O professor Marlécio Maknamara fala de suas convicções sobre o ensino e das perspectivas da formação docente no Brasil
Essa semana a Coluna do Jucá traz uma entrevista com Marlécio Maknamara, professor da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), doutor em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG/2011) e orientador de Doutorado no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Ele é sócio da ABRAPEC – Associação Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências, da Associação Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica (BioGraph) e da Associação Brasileira de Ensino de Biologia (SBEnBio). Ele tem atuado como elaborador de itens do Banco Nacional de Itens do Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (BNI/ENADE), avaliador de Tecnologias Educacionais e de Coleções Didáticas do Programa Nacional do Livro e Material Didático (PNLD), além de parecerista ad hoc para avaliação de projetos de pesquisa da Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR), Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e Universidade Estadual de Goiás (UEG). Tem coordenado ou participado de projetos (pesquisa/ensino/extensão) financiados por diferentes agências e já coordenou projetos do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (Pibid), Programa de Consolidação das Licenciaturas (Prodocência) e de duas edições do Encontro Regional de Ensino de Biologia Nordeste (EREBIO-NE). Orienta e desenvolve pesquisas com currículos (escolares e não-escolares) e com formação de professores (foco em práticas pedagógicas) privilegiando referencial pós-crítico de análise. Atualmente se prepara para pós-doutoramento na La Trobe University (Austrália) sob financiamento da Capes.
Coluna do Jucá: O físico e romancista inglês Charles Percy preocupava-se com o abismo que crescia entre as áreas de humanidades e de ciências naturais, chegando, inclusive, a designá-las de “duas culturas”. Por sua vez, o filósofo e educador, Anísio Teixeira, propôs, em diversas ocasiões, a construção de pontes, e até pavimentou um diálogo necessário, entre as ciências humanas e exatas, ou ainda entre as artes e a ciência, por exemplo. Um texto (auto) biográfico de sua autoria traz uma crítica ao modo canônico de produzir conhecimento, em especial, no que diz respeito “aos seus remanescentes de pretensa neutralidade como forma de objetividade, no qual se busca apagar qualquer marca de subjetividade”. Você acha que a subjetividade delimita a interface entre os dualismos e conflitos entre essas áreas, e que, a despeito do método utilizado, é impossível despir-se dela?
Marlécio Maknamara: Subjetividade diz respeito a algo que é próprio dos sujeitos, inclusive daqueles que fazem ciência. A cisão entre as humanidades e as chamadas “ciências duras” já foi muito maior, é verdade, mas se ela ainda persiste não é devido à subjetividade. Penso que a subjetividade é algo bonito demais para merecer a responsabilidade por tais dualismos e conflitos. Sou de uma perspectiva que entende essa separação como produto de jogos de poder, nos quais há disputa por significação do que conta como objetividade e subjetividade e do lugar que cada uma delas ocupa na produção de conhecimento científico e nas tipologizações das ciências. Quem está com vantagens nessa disputa influenciará mais fortemente as formas de ver e de dizer o que é e como se faz ciência. Compreender que as coisas do mundo científico são produtos e produtoras de relações de poder é abrir mão tanto de uma visão de neutralidade da ciência quanto de uma visão essencialista sobre as possíveis causas e efeitos de seus dualismos.
Coluna do Jucá: Um estudo conduzido pelo neurocientista Sidarta Ribeiro, e publicado na revista Science of Learning, mostrou que cochilos durante o período das aulas podem ser usados para impulsionar a aprendizagem escolar de uma maneira escalável e de baixo custo. Apesar dos resultados, não é de hoje que a ciência apresenta indícios de que o sono beneficia a aprendizagem. Por conta disso, discute-se a possibilidade de atrasar o início das aulas para aumentar a quantidade de sono pré-aprendizagem. Apesar das questões neurofisiológicas suscitas no estudo, atenta-se, a cada dia, para os aspectos da individualidade do ser (sono, alimentação, exercício), e não mais, exclusivamente, na questão metodológica, a qual deveria aplicar-se integralmente a todos os indivíduos, a despeito das suas diferenças. Vislumbra-se nas questões de valorização da individualidade de cada ser – de Foucault a Paulo Freire, de Sidarta Ribeiro a Marlécio Maknamara, e entre tantos outros – a revolução na aprendizagem que tanto se almeja, seja no campo científico, educacional e até cultural?
MM: Pesquisas que conectam cérebro e aprendizagem não são minha especialidade, mas fico feliz com suas descobertas em torno da qualidade do sono. Resultados assim nos fazem perguntar por quando os estudantes brasileiros, sobretudo os que vivem em condições desfavoráveis, terão efetivamente condições (para além das neurológicas, o que não é pouco) de aprender mais e melhor. Apesar de necessários, importantes, produtivos, estudos dessa natureza também aumentam nossa responsabilidade quanto a ter cautela, ter sempre em mente algumas ideias quando o assunto é aprendizagem: que nas instituições educacionais brasileiras circulam, pelo menos, três concepções sobre ela (aprender como “emitir as respostas certas”, aprender como “acumular informações”, aprender como “construir conhecimentos”); que a processos de aprender correspondem processos e cenários para ensinar (o que nos leva a perguntar por quais docentes têm, hoje, boas condições de formar-se e de trabalhar junto a seus/suas estudantes). Apesar da felicidade inicial, estudos daquela natureza também me deixam receoso quanto aos usos e efeitos que deles podem advir: a tentação de pessoas passarem a explicar a aprendizagem centralizando esse fenômeno pedagógico ao nível cerebral; uma corrida por justificar, pelo sono, eventuais dificuldades em fazer aprender, ou seja, a expectativa de que, resolvidos os problemas de sono, estarão resolvidos os problemas de aprendizagem; a sedutora crença de que, uma vez que alunos tenham qualidade de sono, restará apenas “uma boa metodologia de ensino” para garantir suas aprendizagens. Seriam apenas algumas das possibilidades a acontecer em um mundo fascinado pelo instrumental e pelo mercadológico tal como este em que vivemos.
