Um olhar para a realidade periférica Coluna do Jucá

quinta-feira, 13 setembro 2018
Rérisson Máximo, pesquisador no LabHab/USP (Foto: Acervo pessoal)

O professor Rérisson Máximo, do IFCE, acredita na expansão e interiorização do ensino federal que possibilita fazer pesquisa e gerar inovação no interior do país

Na semana em que completa um ano no ar, a Coluna do Jucá traz a entrevista com Rérisson Máximo, professor do Instituto Federal do Ceará (IFCE), campus de Quixadá. Ele é mestre em Arquitetura e Urbanismo pelo Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP) e especialista em Habitação e Desenvolvimento Urbano pelo Institute for Housing and Urban Development Studies da Erasmus University, em Rotterdam, na Holanda. Rérisson, que também é arquiteto-urbanista (UFC) e técnico em edificações (ETFCE, atual IFCE), está concluindo seu doutorado em Arquitetura e Urbanismo pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Como pesquisador do Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos (LabHab) da USP e colaborador do Laboratório de Estudos em Habitação (LEHAB) da UFC, ele desenvolve atividades de pesquisa e extensão nas áreas de planejamento urbano e políticas habitacionais.

Coluna do Jucá: Professor, um ex-orientando seu desenvolveu um dispositivo que pode cortar a distribuição de água enquanto a pessoa não está embaixo do chuveiro, assim, evitando o desperdício. O sucesso foi tanto que o projeto foi um dos cinco selecionados para o Red Bull Basement 2018 – que apoia trabalhos que fazem uso da tecnologia para transformar a sociedade. Você poderia falar um pouco desse projeto?

Rérisson Máximo: É um dispositivo que controla o fluxo de água dos chuveiros residenciais comuns existentes nos banheiros de nossas casas e apartamentos, sendo acionado automaticamente com a presença do usuário. Ele foi desenvolvido como Trabalho de Conclusão de Curso por um ex-aluno do Bacharelado em Engenharia Ambiental e Sanitária do IFCE, campus de Quixadá. O trabalho resulta de uma ideia sugerida pelo próprio aluno que é a busca de uma solução para um problema simples, mas bastante presente na realidade das cidades nordestinas, inseridas no semiárido: o desperdício de água em um contexto de escassez de recursos hídricos. A intenção é que este dispositivo – que tem fácil instalação e um custo financeiro baixíssimo se comparado tanto à economia que gera quanto a outras soluções semelhantes disponíveis no mercado –, quando acoplado ao chuveiro, possa reduzir o desperdício de água e, ao mesmo tempo, promover uma mudança de comportamento dos usuários quanto à necessidade do uso adequado dos recursos hídricos. Inicialmente, desenvolvemos no IFCE um protótipo bem simples, utilizando materiais adaptados e de baixo custo, mas que permitiu a realização dos testes de funcionamento e a validação do dispositivo. A seleção para o Red Bull Basement 2018 – uma espécie de residência tecnológica que, durante dois meses de estadia em São Paulo, oferece estrutura física, tutores especialistas e recursos financeiros para aprimorar os projetos selecionados – permitirá que aquele protótipo inicial se transforme num produto mais próximo de ser difundido junto à população.

CJ: A pesquisa foi realizada no interior do estado, no sertão cearense, distante mais de 160 km da capital. Considerando-se esse contexto, você acha que fazer inovação fora da capital ainda é um desafio?

RM: Fazer pesquisa, produzir conhecimento e gerar inovação fora dos grandes centros urbanos já consolidados, não apenas nas capitais, é bastante desafiador. Mas, diante do processo recente de dispersão pelo território nacional de instituições federais de ensino – onde se concentra grande parte destas atividades no Brasil –, é essa realidade adversa que pesquisadores, professores, instituições e alunos enfrentam. Não dá para fugir disso: é uma realidade, é uma tendência e é o caminho se pensarmos que a expansão e a interiorização do ensino federal superior e técnico são princípios importantes de uma política pública que busca democratizar e universalizar o acesso à educação em todos os níveis. O que chamo de realidade adversa são as dificuldades, os problemas e as limitações que os campi de universidades e institutos federais do interior têm se comparados aos de capitais e de outros grandes centros urbanos, que também os possuem, mas em menor dimensão. E aqui eu falo desde a carência de recursos financeiros para investimento em laboratórios e para o financiamento de projetos até a dificuldade de fixação de professores e pesquisadores em locais mais distantes das capitais. Sobre este aspecto, cabe uma reflexão. A histórica concentração do ensino superior nas capitais e em outras grandes cidades fez com que muitos dos professores e pesquisadores que hoje atuam no interior tenham se formado sem uma visão mais ampla do território nacional e das possibilidades e desafios que temos enquanto país de dimensões continentais.

