Almas de embriões, Jurassic Park e organóides de cérebros de Neandertais: exemplos de uma biologia diferente da que se discute no Século XXI
Que seres maravilhosos somos nós Homo sapiens não é? O simples fato de estarmos em frente dessa máquina lendo esse texto que compartilhamos por uma rede mundial de comunicação é incrível! Mas o que a biologia moderna diz atualmente sobre o que nos torna seres humanos muda todo o nosso conceito de individualidade. E tem consequências para diversas esferas de nossa sociedade.
Segundo a teoria evolutiva do Século XX toda a variabilidade vem de alterações na sequência do DNA. Esta variabilidade, que causaria as alterações observadas nos organismos, seria então alvo de seleção natural, de acordo com o sucesso do organismo em sobreviver e reproduzir. Mas acontece que as alterações no DNA não se expressam obrigatoriamente na forma, fisiologia e comportamento dos organismos (o fenótipo). Na verdade, pouquíssimas mutações no DNA levam a um fenótipo em todos os organismos que as possuem. Isso fica muito claro em estudos de gêmeos monozigóticos discordantes para uma doença. Em 2010, Baranzini e colaboradores analisaram a sequência de DNA, a expressão de RNAs mensageiros e as alterações químicas no genoma de gêmeos em que somente um desenvolveu esclerose múltipla, uma doença autoimune que causa a perda da bainha de mielina nos nervos. E a conclusão foi que nenhum padrão foi encontrado que explicasse o fato do outro irmão permanecer saudável. Isso é, uma parte da história não está contada.
Organismos em desenvolvimento não são passivos quanto a variações ambientais e na sequência do DNA. Ao invés disso, eles possuem diversos mecanismos que garantem que o corpo se forme em situações de estresse. Um desses mecanismos são as proteínas chamadas chaperonas. As chaperonas garantem que proteínas recém sintetizadas assumam sua forma tridimensional, essencial para sua função. A sua inibição libera a formação de um maior número de possibilidades contidas no genoma, possibilitando a expressão de doenças e até formas mais adaptadas ao ambiente.
O DNA não é uma receita de bolo seguida por uma máquina. Os organismos adaptam a interpretação da receita e a evolução pode selecionar interpretadores mais frouxos ou mais fiéis.
Outra questão importante é sobre o que é um indivíduo em biologia. Uma vaca nunca seria possível sem as bactérias dentro do seu sistema digestório. A vaca não tem as enzimas necessárias para digerir celulose. Então, o genoma herbívoro, alvo de seleção, é um combinado de genes de múltiplas espécies que permite que esse ator na cadeia alimentar exista. Em 2013, Smith e colaboradores estudaram gêmeos discordantes para uma condição de severa desnutrição chamada Kwashiorkor. Sua conclusão foi que a composição das espécies de bactérias intestinais dos gêmeos que desenvolviam Kwashiorkor é o que os deixa mais suscetíveis a desnutrição do que seus irmãos. Logo, o que determina a suscetibilidade de um ser humano a problemas nutricionais é um grupo de espécies que somam todas suas enzimas na digestão do alimento. Nossas bactérias são essenciais para a maturação de nosso sistema imune, influenciam o funcionamento de nosso sistema nervoso e diversas moléculas circulando por nosso sangue foram produzidas por elas. Assim, o indivíduo alvo de seleção tem que ser esse condomínio.
Bom, tudo isso tem uma implicação muito importante, o óvulo fertilizado não é suficiente para formar um ser humano. Nem os genes contidos no núcleo são suficientes para sustentar a fisiologia de um ser humano adulto. Os metabólitos que a mãe compartilha com seu embrião têm em grande número origem nos microrganismos que compõem seu corpo. E os microrganismos que serão herdados pelo bebê no seus primeiros momentos fora do útero serão essenciais para que seu corpo complete sua formação.
