Mariluce Moura: “matam-se muitas vocações científicas no país” Entrevistas

terça-feira, 17 julho 2018
(Foto: Helaine Matos)

A trajetória de vida da jornalista baiana que se tornou referência em Jornalismo Científico no Brasil e sonha em popularizar a ciência entre os jovens

Mariluce de Souza Moura é baiana, jornalista, mestre e doutora em comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e referência nacional quando o assunto é Jornalismo Científico e Divulgação Científica.

Ela veio de uma família grande para os dias atuais: é a quarta filha, de um total de 11 irmãos. Sua mãe, a costureira Regina Nilza Moura e seu pai, o comerciante Laert de Souza Moura, criaram os filhos em Santa Luzia do Lobato, na periferia de Salvador. A infância pobre foi, porém, marcada desde muito cedo pelo universo dos livros.

A jornalista aprendeu a ler com a mãe e se recorda do período de descobertas na infância: “minha casa tinha uma biblioteca incomum para uma casa de família pobre. Tinha muitos clássicos da literatura brasileira e ocidental, e meus pais eram leitores vorazes. Aprendi a conhecer Machado de Assis, Alexandre Dumas, Shakespeare ou José de Alencar pelos meus pais. Era uma coisa completamente atípica. Porque embora fossem realmente pobres, ainda que tivéssemos aquela coisa da sobrevivência assegurada, mas não muito mais do que isso, eles eram muito preocupados com a educação dos filhos. Muito preocupados! o projeto deles era ver todos os filhos formados na universidade”.

 

Dos 11 aos 17 anos, Mariluce estudou no Colégio de Aplicação da Universidade Federal da Bahia (UFBA), onde cursou o ginásio e o curso científico e clássico, o que hoje corresponde ao ensino fundamental e médio. Além dos professores regulares, em determinados períodos tinha algumas aulas com os formandos, a título de prática de ensino, em  cursos de licenciatura nas mais diversas áreas, supervisionadas pelos titulares. Era um verdadeiro “laboratório de vida” como ela mesma define. Foi lá, que ainda adolescente, formou seu pensamento político: “eu aprofundei a minha primeira visão política, por exemplo, com os professores de História, Geografia… eu diria que minha primeira percepção política de esquerda se dá no âmbito da escola. Quando eu tinha mais ou menos 15 anos, já me via como alguém que se opunha à ditadura e que teria uma militância política”.

 

No ano de 1969, Mariluce é aprovada para o curso de Jornalismo na UFBA, tendo se formado em 1972. Nesse período, fez as primeiras incursões no jornalismo econômico, que adiante viria a escolher em razão da menor censura que essa editoria sofria durante a ditadura. “Naquele momento de censura violenta que se instaurou depois do AI-5, o lugar do jornalismo com mais liberdade era o jornalismo econômico”. Além disso, a convivência, a partir de 1972, com o marido, Gildo Macedo Lacerda, que fora estudante de Economia na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) até ser cassado pelo decreto 477, também, a estimulou  nessa direção.

Na vida pessoal, em 1973, grávida, Mariluce foi presa e torturada pelos agentes da repressão política, em Salvador. O marido, Gildo, foi assassinado num quartel do Exército em Recife, e seu corpo jamais foi entregue à família.

Em 1975, fez concurso para professora na UFBA e foi aprovada em primeiro lugar, mas no mesmo ano o Ministério da Educação e Cultura (MEC) recomendou que fosse demitida em razão de sua militância política, o que a administração da UFBA cumpriu em fevereiro de 1976. Foi embora de Salvador, mudou-se para o Rio de Janeiro para fazer Mestrado, e a partir daí consolidou seu nome por duas décadas no cenário nacional no Jornalismo Econômico com passagens pelo O Globo, Jornal do Brasil, Gazeta Mercantil, entre outros.

A partir de 1988 passou a atuar na cobertura de ciência e tornou-se uma das primeiras jornalistas do país a dedicar-se ao Jornalismo Científico. Em 1999 criou e foi diretora de uma das maiores revistas especializadas em divulgação de ciência no Brasil: a Pesquisa Fapesp, da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), onde permaneceu até dezembro de 2014.