Coluna do Jucá: O neurocientista do Ice-UFRN, Sidarta Ribeiro, defende que, “assim como no caso do aborto, a questão das drogas não se trata apenas de ser contra ou a favor. Menos ainda de um debate restrito a este ou aquele tipo de especialista. A política de drogas é assunto tanto da psiquiatria quanto da saúde pública, da psicologia e da toxicologia, da neurociência e da genética, da sociologia e da economia, do direito e da ciência política, da história e da assistência social”. Essa compreensão destrona a visão de que a interação entre as mais diversas áreas da comunidade científica e da sociedade não é, e não pode ser resumida, apenas, à geração do conhecimento científico?
MM: Se sua pergunta refere-se à necessidade de diálogo de saberes não apenas para fins acadêmicos, um necessário diálogo que extrapola as finalidades acadêmicas e os interesses científicos, concordo. Por mais importância e potência que o conhecimento científico tenha, por mais centralidade e prestígio de que a ciência ainda goze em nossa sociedade, ela não é o único tipo de conhecimento disponível e nem sempre é vivida como tal. A ciência não motiva ou pauta todos os aspectos da vida humana para todas as pessoas, não é? Logo, não podemos alimentar a ilusão de que basta conhecimento para mudança de comportamentos ou de que resolveremos temas eminentemente políticos considerando somente a perspectiva do que produzimos e sabemos em nome da ciência.
Coluna do Jucá: Como seres sociais, não há como ficarmos alheios, ou sairmos ilesos diante das decisões políticas, as quais variam de governo para governo. Os exemplos disso dizem respeito à deterioração do cenário científico, educacional e cultural vividos no país, de maneira surreal, nos últimos dois anos. Como consequência, não avançamos como deveríamos em questões sociais como aquelas que dizem respeito às minorias, à descriminalização do aborto e das drogas, à maioridade penal e ao porte de armas, só para citar alguns exemplos. Pode-se afirmar que diante do contexto atual, nunca se teve tanta certeza de que o conhecimento científico não é produzido em uma ilha fora da sociedade no qual está inserido, e que o engajamento social por parte de cientistas, filósofos, educadores, intelectuais é improtelável?
MM: Penso que vínhamos de um período de grandes avanços sociais cujos efeitos permanecerão, apesar dos retrocessos recentes e cada vez mais insidiosos. Sobre a ilusão da “torre de marfim” como paisagem e local de produção da ciência, não arriscaria dizer que hoje há mais certezas quanto à impossibilidade de neutralidade e isolamento científicos. Arriscaria dizer, sim, que mesmo entre certos modos de engajamento (de intelectuais, cientistas, educadores, filósofos) há também aqueles que são percebidos como inócuos, no sentido de que não têm a capacidade de dizer ou de fazerem-se ouvir em um mundo que se relaciona de um modo muito diferente com aqueles que se aventuram no pensar. Certamente a negativização da atividade intelectual que temos visto não é obra de intelectuais, mas podemos ter participação nela se prosseguimos nos posicionando como iluminados capazes de falar em nome do povo e de apontar o que fazer. De Foucault aprendi que improtelável é o fato de que os intelectuais de hoje não terão sucesso caso queiram apresentar-se como conselheiros dotados de consciência e eloquência privilegiadas e representativas de grandes massas: nossas lutas são mais pontuais e modestas, localizadas em tempos e espaços muito específicos, não baseadas em universalismos e em metanarrativas; nossas lutas são micropolíticas e por isso não menos efetivas.
Coluna do Jucá: Paulo Freire, no seu livro “a Pedagogia da Autonomia”, utiliza-se de um tom incisivo quando diz “Tenho pena e, às vezes, medo, do cientista demasiado seguro da segurança, senhor da verdade, e que não suspeita da historicidade do próprio saber”. A ciência é uma janela que possibilita uma ótima leitura da vida, mas para que esta não seja distorcida, é necessário que seja pautada em uma educação científica reflexiva, crítica e que considere a historicidade da produção do saber científico. Diante do modus operandi no qual é pautada a formação dos licenciandos, seja na graduação e/ou na pós, nas áreas de ciências no país, é possível exigir tal leitura dos recém-egressos?
MM: Seria difícil apostar em um único modus operandi no qual estaria pautada “a” formação de licenciandos. Como já disse em outra oportunidade, a formação de um/a docente, como prática social que é, pode ocorrer mediante diferentes contextos, cenários, conteúdos, convicções, finalidades, encaminhamentos teórico-metodológicos e sujeitos. Apenas para citar alguns dos inúmeros aspectos que complexificam as questões da formação docente, existem a formação inicial e a continuada, a perspectiva da hetero e da autoformação (esta última, sobre a qual tenho me debruçado mais recentemente, inspira meu projeto de pesquisa para professor visitante no exterior). No Brasil, se falamos somente da formação inicial, são múltiplos os referenciais, as políticas e práticas filtradas e traduzidas de diferentes modos em prol dessa formação. Contudo, penso que considerar a historicidade da produção de um saber científico é uma necessidade para qualquer etapa e perspectiva de formação docente, uma vez que somos seres irremediavelmente históricos, que as coisas que fazemos, como docentes ou não, não escapam da história. Como a ciência, sua produção, sua difusão e o que fazemos com tudo isso em cursos de formação poderiam estar fora de tal dinâmica?
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Thiago Jucá é biólogo, doutor em Bioquímica de Plantas e empregado da Petrobrás.
Thiago Jucá