Red Bull Basement 2018 (Foto: Acervo pessoal).

CJ: Então esse é um caminho cheio de possibilidades para o desenvolvimento científico e tecnológico do país?

RM: Ouso dizer que, neste momento recente que ocorre uma difusão da pesquisa pelo interior, estamos diante de um encontro um tanto quanto conflituoso, mas que pode trazer resultados importantes para a pesquisa, para a ciência, para a educação: o encontro de profissionais formados nas grandes cidades com a realidade interiorana. Isso porque, é o que eu acredito, há um potencial enorme que essa nova conjuntura traz ao possibilitar o desenvolvimento de estudos mais voltados para a realidade local, tanto pesquisas básicas, que podem permitir a formação de novos cientistas; quanto pesquisas avançadas, capazes de realizar descobertas científicas e tecnológicas a partir do olhar para a realidade periférica (e muitas vezes esquecida) do sertão. Tanto o uso na indústria farmacêutica de plantas nativas com propriedades terapêuticas tradicionalmente conhecidas pela população interiorana quanto o projeto de dispositivos automáticos para controle do fluxo de água em chuveiros nos mostram que é possível, sim, e apesar dos desafios (ou mesmo a partir deles), fazer pesquisa, produzir conhecimento e gerar inovação no interior.

CJ: Passada a euforia pela expansão dos Institutos Federais (IFs), em especial, a sua interiorização, critica-se muito esse modelo por conta da pulverização de recursos e pela perda da qualidade do ensino. Projetos como o do seu ex-aluno, bem como o ingresso de estudantes dos campi do interior em alguns dos melhores programas de pós-graduação do país, representam bons argumentos para contrapor essas críticas?

RM: Existem algumas críticas importantes sobre a recente expansão do ensino federal, tanto de universidades quanto de institutos federais. Mas é preciso que tais críticas sejam melhor qualificadas e analisadas com cautela, inclusive com viés científico, e não apenas político. Digo isso porque diversos estudos acadêmicos recentes, principalmente pesquisas na área de Educação e Ciência Política, têm se dedicado a buscar entender e analisar tal processo. Não se pode fazer um balanço dessa expansão apenas com base em achismos ou opiniões rasas. É verdade que existem problemas na forma como esse processo ocorreu. A meu ver, houve uma expansão bastante acelerada e com certa falta de planejamento institucional, o que gerou algumas distorções, como a criação de cursos sem vínculo com demandas sociais ou ainda a implantação de campi sem infraestrutura mínima ou voltados para atender a clientelismos políticos. A realidade é que saltamos de 148 campi de Universidades Federais em 2003 para 321 em 2015 e que fomos de 142 campi de Institutos Federais para 554 neste mesmo período, segundo dados do Ministério da Educação. Tal expansão não deixa de ser uma materialidade da histórica bandeira de luta por “mais recursos para educação”. Essa expansão acelerada, com razão criticada sob determinados aspectos, não anula ou diminui os impactos que tais ações tiveram sobre a sociedade e mesmo sobre o território. Há estudos que indicam, por exemplo, que a instalação de um campus de uma instituição federal de ensino é capaz de trazer dinamismo econômico tanto quanto empreendimentos industriais ou turísticos. Cidades pequenas e médias do interior têm sentido um impacto bastante positivo a partir da instalação desses complexos educacionais. E isso é o resultado direto dos recursos sendo distribuídos ao longo do território. No meu entendimento, isso faz parte dos princípios adotados pela própria política de buscar expandir e interiorizar o ensino federal. O que não seria um problema, ainda mais se o cenário econômico que apontava um crescimento do orçamento em educação – como colocado no Plano Nacional da Educação de 2014, muito em função das receitas que seriam geradas pelos royalties do pré-sal –, tivesse se concretizado. Com a crise econômica e política que estamos vivendo na atualidade, que provoca uma asfixia financeira e um contingenciamento de recursos nas instituições federais de ensino, há fortes riscos de todo esse avanço ser desconstruído. Quanto à crítica sobre redução na qualidade do ensino, na verdade o que vemos é um destaque positivo dos alunos dos Institutos Federais em avaliações nacionais como o ENEM ou olímpiadas escolares, demonstrando, ao contrário do que por vezes é colocado, que a educação oferecida pelos IFs tem qualidade superior inclusive à oferecida em escolas particulares. O que pode ser ponderado quanto à qualidade de ensino é que há, no interior, uma menor qualidade do ensino básico, cuja responsabilidade é de governos estaduais e municipais. E aí, os IFs passam de suposto problema a uma efetiva solução, por permitir que os alunos do interior suplementem sua formação com uma educação de maior qualidade.

