Descoberta do papel de microrganismos simbiontes isolados da pele de anfíbios foi feita por pesquisadores brasileiros e publicada na revista Proceedings of the National Academy of Sciences
Cientistas brasileiros descobriram que o forte odor exalado por algumas espécies de anfíbios é produzido por bactérias e seria uma forma de atrair parceiros. Exemplo notável de simbiose, tais bactérias ajudam na hora do acasalamento. A descoberta desse papel dos microrganismos, isolados da pele de pererecas, foi publicada na revista Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS).
“Pererecas exalam um odor marcante. Às vezes, dá até para reconhecer uma espécie específica a partir do seu cheiro, mas ainda não se conhecia a função de tal odor. Uma hipótese era que se tratasse de um cheiro aposemático, ou seja, um sinal químico de advertência que serviria para afastar predadores, como fazem os cangambás [Mephitis mephitis] entre os mamíferos, por exemplo”, disse Célio Haddad, professor do Instituto de Biociências e do Centro de Aquicultura da Universidade Estadual Paulista (Unesp), um dos autores do artigo.
De acordo com Haddad, tal hipótese era considerada pelo fato de muitas espécies de anfíbios, especialmente as venenosas, exibirem coloração chamativa, que funciona como um alerta visual para afugentar predadores. “Pensávamos que entre os anuros (sapos, rãs e pererecas) o odor pudesse desempenhar função semelhante”, disse.
Anuros
O novo artigo é resultado do trabalho de pós-doutorado do biólogo argentino Andrés Eduardo Brunetti, com supervisão do professor Norberto Peporine Lopes. “A importância e a originalidade do trabalho de Brunetti é indicar, pela primeira vez, a existência de uma diferença marcante no odor exalado por pererecas de sexos opostos. Nenhum trabalho com anuros havia sugerido esse tipo de comportamento. Os resultados sugerem que tal odor serve para permitir o reconhecimento mútuo entre machos e fêmeas da mesma espécie, com fins de acasalamento”, disse Haddad.
“Nos anuros é comum ver diversas espécies diferentes dividindo um mesmo lago ou brejo. Além disso, nesses locais existem em média 30 pererecas macho para cada fêmea de uma mesma espécie. A dúvida é como as fêmeas fazem para reconhecer os machos da sua espécie em uma multidão de machos de várias espécies, todos vocalizando ao mesmo tempo”, disse Brunetti.
“Sabia-se que, nos anuros, a vocalização dos machos tem a função de atrair fêmeas, e que cada espécie tem um canto característico. Verificamos que o odor desempenharia função semelhante, servindo de sinal olfativo que permitiria às fêmeas reconhecerem os machos da espécie”, disse.
Diferença no odor
Os biólogos desconheciam também que havia diferença no odor de pererecas machos e fêmeas. Brunetti fez tal constatação ao longo de sua pesquisa, cujo objetivo primário era entender a composição química dos componentes voláteis exalados da pele de diversas espécies de pererecas.
Sua hipótese de trabalho sugeria que o cheiro fosse um sinal químico de advertência que serviria para afastar predadores. Para verificar a hipótese, Brunetti foi a campo em várias localidades do Estado de São Paulo e Rio de Janeiro para coletar espécimes da perereca arborícola cará-cará (Boana prasina).
“É muito difícil coletar fêmeas no campo. No primeiro momento, só conseguimos coletar machos. Quando observamos indicação de haver diferença sexual no odor dos bichos, fui a campo novamente com o objetivo específico de capturar fêmeas para comparação”, disse.
“Durante o meu doutorado no Museu Argentino de Ciências Naturais, em Buenos Aires, ao investigar os compostos voláteis de duas outras espécies de sapos, descobri que as secreções eram formadas por uma mistura de 35 a 42 compostos de nove classes químicas diferentes. Na ocasião, percebemos que alguns daqueles compostos tinham a assinatura específica de compostos produzidos por bactérias”, disse Brunetti.
O pesquisador veio ao Brasil para investigar se existiam bactérias na pele de pererecas arborícolas selecionadas para produzir o cheiro característico de cada espécie e quais compostos eram produzidos. O trabalho em laboratório teve duas frentes: a análise dos compostos voláteis exalados da pele das pererecas e a identificação das bactérias lá existentes.