Com a saída da Fapesp, Mariluce Moura põe em prática um antigo projeto: o Ciência na Rua, com o objetivo de levar ciência com humor para o público jovem. Em dezembro de 2015, ela foi reintegrada à Universidade Federal da Bahia (UFBA) por intermédio da Lei da Anistia, 40 anos após ter sido demitida do cargo pelo regime ditatorial e alguns meses depois tornou-se, por direito, professora titular da Faculdade de Comunicação (Facom). Na UFBA, onde trabalha atualmente, é, também, assessora de comunicação e divulgação científica e foi lá que ela recebeu o Nossa Ciência para falar sobre sua trajetória de vida, desafios, conquistas, projetos e perspectivas no Jornalismo Científico.

(Foto: Helaine Matos)

Nossa Ciência: Qual o seu projeto no Jornalismo Científico após a saída da FAPESP?

Mariluce Moura: O meu projeto de vida se chama Ciência na Rua. Se eu viver até os 90 anos, eu vou estar dedicada a isso. Quando saí da FAPESP eu já queria desenvolver um projeto que fosse de massa e atingisse o público de 14 a 25 anos. Formulei a partir de 2009 esse projeto chamado Ciência na Rua. Eu o pensava a partir do meio impresso, pensava em distribuir uma espécie de Pasquim da ciência, um jornal bem humorado, nos faróis, nos cruzamentos, e que logo teria articulado um programa de TV, um programa de rádio etc., que tratasse da produção científica com muito humor, voltado para esse público que acho que precisa ser alimentado na vontade de ampliar sua cultura científica. Foi isso que esteve no meu horizonte desde que eu estava ainda na Fapesp, era o que eu queria fazer depois dos 60 anos. Só que eu saí da Fapesp no momento em que começava a crise. Cheguei a apresentar o Ciência na Rua como projeto especial no CNPq, quando era presidente o físico e professor Glaucius Oliva (USP-São Carlos), um grande incentivador da ideia. O projeto receberia uns poucos milhões por ano, nada de muito caro, mas, na prática da vida, tive que me contentar em fazer temporariamente do Ciência na Rua um site produzido a custo baixíssimo, com muito trabalho voluntário de pessoas muito competentes e que, ao longo de 2016, foi apoiado pelo programa Biota-Fapesp, graças à aposta entusiasmada de seu coordenador, professor Alfredo Joly (Unicamp). O projeto tem um braço de pesquisa, ligado especialmente a investigação de formas mais eficientes de comunicação e divulgação da ciência para o público mais jovem. E nesse âmbito esteve, primeiro, ligado ao Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor – Unicamp) e agora tem como instituição-sede a UFBA. Eu tenho grandes expectativas de, passo a passo, conseguir fazer o Ciência na rua crescer sempre com esse foco de ser uma iniciativa que traga, de fato, a ciência para perto das pessoas mais jovens. A ciência, a produção científica brasileira, sobretudo, precisam disso, seja através de jornalismo, de vídeos, de animação, de quadrinhos, de teatro, do embate direto com o público, enfim, de múltiplas formas.  Esse é o projeto que me move! Eu falava pela Pesquisa Fapesp para um público bem informado e queria muito falar para um público mais cru. Uma coisa meio missionária? Não sei, não creio! Mas é apaixonante essa possibilidade de falar. Eu acho que matam-se muitas vocações científicas no país e quero contribuir para as vocações científicas, e para o espalhamento de uma cultura científica. Acho que o momento é muito difícil e, com grandes sacrifícios, mantemos o Ciência na Rua querendo que ele cresça.

NC: Em 2015, a senhora é reintegrada como Professora da UFBA. Mas para entender esse processo atual, é preciso relembrar do seu passado durante o período da Ditadura. Pode nos contar sobre essa parte de sua história?