Visita de campo com alunos do IFCE campus Quixadá (Foto: Acervo pessoal).

CJ: O ilustre geógrafo Milton Santos utilizou-se do conceito de exílio urbano, ainda na década de 1980, referindo-se às regiões periféricas das grandes cidades, mais especificamente à grande São Paulo. Você acha que até o início do processo de expansão, e consequente interiorização das universidades, as grandes distâncias das regiões periféricas das cidades aos grandes centros, os custos de deslocamento e os gastos com moradia, eram entraves que acentuavam as desigualdades no ingresso ao ensino superior público, o que explicaria, em parte, a elitização da mesma, já que essa questão diz respeito não apenas ao ingresso, mas também à permanência?

RM: É preciso fazer uma distinção de escalas, mas o conceito elaborado por Milton Santos para a realidade intraurbana pode muito bem ser adaptado para um contexto regional. Quando falou em exílio urbano, ele estava se referindo às barreiras impostas aos moradores das periferias das grandes cidades que vivem praticamente imobilizados dentro dos seus bairros, pobres de equipamentos coletivos e de serviços urbanos, e que poucos acessam as áreas centrais devido o custo e a qualidade dos transportes, condição que os tornam exilados. Acredito que isso também se aplique ao morador do interior que, pela distância territorial e pelas condições econômicas, tem maiores dificuldades de se deslocar para as capitais e centros urbanos regionais, locais onde historicamente foram implantadas as instituições federais de ensino superior e técnico. Penso que esse contexto tem muito a ver com uma certa elitização, sobretudo, do ensino superior. Historicamente, o acesso ao ensino superior no Brasil é restrito e apresenta forte recorte de classe. Segundo dados do IBGE de 2016, apenas 15% da população brasileira com mais de 25 anos possuía ensino superior. Mas, felizmente, há uma mudança recente dessa realidade. E isso, depois de duas ações importantes que contribuíram com a melhoria desse cenário: as cotas, raciais e sociais; e a expansão e a interiorização do ensino federal. Isso possibilitou uma maior democratização do acesso nas UFs e nos IFs, permitindo que mais jovens moradores das periferias urbanas e de pequenas cidades do interior pudessem ter uma formação superior ou técnica. No campus do IFCE onde trabalho, na cidade cearense de Quixadá, são muitas as histórias de alunos que apenas estão cursando o ensino técnico ou superior por conta da proximidade do campus ao local de sua residência. E nesse caso falo tanto daqueles estudantes que moram naquela cidade, mas também daqueles que de deslocam, diariamente, de outras cidades próximas. Não fosse isso, muitos destes jovens não teriam condições de continuar seus estudos para além da formação básica. Pelo contrário, ao invés de interromperem os estudos muitos deles tem continuado sua formação. Há exemplos de ex-alunos que hoje estão fazendo mestrado em Fortaleza ou mesmo tentando ingresso em programas de pós-graduação no Sudeste. Mas, para além da democratização no ingresso, surge outro desafio que é a permanência desses jovens durante a sua formação. Segundo levantamento feito pela Andifes em 2014, mais da metade dos alunos de universidades federais possuíam renda familiar bruta de até três salários mínimos. Ou seja, estamos falando de um perfil de estudantes que, para concluírem sua formação, vão precisar de algum tipo de ajuda institucional, mesmo aquelas mais básicas como auxílio-moradia. E aí entra o papel importantíssimo da política de assistência estudantil, que de alguma forma também foi reforçada nos últimos anos. Toda essa conjuntura, que infelizmente vem sendo desmontada recentemente, tem contribuído para que, por meio da educação, tanto o jovem morador das periferias urbanas quanto aquele que reside em uma pequena cidade do interior, possa fugir desse exílio.

Professor Rérisson no IFCE campus Quixadá (Foto: Audiovisual IFCE)

CJ: A mobilidade urbana, a intensa urbanização e a precariedade das periferias são grandes problemas a serem superados nas cidades, principalmente porque o fracasso no enfrentamento desses problemas tem potencializado o contexto de vulnerabilidade social no qual os jovens das periferias estão inseridos. O exemplo disso é a violência nesses locais, como a zona norte de Natal, que experimentou surtos de assassinatos de jovens – quase uma guerrilha urbana. Seria possível, por meio do planejamento urbano e das políticas habitacionais contribuir, por exemplo, para difundir um contexto de educação científica entre jovens e ajudar mudar a realidade social na qual estão inseridos?

