Uma ameaça silenciosa e de grande distribuição geográfica sobre as populações de orcas
É inimaginável pensar em baleias como fonte de matéria-prima para uma atividade econômica ou como um recurso da matriz energética de um país. Difícil também imaginá-las como fonte valiosa de um óleo que já fora considerado uma commodity, em pleno século XIX, e por meio da qual edificou-se um negócio lucrativo que fora utilizado na iluminação pública e na lubrificação de máquinas industriais. As diferentes possibilidades do uso do óleo de baleia (sabões, tintas, vernizes, fabricação de velas, medicinal etc.), exploradas naquela época, lembram a versatilidade industrial do óleo de mamona, amplamente utilizado nos dias de hoje.
O advento da utilização do querosene, obtido a partir do petróleo, no final do século XIX, foi crucial para evitar a extinção de várias espécies de cetáceos, dentre os quais destaca-se os cachalotes. Isso sem falar na exploração com fins econômicos das mais diversas partes desses mamíferos fascinantes, como as barbatanas, carne, ossos, tendões e toucinho, por exemplo. Beira a ficção científica imaginar que tal contexto vigorou, por exemplo, no Brasil colonial.
As ameaças para esses animais foram mudando ao longo do tempo e, no século passado, diversificaram-se (os resíduos plásticos e industriais, o tráfego naval intenso e de grandes embarcações, as atividades de prospecção sísmica e a pesca industrial). Nenhuma dessas ameaças, entretanto, é tão conhecida como a caça. Mesmo depois de mais de 30 anos da moratória que proíbe a caça comercial de baleias ˗ a qual foi precedida por inúmeros acordos e tratados internacionais, ˗ a mesma ainda continua sendo uma ameaça, em especial, entre os países de tradição baleeira. Ameaça esta, que não apenas vigora, como ganha legitimação com a “caça científica”, em especial, em países como o Japão, onde a carne de baleia é muito apreciada. Já a Dinamarca e a Islândia, as quais possuem fortes indústrias pesqueiras, praticam a caça comercial em suas águas nacionais.
Uma ameaça silenciosa e de proporções até então inimagináveis veio à tona por meio de um estudo recente publicado na revista americana Science (“Prevendo o colapso da população global de orcas devido à poluição por PCB”). A sigla mencionada no título do artigo refere-se aos bifenilos policlorados (PCB), uma classe de compostos tóxicos, de natureza antropogênica, que prejudica a reprodução, afeta os sistemas endócrino, imunológico e aumenta o risco de câncer em vertebrados. Mesmo tendo sido banidos ainda na década de 70, a sua persistência ambiental, aliada à facilidade de dispersão e contaminação tornam esses compostos – bem como os demais, quimicamente afins a eles – um grupo de poluentes orgânicos altamente perigosos. No estudo, ao analisarem dados globalmente disponíveis sobre as concentrações do PCB em tecidos das orcas (Orcinus orca), os autores constataram que os tecidos adiposos apresentavam níveis de PCB muito acima daqueles que comprometem a fertilidade e o sistema imunológico desses animais. Esses dados, em conjunto com a característica de persistência ambiental desses poluentes, os seus níveis atuais na natureza e com a longevidade desses animais, foram utilizados para realizar uma modelagem de exposição, a qual permitiu prever que os impactos desses compostos no tamanho e na viabilidade dessas populações podem comprometê-las seriamente nos próximos 100 anos. Ou seja, há uma enorme preocupação quanto a um possível colapso de mais da metade das populações desses cetáceos.
É um modelo pessimista? Catastrófico? De baixa previsibilidade? Tão inimaginável como a suposição de outrora, na qual muitos diziam ser impossível que uma baleia pudesse afundar um navio, ainda mais na época áurea da indústria de caça às baleias? E Herman Melville, autor do best-seller da literária mundial, Moby Dick, inspirou-se no inimaginável? No real? Ou ainda em um evento de baixa previsibilidade? Ou até mesmo de ficção?
São muitas as perguntas, bem como as ameaças diante de espécies que são tidas como essenciais para a manutenção do equilíbrio dos oceanos (dispersão de nutrientes, manutenção do fitoplâncton e suporte de ecossistemas, por exemplo). Abatê-las, outrora, era sinônimo de progresso econômico e, consequentemente, social. Essa concepção ainda permanece em alguns países, principalmente por questões culturais seculares. Para outros países, entretanto, impedi-las de desaparecer por falta de escrúpulos comerciais é sinônimo de progresso civilizatório. Seriamos, então, pessimistas, catastróficos, ou realistas ao parafrasear Rachel Carson da seguinte forma: “pela primeira vez na história do mundo, agora todo cetáceo está sujeito ao contato com substâncias químicas perigosas, desde o instante em que é concebido até a sua morte”?
Referências
Desforges et al., Predicting global killer whale population collapse from PCB pollution. Science 361, 1373–1376 (2018), 28 September 2018.
Fabiana Comerlato (2010). A baleia como recurso energético no Brasil. Anais do Simpósio Internacional de História Ambiental e Migrações.
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Thiago Jucá é biólogo, doutor em Bioquímica de Plantas e empregado da Petrobrás.
Thiago Lustosa Jucá
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