MM: Eu tive grandes problemas por conta da ditadura. Além de ter sido presa estando grávida, além de o meu marido ter sido brutalmente assassinado pela ditadura, além de toda essa destruição de uma vida, a perseguição perdurou e invadiu minha vida profissional. No primeiro semestre de 1975, com 24 anos e uma filha de um ano, fiz o concurso para auxiliar de ensino da UFBA, primeiro degrau da carreira docente. Passei em primeiro lugar, fui contratada, dei aula no segundo semestre de 1975, e estava me preparando para o mestrado na UFRJ (eu me inscrevera em 1973, e não fizera as provas porque havia sido presa em outubro) quando veio a demissão. Só para lembrar, a ditadura não precisava definir motivos para prender quem quer que fosse, só no julgamento dos que sobreviviam, mais adiante, definiriam seus pretextos – em meu caso e no de tantos companheiros alegariam que o motivo fora tentativa de reorganização de partido clandestino. Eu era militante da Ação Popular (AP), um partido dizimado no segundo semestre de 1973. E a informação da época, de que só eram mortos militantes ligados à luta armada, é mentira! A AP não era um partido da luta armada. A ditadura matou em torno de 500 militantes, opositores do regime, cujos nomes sabemos, e muitos mais que não sabemos, que muitas vezes nem eram ligados a partidos, como mostraram recentemente as comissões da verdade. Fomos presos, quase uma dezena de pessoas, em Salvador, Gildo foi levado para Recife e lá foi morto sob tortura, como comprovou amplamente a Comissão da Verdade de Pernambuco, que fez um notável trabalho. Mas, sigamos: em 1975 fiz o concurso, passei em primeiro lugar, comecei a dar aulas e estava me preparando para ir fazer o mestrado na UFRJ. Mas o MEC mandou me demitir em novembro de 1975.

NC: O que aconteceu depois disso?

MM: A reitoria da UFBA segurou um pouco e em fevereiro de 76, quando eu já estava me mudando para o Rio, já tinha até alugado apartamento lá, me informaram que eu estava demitida da UFBA, e não tinha jeito! Estava demitida, era um tempo, ainda, de muito fechamento, ninguém protestou, e eu mudei para lá com um emprego no Jornal O Globo. Em 2011, quando eu já obtivera a anistia para Gildo e o estado brasileiro reconhecera, enfim, que era o responsável por seu assassinato, depois de vários processos concluídos, desde aquele que permitira a nossa filha ter o nome do pai na certidão, um pai que era morto e não desaparecido, condição em que a ditadura o jogara, mesmo noticiando sua morte (numa versão falaciosa), eu resolvi, enfim, entrar na Comissão da Anistia pedindo reparação para mim. Disso resultou o julgamento de meu processo na Comissão em 15 de outubro de 2015, dia do professor. Tem um lado curioso nisso, porque como eu era conhecida como jornalista, jamais como professora, a Comissão tinha uma certa dificuldade em levar à frente um processo de reintegração na universidade, mas a relatora do processo, Rita Sipahi, fez um belo trabalho. Deixou claro que eu não continuei professora porque a ditadura não permitiu, enquanto jornalista pude continuar sendo. No julgamento, o presidente da comissão perguntou se eu preferia uma indenização em parcela única em torno de 200 mil reais ou ser, de fato, reintegrada à UFBA.

(Foto: Helaine Matos)

NC: Foi então que escolheu a reintegração à UFBA?

MM: Sim, eu achava e acho que a reintegração tinha um peso simbólico muito grande. Só que eu pretendia ser reintegrada e pedir aposentadoria imediatamente, afinal, tinha esse direito. Mas o reitor da UFBA, João Carlos Salles, que eu conhecera um ano antes e me impressionara muito, o pró-reitor de Pesquisa, Olival Freire Júnior, que eu já conhecia e admirava como pesquisador brilhante, argumentavam que eu deveria ao menos passar um tempinho na UFBA e trabalhar com minha expertise em divulgação científica na universidade. Eu achava muito difícil sair de São Paulo, até por razões familiares, mas resolvi pensar no assunto. E terminei fazendo essa opção. Cheguei, o vínculo institucional era com a Faculdade de Comunicação, dei aula, mas em maio de 2016 fui nomeada assessora de Divulgação Científica, e a partir de 2017 fiquei mais concentrada no trabalho na reitoria. Penso que nesse momento, estou em uma encruzilhada, dividida entre a vontade de voltar para São Paulo e seguir trabalhando com o reitor João Carlos Salles, reeleito para um novo mandato de quatro anos. Além de filósofo brilhante, ele é um gestor de alta competência, com uma visão de universidade pública inspiradora.

NC: E quais as disciplinas que a senhora lecionou na UFBA após a reintegração? Há algo relacionado ao Jornalismo Científico?