RM: O planejamento urbano e as políticas urbanas por si só são incapazes de alterar condições estruturais que determinam a forma como as cidades brasileiras são construídas. Não é por falta de políticas e planos bem elaborados e bem-intencionados que as cidades sofrem o que a professora Ermínia Maricato chama de crise urbana. Por algum tempo essa visão tecnocrática predominou, mas isso já foi, no geral, superado. Hoje, essas políticas precisam ser elaboradas e implementadas com a participação da sociedade. É o que está posto no Estatuto da Cidade, Lei Federal de 2001 que regulamenta os capítulos sobre política urbana da Constituição Federal. E é o que se viu nas duas últimas décadas, apesar das críticas sobre a forma como se deu essa participação. Ou seja, parte da população passou, de alguma forma, a se inserir no debate sobre os rumos das cidades. Mas essa participação na elaboração e implementação de políticas urbanas está longe de ditar realmente como as cidades vão ser construídas. Para além do local de moradia, do trabalho, do lazer, as cidades são um enorme campo de conflitos e disputas, sobretudo de localizações. E essa disputa é cada vez mais desigual, predominando quase sempre o poder econômico. Cada vez mais as cidades seguem as regras e a lógica do mercado imobiliário, do grande capital. E isso explica, em certo sentido, muitos dos problemas que as cidades enfrentam. Um deles é exatamente o custo para se morar na cidade. Por conta do alto preço que se paga para ter um lugar para morar, grande parte da população de Natal, mas também de Fortaleza e de outras capitais e grandes cidades, vai morar em locais precários e/ou distantes, onde o preço da terra é mais barato. Nesses locais, muitas vezes não se tem o direito pleno de acessar os serviços urbanos e os equipamentos coletivos. São locais onde não existem ou funcionam pessimamente o posto de saúde, a escola, a praça, o comércio, o transporte. É um território às vezes invisível, onde o Estado não está totalmente presente e que passa a ser comandado por poderes paralelos, como o crime organizado e o tráfico de drogas. E isso explica parte do problema da violência e da vulnerabilidade social que atinge, sobretudo, os jovens moradores de periferias urbanas. As políticas urbanas e habitacionais poderiam entrar aqui, com ações concretas de melhoria das condições de moradia e que realmente alterassem essa realidade, mas infelizmente não é isso que ocorre. Mas apesar dessa conjuntura adversa, acredito que o contexto pós-Constituição Federal que ampliou as possibilidades de participação da sociedade nas políticas de um modo geral, em particular aquelas direcionadas às cidades, também tem permitido que esses jovens passem a ter uma postura mais atuante no entendimento de sua realidade e no enfrentamento dela. Na medida em que as políticas urbanas e habitacionais passaram a demandar instâncias de participação, como os conselhos setoriais e locais, isso abriu a possibilidade para que outros atores passassem a atuar nesses espaços. Contudo, acredito que o que pode ajudar a mudar a realidade social vai além da formalidade das políticas. Diante de condições de vida cada vez mais adversas, e com base em práticas militantes sobre o cotidiano, ganham força pulverizados movimentos e coletivos de jovens nas periferias de grandes cidades, com pautas específicas sobre cultura, raça ou problemas sociais e que têm buscado o seu reconhecimento e lugar na cidade. E esse reconhecimento passa por um entendimento da realidade em que eles vivem. Por isso que a formação básica dada a essa juventude, no local onde moram, deve trazer exemplos de sua realidade. Aqui estaria a importância da educação científica para estes jovens. Se, ao invés de aulas genéricas e teóricas, os professores das escolas locais privilegiassem apresentar situações práticas e próximas do cotidiano, cada vez mais teríamos jovens interessados pela educação e pela ciência e com uma formação sobre sua realidade. Isso possibilitaria, dentre outras coisas, que eles entendessem quais os atores e os interesses que estão em jogo no processo de construção das cidades; ao mesmo tempo em que reconheceriam que a precariedade em que vivem não é uma condição natural, mas um resultado da maneira como as cidades são construídas.

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Leia o texto anterior: Tragédias anunciadas

Thiago Jucá é biólogo, doutor em Bioquímica de Plantas e empregado da Petrobrás.

Thiago Jucá

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