Assim, sinto decepcionar os fãs de ficção científica. Mas o DNA de um dinossauro dentro de um pedacinho de âmbar não é suficiente para fazer um Jurassic Park. Nunca vai ser. Nem mesmo a ideia de substituir o DNA de um óvulo fertilizado de elefante pelo genoma de um mamute vai gerar um mamute. E um neurônio humano com mutações reproduzidas do genoma de Neandertais nunca vai ser um neurônio Neandertal. É errado vender os resultados da pesquisa assim. Não que não seja interessante estudar esses genes, mas sem saber quando, onde e o quanto eles eram expressos na espécie original, eles sempre serão só uma mensagem diferentona interpretada por uma célula retirada de um ser humano. E essa interpretação é parte do que nos faz humanos. Esses são somente alguns exemplos de que mesmo na ciência as ideias ultrapassadas do Século passado estão muito bem enraizadas.
Fora da ciência, a constatação de que o óvulo fertilizado não é um ser humano é importante para nossa legislação sobre o aborto. Caros, um grupo de células, sem sistema nervoso e sem neurônios que os possam causar a sensação de dor não são seres humanos. Nós somos muito mais que isso. Esse grupo de células não possui uma receita para personalidade, caráter ou seja lá o que for que chamamos de alma. Nossos humores e emoções serão influenciados pelo grupo de espécies que formarão nosso metabolismo, por nossas experiências intra e extra uterinas junto com elas. A mãe, por outro lado, já é um indivíduo completo. Com suas múltiplas espécies compondo um metabolismo autônomo. Seus direitos legais deveriam ser supremos em relação aos do embrião ou do feto. A legalização do aborto no primeiro trimestre é coerente com a visão da biologia do Século XXI.
É fascinante ver as mudanças no conhecimento sobre a biologia. Mas nós, cientistas, somos conservadores e formamos uma comunidade fechada. É muito importante que os avanços no pensamento científico atinjam a sociedade e comecem a causar mudanças com mais celeridade. Para isso, temos que treinar nossos alunos para serem comunicadores e ocuparem cargos fora da academia. Vamos multiplicar os caminhos para fora do meio científico!
Nos dias 3 a 6 de agosto o STF sediará audiência pública sobre o aborto com a presença de diversas instituições de pesquisa e outras entidades. Uma boa oportunidade para a ciência ser ouvida, mas que seja a biologia do Século XXI.
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Leia o texto anterior: Em rio que tem caverna, quem faz assimilação genética é rei
Eduardo Sequerra
Otimo ensaio, Dudu! Juntou muitas informaçoes diversas e mostrou as conexoes entre elas.
A sua metafora da receita de bolo me lembrou o livro “What Genes Can’t Do”, onde Lenny Moss usa a metafora do texto de uma peça de teatro, que os atores oralmente decidiram modificar em muitas cenas.
Com relaçao ao aborto, me parece que o mais humilde a dizer (do lado dos fatos) é que o embriao ou depois feto nao é uma pessoa separada, e nem a mae é a unica pessoa envolvida, mas que eles formam uma diade, onde o peso moral do feto aumenta gradativamente. O conceito de individuo simplesmente nao se aplica. O que se faz com estes fatos depende de outros valores pessoais.
Olá, sou bióloga e não concordo com esta visão da biologia do século XXI. Independente da forma como ocorre o desenvolvimento após a fecundação, este é o passo inicial para o surgimento de uma nova vida. Se a partir daí depende dos metabólitos, dos microrganismos ou dos próprios processos que se seguem no desenvolvimento deste embrião/feto, deixe que os mesmos transcorram como a natureza os previu. Quando algo dá errado, o próprio corpo “aborta” a missão. Isso não quer dizer que nós tenhamos que fazer isso por qualquer motivo. O juramento do biólogo fala em defender a vida em todas as suas formas e manifestações. Uma vida em potencial, é uma vida em potencial. Se estamos aqui lendo estes artigos, é porque passamos por todas estas etapas do desenvolvimento e não fomos abortados. Alguém defendeu a nossa vida.
Concordo com sua visão.
Essa é uma discussão que nunca vai ser totalmente pautada pela racionalidade. Por mais que os argumentos dados pela ciência sejam objetivos e coerentes, os aspectos morais (culturais) terão um grande peso. Mas as discussões devem continuar, uma hora se chegará a uma solução!!!!!