Eliseu Alves, ex-presidente da Embrapa afirma que diagnósticos errados, com consequência na política agrícola, redundam em pobreza, frustração e fome
A Coluna do Jucá teve o privilégio de entrevistar um senhor gentil, solícito e com muita disposição para contribuir com a divulgação científica do país. As suas quase nove décadas de vida, das quais, ao menos, sete foram dedicadas às questões agrícolas, renderam-lhe títulos importantes como o de Referência Mundial na Pesquisa Agropecuária e Doutor Honoris Causa pelas Universidades de Purdue e Federal de Viçosa (UFV). Além disso, ele é tido como um dos mais renomados e reconhecidos presidentes da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Aos mais jovens fica o exemplo de vitalidade e lucidez.
A entrevista dessa semana foi realizada com o pesquisador da Embrapa, Eliseu Roberto de Andrade Alves. Eliseu é PhD (1972) e Mestre (1968) em Economia Agrícola, ambos pela Purdue University Indiana (EUA), bem como graduado em engenharia agronômica pela Universidade Federal de Viçosa (1954). O pesquisador é servidor público há 58 anos sem interrupção, tendo atuado na Emater (MG) e, atualmente, na Embrapa. Atuou como chefe do departamento de planejamento e avaliação da ACAR (MG), hoje Emater (MG), de 1968 a 1973; como diretor da Embrapa 1973 a 1979; como Presidente da Embrapa de 1979 a 1985; como Presidente da CODEVASF de 1985 a 1989; como Secretário Nacional de Irrigação 1989; como Assessor da Presidência da Embrapa de 1990-2010; como Professor de estatística, microeconomia e política agrícola do curso de pós-graduação em Economia Regional, CEDEPLAR, da Universidade Federal de Minas Gerais; como Professor de economia rural do curso de pós-graduação da Fundação Getúlio Vargas; como Professor de economia rural do curso de pós-graduação da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo. Tem orientado teses em nível de mestrado e doutorado nas seguintes instituições: CEDEPLAR, UFV e USP.
Durante 17 anos contribuiu para consolidar o serviço de extensão rural (1955 a 1973). Junto com um grupo de cientistas sociais, ajudou ainda a conceber e formular o modelo no qual a Embrapa se baseou, e ajudou a defender esse modelo junto ao Governo Federal. No período de 1971-73, atuou o diretor dessa instituição ajudando a conceber e executar o seu programa de pós-graduação. Como presidente da Embrapa fez deste programa a sua maior prioridade, atingindo a marca de 1600 egressos, ao longo de 12 anos. Ajudou também a consolidar a Embrapa e torná-la uma referência nacional e internacional. Como presidente da Companhia de Desenvolvimento dos Vales de São Francisco e Parnaíba – CODEVASF, criou o conceito do distrito de irrigação, pelo qual os projetos públicos passaram a ser administrados pelos irrigantes. Emancipou todos os projetos da CODEVASF. Concebeu e implantou o programa de exportação de frutas. Negociou empréstimos com o Banco Mundial, BID e Governo Japonês que estão permitindo uma expansão de mais de cem mil hectares de área irrigada. Ajudou a conceber e executar o programa de 1 milhão de hectares irrigados do presidente Sarney, que foi inspirado num trabalho feito por técnicos da Embrapa, e do qual foi o primeiro autor.
Iniciou o processo de mudança da lei de irrigação, ainda em curso hoje, e para o qual ainda presta assessoria junto ao grupo encarregado de reformulá-la. Na Fundação Getúlio Vargas (FGV), ajudou a formular e implementar uma pesquisa por amostragem que serviu para definir melhor as contas do setor agrícola. De 1990 em diante, dedicou-se totalmente à pesquisa em política agrícola e em ciência e tecnologia. Nesta condição, tem dado assessoria a governos na condição de consultor do BID, Banco Mundial e FAO, entre os quais se destacam aqueles da Venezuela, Paraguai e Equador. Tem atendido a convites de universidades, cooperativas, organizações de produtores e científicas para fazer palestras sobre a dinâmica da agricultura brasileira, tema objeto de suas pesquisas.
Coluna do Jucá: Há tempos o agronegócio brasileiro é uma espécie de locomotiva que move a economia nacional. Porém, quando você ingressou na Embrapa como pesquisador no início da década de 70, a situação era bem diferente. O país, inclusive, ainda vivia uma situação de grande insegurança alimentar. Como foi a sua trajetória científica na Embrapa ao longo desses anos de tantas mudanças?
