No primeiro de uma série de textos sobre a organização de nossos corpos e sistemas nervosos, o grande debate entre Cuvier e Geoffroy
Uma pergunta que intriga naturalistas e biólogos há séculos é como nossos sistemas nervosos foram parar na linha média? Será que o mecanismo que faz nossos cérebros e medula se organizarem ao longo do nosso corpo é o mesmo que faz com que o sistema nervoso de uma mosca também se organize no seu eixo medial e não em suas laterais? Essas perguntas levaram a antigos debates acalorados e ainda dão o que falar hoje em dia. Hoje e nos próximos textos por aqui, vou falar sobre como a organização de nossos corpos, e sistemas nervosos, surgiram e como o desenvolvimento dessas teorias faz um bando de gente discutir.
No fim do século XVIII na França o governo revolucionário criou o Muséum d`Histoire Naturelle. Nele foi trabalhar um sujeito chamado Etienne Geoffroy Saint-Hilaire que ativamente trabalhou para trazer seu colega Georges Cuvier para a mesma instituição. Mas logo os bons amigos divergiram por conta de questões ideológicas e geraram uma das mais famosas discussões da história das ciências naturais, o Grande Debate Cuvier-Geoffroy. Para entender este debate nós temos que ter em mente que o mesmo aconteceu antes da publicação da Origem das Espécies, que o conceito que agora está enraizado em todo nosso raciocínio lógico, que partes de diferentes animais são relacionadas por uma relação genealógica, não existia para os naturalistas desta época.
No início do século XIX, a anatomia comparada era uma ciência em expansão. Cuvier era defensor de um princípio chamado Condição de Existência. Segundo este princípio, a origem das partes dos animais está intimamente ligada às suas funções. Assim, Cuvier esperava encontrar correspondências entre partes de animais que eram funcionalmente similares, como nadadeiras em animais aquáticos. Geoffroy no entanto, começou a encontrar correspondências que claramente não refletiam função. Isso o levou a crença de que as correspondências estruturais existiam independente de necessidades funcionais, como se fossem produzidas a partir de um plano base, um princípio chamado de Unidade do Tipo. É bom lembrar que sem o conceito de que duas estruturas em animais diferentes são genealogicamente relacionadas, afirmar que existe tal entidade nestes animais passa a ser um conceito idealista. Assim, ao afirmar que existe um plano base na organização do corpo dos vertebrados sem gerar um princípio que gerasse esta relação, Geoffroy estava criando uma entidade imaginada.
Cuvier acreditava que podia, através da comparação entre o funcionamento de diferentes sistemas nervosos dos animais, criar um “sistema natural” de classificação. E a partir daí propôs quatro grandes grupos: os vertebrados, os articulados, os moluscos e os de plano radial. Enquanto Geoffroy procurava correspondências entre estruturas de vertebrados, Cuvier permaneceu em paz, apesar de não concordar. Para Cuvier a existência de um plano base não fazia sentido pois limitava o poder do criador “Se olharmos para trás, para o Autor de todas as coisas, sob que lei pode Ele atuar se não prover para cada ser cuja existência é para ser continuada os meios que garantem tal existência?”(traduzido por mim mesmo).
Mas em 1820 Geoffroy saiu da linha, ele ousou unir vertebrados e articulados em uma única forma geradora. Ele argumentou que tanto vertebrados como insetos eram metaméricos, segmentados, e as vértebras são o arquétipo de cada segmento em invertebrados. Outra implicação para a união destes grupos em um plano base foi a de que os insetos, por possuírem um exoesqueleto, vivem dentro de suas vértebras. Um terceiro problema nesta comparação é que o sistema nervoso central de vertebrados corre ao longo do lado dorsal do corpo enquanto o de invertebrados está em seu ventre. Geoffroy argumentou que a inversão da posição do cordão nervoso nos dois grupos não era um problema uma vez que “dorso” e “ventre” são termos subjetivos criados por uma ideologia funcionalista. Ele dizia que o que chamamos de “dorso” e “ventre” depende somente da posição do sol. Assim, Geoffroy não só tinha cometido a heresia de unir grupos separados por Cuvier em seu “sistema natural” como disse que o problema da posição do sistema nervoso no corpo era artificial e criado pelo funcionalismo de seu colega. Além disso, ao afirmar que todos estes animais seguem um plano base ao redor de vértebras, internas ou externas, ele coloca a função em importância inferior para a classificação dos animais.
Cuvier deve ter se sentido ofendido com tal conexão vertebrados-artrópodos, mas era esperto de mais para se jogar em um debate público. E foi aí que uma dupla de naturalistas, Meyranx e Laurencet, apresentou em 1830 a Academia de Ciências uma monografia intitulada “Algumas considerações sobre a organização de moluscos” e Geoffroy foi apontado como um dos dois comissários responsáveis por elaborar um relatório a respeito. Era a chance que Geoffroy queria, ele tinha agora em suas mãos a oportunidade de juntar três dos grupos do “sistema natural” de Cuvier em um único plano base. E assim o fez no encontro semanal que aconteceu no dia 15 de fevereiro de 1830, defendeu a monografia dos jovens e provavelmente concluiu mais do que eles mesmos queriam com o objetivo de apontar que todos os animais de simetria bilateral se organizam a partir de um único plano. Foi a gota d`água, no dia 22 de fevereiro Cuvier chegou ao encontro com gráficos coloridos em baixo do braço para mostrar por A mais B que apesar de alguns órgãos de vertebrados e moluscos se parecerem, ocupam posições completamente diferentes dentro do corpo e assim não podiam ser homólogos, segundo critérios do próprio Geoffroy. Além do mais, a anatomia de cefalópodos (polvos e lulas) inclui diversos órgãos que não possuem correspondência em vertebrados. Após isso, Cuvier apresentou sua própria proposta a respeito da questão “Cefalópodos possuem diversos órgãos em comum com vertebrados, que exercem funções similares; mas os órgãos são diferencialmente organizados em moluscos, constantemente construídos de maneira diferente, e acompanhados de diversos outros órgãos que vertebrados não possuem”.
O debate esfriou após este episódio, ainda aconteceram algumas discussões sobre homologias dentro de vertebrados. Em geral, saiu sem vencedores e com dois perdedores, Meyranx e Laurencet, que após serem pegos no fogo cruzado sumiram da história da ciência sem vestígios.
Muitos anos se passaram e hoje temos diversas novas ferramentas para comparar os corpos dos diferentes animais. No próximo texto vou falar sobre como anda esse debate hoje em dia. Afinal, nós e as moscas somos descendentes de um único ancestral que criou o sistema nervoso organizado no meio do corpo? Mais um capítulo para nossa novela centenária!
Referências:
Amundson R (2005) The changing role of the embryo in evolutionary thought: Roots of Evo-Devo. Cambridge University Press.
Gould SJ (2002) The structure of evolutionary theory. Harvard University Press
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Eduardo Sequerra
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