Por meio de técnicas de cromatografia gasosa e de espectrometria de massa, Brunetti e colegas puderam conhecer a diversidade dos componentes voláteis na pele de Boana prasina. Verificaram que a secreção volátil da pele de machos e fêmeas adultas é uma mistura de 60 a 80 compostos, incluindo álcoois, aldeídos, alcenos, éteres, cetonas, metoxipirazinas, terpenos e tioéteres.
Os cientistas constataram que os componentes voláteis da pele das pererecas machos e fêmeas eram exatamente os mesmos. O que não esperavam era descobrir variação nos níveis dos compostos. A análise apontou para uma diferença sexual marcante nos níveis dos terpenos, tioéteres e metoxipirazinas.
“Dos três componentes responsáveis pelas diferenças entre os sexos, os tioéteres e metoxipirazinas são compostos tipicamente produzidos por microrganismos”, disse Brunetti.
Para investigar se esse era o caso com a espécie Boana prasina, os pesquisadores isolaram, cultivaram e identificaram bactérias associadas à pele das pererecas e analisaram os seus componentes voláteis. Foram detectados 128 componentes diferentes.
A investigação de cada um dos componentes resultou na identificação de quatro metoxipirazinas presentes em machos e fêmeas, que são produzidas por uma única bactéria do gênero Pseudomonas.
Brunetti verificou que, em Boana prasina, as metoxipirazinas são muito mais abundantes nas fêmeas do que nos machos. Dos quatro tipos de metoxipirazina detectados, dois possuem níveis de concentração mais elevados nas fêmeas e dois entre os machos.
Relacionamento simbiótico
“O interessante nas bactérias Pseudomonas sp. é que elas vivem na pele de machos e fêmeas, onde metabolizam os mesmos compostos voláteis, porém em níveis de concentração que variam de acordo com o sexo do hospedeiro”, disse Brunetti.
Segundo o pesquisador, os níveis de metoxipirazinas nas pererecas sugere a existência de um complexo mecanismo de interações metabólicas, segundo as quais o ambiente na pele de cada sexo seria diferente e favoreceria a síntese de metoxipirazinas características em machos e fêmeas.
“Estabeleceu-se uma relação simbiótica entre pererecas e bactérias. Em troca do serviço prestado pelas bactérias, de diferenciação sexual a partir do odor, as pererecas fornecem um ambiente – a própria pele – onde as bactérias podem proliferar”, disse.
Brunetti ainda não sabe qual a função, para as pererecas, da diferença sexual nos níveis de metoxipirazina exalados pelas bactérias na pele. “Nossa suposição é que a diferenciação de odor sirva para ajudar os machos de Boana prasina a reconhecerem as fêmeas de sua espécie em locais onde habitam outras espécies de pererecas”, disse.
“Sabemos que os anuros são animais que empregam de forma disseminada a comunicação visual (coloração chamativa na pele) para afastar predadores e a comunicação acústica (vocalização) para atrair as fêmeas para o acasalamento. Talvez as pererecas Boana prasina estejam empregando uma forma de comunicação olfativa com a mesma finalidade”, disse.
Tal hipótese, que Brunetti tentará verificar em futuros estudos, tem grandes repercussões. “Até o momento, só é conhecido outro anuro [sapos, rãs e pererecas] de Madagascar que se comunica por meio do cheiro. Entre os anfíbios, sabemos que isso ocorre entre as salamandras, parentes distantes dos anuros”, disse Haddad.
“Se as pererecas Boana prasina se valem do cheiro como forma de comunicação olfativa, quem sabe outras espécies não estejam fazendo o mesmo, dado que cada espécie tem o seu odor característico. A descoberta de Brunetti, se confirmada, abre um novo campo de investigação na herpetologia, que agora passará a estudar a comunicação entre anuros não apenas pelas vias visual e acústica, mas também pela via olfativa”, disse.
Realizado na Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP), o trabalho contou com apoio do programa Biota-Fapesp, da Universidade de São Paulo (USP), do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
Agência Fapesp
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