O país vive um momento delicado de sua história e mais uma crise é instalada depois deste episódio, que trouxe mais insegurança jurídica e também mais um exemplo que macula a imagem do judiciário
No dia 8 de julho de 2018, o Desembargador Federal Rogério Favretto, respondendo pelo regime de plantão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região(TRF4), concedeu liminar para o pedido em Habeas Corpus apresentado pelos deputados Paulo Pimenta, Paulo Teixeira e Wadih Damous, determinando a suspensão da execução provisória da pena e concedendo liberdade ao ex-presidente Lula e o cumprimento da decisão em regime de urgência, com expedição de alvará de soltura.
No entanto, sua decisão foi descumprida. A Polícia Federal (PF) ignorou a ordem e o desembargador João Pedro Gebran, relator do processo contra Lula no TRF4, revogou a decisão. A PF se recusou a cumprir o alvará de soltura e informou que aguardaria a decisão do presidente do TRF-4, Thompson Flores, que determinou a manutenção da prisão. Foi ele que em agosto de 2017, antes que o tribunal recebesse o processo de Sergio Moro, que condenou Lula, e segundo o advogado Cristiano Zanin Martins, tinha cerca de 250 mil páginas e mesmo assim considerou a sentença como “tecnicamente irrepreensível”, um “exame minucioso e irretocável da prova dos autos”.
Um dos principais argumentos do desembargador Rogério Favretto é que havia falta de isonomia entre os candidatos à presidência da República. Com a manutenção da prisão Lula, que não teve seus direitos políticos suspensos, deveria ter garantido o seu direito de participação no processo eleitoral, mas para isso ele também teria de fundamentar a sua decisão em dispositivos constitucionais.
Com a decisão da manutenção da prisão, o caso pareceu demonstrar que só valem decisões contrárias a Lula. Quem proferiu as sentenças podem ser considerados como operadores isentos do sistema de justiça? Segundo uma nota da Associação dos Juízes pela Democracia (AJD), o juiz Sérgio Moro, mesmo de férias e em Portugal, foi ágil para impedir a soltura de Lula. Só que ele não é juiz da vara de execução penal, responsável pelo acompanhamento do cumprimento da pena, ou seja, “magistrado responsável pela condução da ação penal não possui incumbência pela execução da pena e é autoridade absolutamente incompetente para analisar a validade ou não da decisão de segunda instância”.
Para Lenio Luiz Streck, jurista e professor de Direito Constitucional “Examinando o que se tem até agora, vê-se que há uma ordem de soltura que deve ser cumprida. Ordem judicial se cumpre. Nem a polícia nem Moro podem se opor, mesmo que a ordem de HC seja eventualmente indevida ou ilegal. Outro aspecto é que Moro está em férias e não pode decidir ou despachar nesse período. Estranho que Moro diga que recebeu orientação do presidente do TRF hoje. Por escrito? Nos autos? Por telefone? Há muita coisa ‘extra-autos’ aqui. Tudo foi transformado em uma queda de braço. Virou política. Se havia dúvida de que Moro era suspeito ou impedido de julgar Lula, agora ficou bem claro. O Direito ficou de lado. Virou briga. Cumpre-se ou não uma decisão? Há um juiz em São Paulo respondendo processo administrativo por ter despachado em férias. Em uma democracia, juiz dá ordem e um juiz de instância inferior cumpre. Sob pena de responder a processo por desobediência e outras sanções. Trata-se, enfim, do maior imbróglio jurídico do século.”
Alguns acusaram o desembargador Rogério Favretto, mesmo sem ter lido a sentença, de ser petista, de ter assessorado Tarso Genro quando foi governador do Rio Grande do Sul etc. Se isso é argumento pertinente, significa afirmar que os que decidiram o contrário são isentos? O que parece ter ficado claro foi uma articulação bem sucedida entre membros da Polícia Federal, do Ministério Público e do Judiciário para descumprir o que havia sido decidido por um desembargador. A decisão deveria ser cumprida e depois recorrer às instâncias competentes.