Eliseu Alves: De fato, éramos grandes importadores de alimentos. E enorme dívida externa se acumulava. E a agricultura era discriminada em favor da industrialização, e a política de exportação foi usada com a finalidade de gerar recursos para a industrialização, em certa medida discriminando a agricultura. Ressalte-se que não se negam os benefícios da industrialização. Mas, em 1973 se consolidou a visão que a agricultura precisava ser modernizada, e chamada para abastecer o Brasil e ajudar a pagar a dívida externa. A política tradicional de aumentar a oferta de alimentos via expansão da fronteira agrícola tinha esgotado suas possibilidades, em função dos altos curtos de construir infraestrutura na região Norte. Optou-se pela modernização da agricultura, inclusive para tirar proveito dos cerrados que ocupam 25% do território nacional. A Embrapa foi estabelecida em 1973, e o Cirne Lima era o ministro da Agricultura do presidente Garrastazu Médici, e ela sempre contou com apoio do ministro Delfim Netto. O presidente Geisel deu grande apoio à empresa, sob a liderança de Alysson Paulinelli. E os sucessivos presidentes da república a colocaram como prioridade de suas políticas públicas, e, assim, é atualmente.
Eu fui o segundo presidente da Embrapa e membro da primeira diretoria, sob a presidência de Irineu Cabral. As decisões macros da Embrapa couberam àquela diretoria e têm sido aperfeiçoadas ao longo do tempo.
Entre as decisões macros, destacaram-se o programa de pós-graduação e a organizações das unidades de pesquisas, focadas em produtos, como milho, soja, desenvolvimento de recursos, como os cerrados, semiárido e Amazônia e áreas temáticas, como recursos genéticos, agro energia e agricultura de precisão. Elas se constituem em Centros Nacionais de Pesquisa, sendo o seu número 47 e se distribuem em todo território nacional. A Embrapa está presente em vários países, como parceira, buscando e oferecendo ajuda. E está organizada em laboratórios virtuais – os labexes e mantém escritório na África, em articulação com países interessados.
Trajetória científica
EA: Eu tive o privilégio de participar, como diretor da primeira diretoria, 1973 a 1979, e ser o diretor presidente da segunda diretoria, 1979 a 1985, e presidente da Codevasf (Companhia de Desenvolvimento do Vale São Francisco), 1985 a 1990. Na CODEVASF, valorizamos os seus servidores e deixamos implantados a Fundação São Francisco que apoia os servidores e apoia sua aposentadoria. Passamos para os agricultores o comando de todos os projetos de irrigação, via distritos de irrigação, como passo importante para sua emancipação e desenvolvemos a exportação de frutas e hortaliças in natura e também a indústria de sucos. Fizemos da CODEVASF e Embrapa duas parceiras irmanadas na luta pela agricultura irrigada no Nordeste. Retornamos à Embrapa em 1990, totalmente dedicados à pesquisa, com foco em política agrícola, instituições e pobreza rural, na demanda da diretoria da empresa, atendendo suas solicitações e como as oriundas do MAPA. Na Embrapa na primeira e segunda diretoria, comandamos as áreas de formação de cientistas e servidores, a concepção do modelo de organização teve nossa participação decisiva, abrimos as portas para a área internacional, esforço que é parte da vida da Embrapa, desde seus primeiros passos. Valorizamos a área de métodos quantitativos. Ajudamos a conceber a área que mede o impacto, econômico, social e, hoje, ambiental das descobertas de seus cientistas e batalhamos constantemente para que a teoria e os números fundamentem nossas decisões, seja da pesquisa ou da política agrícola! Pesquisa do governo tem de ser transparente à sociedade, sem o que não sobreviverá. E a área de comunicação tem peso enorme em ajudar-nos ser conhecido pelo Poder e toda a sociedade. Sempre dei apoio à mesma, e ela tem cumprido bem seu papel.
Coluna do Jucá: Passamos por uma “época áurea” de “agriculturização” e “pecuarização” da economia, com a tropicalização de commodities como grãos e carnes. Atualmente, busca-se o aumento da produtividade da agricultura e pecuária, em consórcio com a redução das emissões de gases do efeito estufa. Se obtivermos sucesso nessa nova empreitada, poderemos, de fato, alcançar o status de celeiro do mundo ou, ainda assim, seria um exagero reivindicar tal status?
EA: Já somos grandes produtores e exportadores. A enorme expansão dos últimos cinquenta anos, deve-se a forte demanda externa, à urbanização da população que unificou os mercados de trabalho das cidades e dos campos, estabelecendo forte competição entre os mesmos, aos investimentos do governo em infraestrutura e tecnologia, como também da iniciativa particular, a agricultores competentes e de grande mobilidade que migraram dos centros mais avançados em busca dos cerrados do Centro Oeste e da Amazônia. O mérito é do governo, com sua política pública, inclusive abrindo os mercados à competição externa, e dos agricultores que optaram pela modernização da agricultura, correndo os riscos desta empreitada.
Coluna do Jucá: Em um artigo publicado no EL PAÍS, Jose Graziano da Silva, diretor-geral da FAO, e Adolfo Pérez Esquivnel, Prêmio Nobel da Paz e membro da Aliança da FAO pela Segurança Alimentar e Paz, afirmam que “em um mundo que produz alimentos suficientes para dar de comer a todos os seus habitantes, a fome nada mais é do que um crime”. Ou seja, a questão passa necessariamente pelo acesso. Por outro lado, estima-se que o planeta abrigará 10 bilhões de pessoas por volta do ano de 2050. Nesse cenário, surge então a seguinte questão: qual o papel da agricultura tropical na Amazônia para suprir essa demanda sem, entretanto, comprometer a sua biodiversidade?
