piores números de representação feminina. “Nós, que estamos no dia a dia, escutando as coisas que a gente escuta, e tendo a impressão de que temos que lutar mais para conseguir as mesmas coisas, sabemos que o problema é real e que ele está dentro da Física. Não é só um problema que está vazando de fora, de uma sociedade machista, tem uma cultura extremamente machista dentro da Física.”
A comprovação dessa cultura pode ser observada no cotidiano das instituições. Se por um lado, as pesquisadoras trabalham com questões fundamentais de suas áreas de atuação, algumas das quais capazes de derrubar conceitos clássicos, por outro, “alguma coisa ali nos diz o tempo inteiro: você não pertence, você não faz parte, esse lugar não é seu”, garante. Ela classifica como microgressões as situações a que são submetidas e afirma que são sistêmicas, o que significa não ser responsabilidade direta dos homens, muitas vezes, pessoas bem intencionadas, mas incapazes de compreender o fato como um problema real e que precisa ser enfrentado. “Não é incomum eu estar numa sala que somos só duas mulheres e 100 homens. Não é incomum eu estar sendo avaliada por uma comissão só de homens. Não é incomum eu estar numa instituição em quem todos os professores são homens.”
O saber é masculino?
As microagressões são a piada machista, a desconfiança da capacidade do potencial delas, a humilhação intelectual pública e vão aos poucos sugando a energia que deveria ser canalizada para a resolução de problemas científicos. Embora se considere uma mulher de sorte, por conhecer outras pesquisadoras que sofreram assédios mais violentos, Gabriela revela que “já me mandaram calar a boca na frente de 140 pessoas de uma forma muito agressiva” e reconhece que “eles não fazem com os homens.” A constatação, porém, não é resignada. Ela destaca que é necessária a discussão de uma epistemologia feminista e levanta questões sobre o que é o saber, quem sabe, qual é a nossa relação com a natureza. Para essas questões, ela lembra, as respostas disponíveis foram construídas e pensadas por homens, a partir da experiência deles. “É importante repensar quem é a pessoa, quem é o cientista, porque essa ideia de que cientistas descobrem as coisas no vácuo, sem um contexto social, sem um contexto histórico é altamente ultrapassada.”
As mulheres estão sendo punidas, em função dos papéis sociais que historicamente elas desempenham, assegura a física. Em sua opinião, o sistema está formatado para não atender às necessidades específicas delas. Aponta como exemplo os momentos em que a mulher assume o papel de cuidadora, seja de filhos, de pais ou outros familiares e não consegue produzir do mesmo modo que antes e acaba perdendo seu espaço na base de pesquisa. “Tem que ter uma forma de acolhê-las, de dar condição para que elas retomem as publicações, retomem a ciência quando elas puderem”, defende.
Quando aplica conceitos das Ciências Sociais para explicar os diferentes papéis que homens e mulheres tem no campo das Ciência Naturais e especialmente, na Física, a pesquisadora destaca a cultura como elemento fundamental, inclusive para a evolução da ciência. “Não são diferenças congênitas, são coisas que culturalmente são trabalhadas em nós o dia inteiro e a gente acaba assumindo elas para nós mesmos.” E para ela a mudança na cultura da Física e da ciência em geral está na valorização da diversidade de abordagens científicas. A valorização dos diferentes olhares, capazes de perceber o que tinha passado desapercebido, de criar modelos que não tinham sido criados, de perceber problemas onde achava-se que não havia problemas, achar soluções precisas onde não havia soluções, é o lugar onde será possível um ambiente cientifico que acolhe a todos e a todas. “A gente não vai fazer uma boa ciência se a gente não atender a diversas formas de fazer ciência, por diversos tipos de personalidade, diversos gêneros, diversas sexualidades, diversas raças etc., isso é importantíssimo.”
Leia também a entrevista com Gabriela Lemos.
Veja o vídeo do projeto “Sementinhas da Ciência”
Mônica Costa
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