MM: Sim. Eu ministrei duas disciplinas diferentes. Uma optativa, por dois semestres, e chamei o curso que dei de Jornalismo Científico, Divulgação da Ciência e Comunicação da Ciência, com pouquíssimos alunos. E lecionei uma disciplina obrigatória na graduação, Comunicação e Atualidades I, e foi legal! Me senti muito livre para definir o curso e, como gosto muito do livro da Lilian Schwartz e Heloísa Starling, Brasil: uma Biografia, até pela maneira como liga a imprensa ao processo político brasileiro, eu o escolhi como uma espécie de guia para olhar o Brasil dos anos 1930 até 2015 e enquanto buscávamos as produções da imprensa (e mídia, mais adiante) ao longo de todo esse período e até o presente. Ao mesmo tempo, tomei Eichmann em Jerusalém e As bases do totalitarismo, de Hannah Arendt, e Império, de Michael Hardt e Antonio Negri, como leituras que ajudariam muito a compreender no plano internacional o que a comunicação de massa tem a ver com o processo político contemporâneo e no passado recente. Na contemporaneidade, tratamos inclusive do governo Trump e do governo Temer examinando notícias em diferentes meios.

NC: E no cenário mais recente, a difusão da internet e das redes sociais, na sua opinião, colaboram para uma maior visibilidade do Jornalismo Científico?

MM: Eu acho que a disseminação do Jornalismo Científico, sua difusão, pode ser largamente favorecida pela internet, pelas redes sociais. Mas penso que, em paralelo, precisamos de algumas coisas referenciais nos chamados velhos formatos. São referenciais de impressos, de produção bem cuidada para a TV, rádio, podcast… Temos que aprender a trabalhar com todas essas possibilidades e aprender a lidar com essa avenida que a internet abre em termos de difusão e disseminação da notícia sobre a produção do conhecimento, que é o Jornalismo Científico.

NC: E o quê diferencia o Jornalismo Científico da Divulgação Científica?

MM: Eu abordo isso de duas formas: primeiro é a ideia de que o Jornalismo Científico é, antes de qualquer coisa, Jornalismo, portanto, ele está ancorado, está fundamentado, nas práticas e nas reflexões daquilo que é propriamente Jornalismo. Jornalismo Científico é Jornalismo, antes de ser científico, o substantivo antecede o adjetivo. Portanto, todas aquelas máximas do Jornalismo quanto ao direito de ouvir as diferentes visões, de ter o contraditório, de ser o mais fiel à verdade factual… todas aquelas máximas que cercam o Jornalismo precisa valer para o Jornalismo Científico. Por outro lado, o Jornalismo Científico, faz parte, também, da Divulgação Científica. Eu vejo a Divulgação Científica como um lugar de múltiplas produções, instituições, os museus de ciência constituem uma forma de Divulgação Científica, o cinema faz Divulgação Científica, o teatro faz Divulgação Científica, na literatura tem muito de Divulgação Científica. Então, veja que Divulgação Científica envolve uma abundância fantástica de meios, de instrumentos, linguagens, etc., entre elas, o Jornalismo Científico. Ou seja, o conceito de Divulgação Científica, do meu ponto de vista, é um conceito mais abrangente,  mais inclusivo e mais geral do que o conceito de Jornalismo Científico

 

NC: O portal Nossa Ciência tem a proposta de fazer Divulgação Científica da Região Nordeste. Como a senhora avalia experiências assim?

MM: O portal Nossa Ciência é uma contribuição fundamental nesse sentido. Você tem algumas contribuições muito interessantes no Norte, por exemplo, quando um pesquisador do Museu Emílio Goeldi, no Pará, fez junto com jornalistas de O Liberal a revista Ciência Viva e a encartou nos exemplares do jornal… Ou quando a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (Fapeam) fez sua revista. Creio que aconteceram algumas boas tentativas no Nordeste, como a da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Alagoas (Fapeal), da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Pernambuco (Facepe), etc. Mas veja que tudo se desenvolve sempre com grandes dificuldades. Entre muitos outros, o desafio de quem faz divulgação no Nordeste é colocar o material produzido em circulação nacional, e eu acho que o portal Nossa Ciência faz isso com muita competência e galhardia.

 

Helaine Matos

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