EA: Criminalizar a fome é retórica sem sentido. Uma das consequências, também vividas pelo Brasil, é proibir as exportações, o que produz mais pobreza e fome. Diagnósticos incorretos produzem efeitos análogos, como as guerras e revoluções. O Brasil discriminou sua agricultura, optou por políticas que deixaram de lado investimentos em pesquisas, em nível nacional, optou por exportar somente o excedente, baseado na aritmética perversa de que o exportado significava privar o consumo interno de igual quantidade, ignorando o efeito do mercado externo na dinâmica da agricultura. Pagamos elevado preço. À época da criação da Embrapa, em 1973, éramos grandes importadores de alimentos. Mudamos a política agrícola, abrimos a economia, investimos em ciência aplicada, superamos as importações e acumulamos enorme superávit nas contas externas. A nossa agricultura alimenta os brasileiros a preços declinantes, e no período de 1970 a 2018, proporcionou a maior transferência de renda para os mais pobres, com ganhos para os produtores também. Diagnósticos errados, com consequência na política agrícola, redundam em pobreza, frustração e fome!
Coluna do Jucá: No documento produzido pela Embrapa “Visão 2030: o futuro da agricultura brasileira” consta que “atualmente, 75% dos alimentos do mundo são gerados a partir de 12 espécies de plantas e cinco espécies de animais. Isto torna o sistema alimentar global altamente suscetível aos riscos inerentes às atividades agrícolas, como pragas e doenças em animais e plantas, problema agravado pelos efeitos da mudança do clima”. Em um cenário como esse, pode-se vislumbrar algum protagonismo em relação à agrobiodiversidade amazônica e/ou da Caatinga?
EA: Não foi dito que estas espécies de plantas e animais são estudadas pelos cientistas mais competentes e experientes do mundo. Estão conosco há muitos anos e tem sobrevivido aos ataques de seus inimigos. E os bilhões de seres humanos como chegaram a tantos? Ciência e tecnologia, inclusive na agricultura!
Agricultura é uma atividade econômica. Depende do tamanho do mercado e da tecnologia existente e criada. Todas as espécies conhecidas já foram selvagens. O mercado foi desenvolvido, a tecnologia fez maravilhas e hoje temos um mercado gigantesco. Sempre é possível ter surpresas, como no milho, soja, algodão, arroz, trigo, etc. O assaí leva jeito. Certamente, haverá mais surpresas.
Coluna do Jucá: Há muitas críticas acerca da economia extrativa, uma prática amplamente adotada na utilização dos recursos da Caatinga, bem como da Amazônia. A esta, associa-se uma imagem de atraso, estagnação econômica e até retrocesso. Propaga-se ainda que a mesma baseia-se em uma concepção utópica de desmatamento zero, quando, na verdade, defendem alguns dos seus críticos, contribui para a manutenção de um status quo de pauperização secular e até de “subdesenvolvimento sustentável” dessas regiões. Seria essa prática um entrave para o desenvolvimento social, econômico, científico e até tecnológico, ou não fazem sentido essas críticas?
EA: A agricultura extrativa, como solução do mercado e não imposta pelo governo, não pode ser criticada. Foi a melhor solução encontrada, considerando-se as restrições existentes. Normalmente, minimiza riscos. Antes de intervir, cabe perguntar se há algo melhor, respeitados os riscos existentes? Normalmente, não existe. Por tentativa e erro a solução ótima foi encontrada. Na modernização dos cerrados, mudou-se tudo. A população local vendeu a terra para gente vindo de fora, portanto, foi excluída. Quase sempre pequenas adições à tecnologia existente falham e, a população local sede espaço aos imigrantes. Ou seja, gente e tecnologia são trocados simultaneamente!
A Coluna do Jucá é atualizada às quintas-feiras. Leia, opine, compartilhe, curta. Use a hashtag #ColunadoJuca. Estamos no Facebook (nossaciencia), no Instagram (nossaciencia), no Twitter (nossaciencia).
Leia o texto anterior: A dieta planetária sob uma perspectiva científica
Thiago Jucá é biólogo, doutor em Bioquímica de Plantas e empregado da Petrobrás.
Thiago Jucá
Conheço bem o Eliseu, fomos colegas de turma em Viçosa , suas manifestações sempre foram marcadas e polemicas , mas sempre verdadeiras.
Trabalhador e especialmente muito estudioso , dedicado e a ele devemos muito pelo desenvolvimento da nossa agricultura.
Trabalhador , administrador e bom amigo, meus parabéns pelo seu grande trabalho pro desenviolamento da agricultura brasileira.
O Dr. Eliseu além de muito inteligente, tem uma bagagem de conhecimento muito larga, o que o coloca no topo das autoridades que precisam ser consultadas quando se pensa em propor alterações na política agrícola, noivas propostas de política pública que possa favorecer ao sistema.
Parabéns, mais um vez, ao Dr. Eliseu que nos honra em sermos colegas de empresa por 37 anos.