A AJD emitiu uma nota, manifestando seu integral apoio ao Desembargador Federal Rogério Favretto e repudiando “quaisquer tentativas de tumulto ao bom andamento processual.” A associação tem defendido a presunção de inocência até o trânsito em julgado, a garantia da independência judicial como um dos pilares do Estado Democrático de Direito e neste caso específico, afirma que “a decisão jurídica foi bem fundamentada em exercício de competência legal e constitucionalmente atribuída”. E ressalta “os riscos da supressão da garantia constitucional prevista expressamente no inciso LVII do artigo 5º da Constituição Federal. Da mesma forma, não restam dúvidas de que a higidez do processo eleitoral exige a ampla participação de todos os candidatos, que se encontre em pleno gozo de seus direitos políticos, inclusive no período de pré-candidatura, salvo decisão judicial em sentido contrário.”
Mas é importante destacar que o que se pode chamar desse padrão jurídico vem de antes, desde o chamado Mensalão em 2005/2006, com a continuidade na operação Lava Jato e se expressa na judicialização da política, no uso do princípio da culpa presumida e não no princípio da inocência até prova em contrário, no uso das delações seletivas e prisões provisórias (como forma de se obter delações “premiadas”).
O fato é que há um grupo articulado e muito organizado, incluindo a grande mídia corporativa. Sobre o papel da mídia, como disse Fabio de Oliveira Ribeiro (“Civilização ou barbárie”), publicado no Jornal GGN no dia 8 de julho de 2018: “São eles que escolhem quem deve ser condenado, quem pode ser preso e quem não deve ser solto. A imprensa se colocou acima da Lei. Ela atua como se fosse à única fonte única de legalidade. Os jornalistas se conduzem como se as redações fossem a única instância capaz de condenar ou absolver os cidadãos e, pior, os próprios juízes.”
No artigo “A batalha (que não houve) sobre o HC de Lula”, João Feres Junior dá dois exemplos: a cobertura da Globonews e Bandnews sobre o caso, que revelou o explícito partidarismo. Para ele “É preciso entender a estratégia de apresentação da opinião adotada por essas mídias para ter uma real compreensão do grau de politização de sua cobertura” e verificou que houve falta total de pluralidade no âmbito das opiniões: era uma voz única, de silenciamento de vozes discordantes “apesar de haver uma multidão de juristas de opinião diversa”. E revelou o nível de politização que a grande mídia brasileira chegou. Não houve espaço para os defensores da soltura de Lula, de juristas com posição favorável ao Habeas Corpus. O foco era a desqualificação de Rogério Favretto, acusando-o de ideológico “um argumento bastante estranho pois se generalizado, desqualificaria boa parte dos juízes brasileiros, inclusive vários ministros do STF, tem posição extremamente parcial na controvérsia, como era de se esperar”.
Para muitos juristas, o que aconteceu no dia 8 de julho foi uma anomalia jurídica. Sérgio Moro não era o juiz do caso, estava de férias em Portugal e mesmo assim se rebelou contra a decisão do desembargador, como se Lula fosse prisioneiro dele.
O fato é que país vive um momento delicado de sua história e mais uma crise é instalada. A questão é: como barrar o aprofundamento do caos jurídico (e institucional) e fazer com que a lei prevaleça contra as arbitrariedades? Se as decisões forem conforme o arbítrio de cada juiz, violando hierarquias, como o cidadão comum pode acreditar na justiça? Este episódio, ao que parece, trouxe mais insegurança jurídica e também mais um exemplo que macula a imagem do judiciário.
No essencial, ao que tudo indica, querem manter Lula preso e impedi-lo de ser candidato à presidência da República, porque sabem que se deixarem ser candidato, não terá adversários à altura e será eleito. É isso que temem e não querem e nem deixarão, a não ser com forte mobilização popular. E é esse o desafio do momento, o fortalecimento de uma Frente Democrática contra os retrocessos e em defesa da democracia e da Constituição.
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Homero de Oliveira Costa é Professor Titular (Ciência Política) do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
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