O governo militar não foi imune à corrupção, como pensam alguns que defendem intervenção militar e a volta da ditadura
No dia 4 de junho de 2018, o jornal O Globo publicou uma matéria do repórter Leandro Loyola na qual consta a informação do envio, em 1984, de um telegrama da Embaixada dos Estados Unidos no Brasil para o Departamento de Estado, cujo tema era a corrupção: “O assunto dominava o noticiário à época e, segundo os informantes americanos, não apenas enfraquecia o governo de João Figueiredo (1979-85), como indicava o apodrecimento e o fim próximo da ditadura militar, no poder desde 1964”.
Segundo a matéria, o documento faz parte dos 694 enviados em um lote pelo governo do então presidente Barack Obama para a presidente Dilma Rousseff. Entre 2014 e 2015, foram três remessas. Os documentos foram depois enviados à Comissão da Verdade.
O telegrama confirma aquilo que já se conhecia: que o governo militar não foi imune à corrupção, como pensam alguns que defendem intervenção militar e a volta da ditadura e estas (e outras) informações deveriam servir de reflexão para os nostálgicos do regime militar e especialmente para os desinformados, quando afirmam que “no tempo dos militares não havia corrupção”. Estes precisam conhecer mais a história desse período.
E referências para isso não faltam. A bibliografia é extensa e alguns casos podem ser lidos no site memórias da ditadura. Assim como muitos livros, alguns resultados de pesquisas para dissertações e teses, memórias, artigos, ensaios etc. Entre muitos livros, talvez um dos mais importantes é Brasil: Nunca Mais, publicado em 1985 (Editora Vozes). Revela o que foi a ditadura. O livro tem seis partes, a primeira “Castigo cruel, desumano e degradante”, a segunda “O Sistema repressivo – da origem do regime militar, à consolidação do estado autoritário, além de um tópico sobre roubos e extorsões, com depoimentos e denúncias de réus que tiveram bens roubados pelos agentes dos órgãos de segurança; a terceira parte trata da “Repressão contra tudo e contra todos” (organizações de esquerda, militares, sindicalistas, estudantes, jornalistas, religiosos etc.), a quarta sobre “A subversão do direito”, a quinta é intitulada “Um regime marcado por marcas das torturas” e finalmente, a sexta parte, sobre “Os limites extremos da tortura”, no qual constam detalhes sobre mortos sob torturas e desaparecidos políticos.
Em relação à corrupção, J. Carlos de Assis, uma referência do jornalismo investigativo durante a ditadura, publicou três livros cujo foco foi os escândalos nesse período: A Chave do Tesouro, anatomia dos escândalos financeiros no Brasil: 1974/83 (Editora Paz e Terra, 1983); Os mandarins da República (Paz e Terra, 1984) e A dupla face da corrupção (Paz e Terra, 1984) em que analisa vários casos de corrupção, entre eles os que ficaram conhecidos como os casos Luftalla, o do Grupo Delfin e o da Coroa Brastel.
O caso Luftalla ocorreu no governo do general Ernesto Geisel, em 1977, e dizia respeito a um empréstimo com dinheiro público para uma empresa quando ela já estava em processo de falência. Era uma empresa têxtil do sogro de Paulo Maluf, um dos mais fiéis aliados da ditadura e não por acaso foi prefeito nomeado de São Paulo. Na época, a direção do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE) foi contrária ao empréstimo, mas não adiantou. O empréstimo foi feito. Três anos depois, em 1980, foi instalada uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar o caso, mas o processo foi arquivado pelo Supremo Tribunal Federal (STF). As denúncias envolviam também o ministro do Planejamento João Reis Velloso e terminou sem punições.
Quanto ao caso Delfin, além dos ministros Delfim Neto e Ernane Galvêas, Mário Andreazza (ministro do Interior), também foi envolvido e foi um grande escândalo financeiro que a ditadura militar não conseguiu encobrir. O Caso foi tornado público quando o jornal Folha de S. Paulo publicou uma reportagem que revelava com detalhes um empréstimo feito pelo então Banco Nacional de Habitação (BNH) ao Grupo Delfin, que era a maior sociedade independente de crédito imobiliário do país e operava uma caderneta de poupança, atuando no crédito imobiliário através do Banco Nacional de Habitação (BNH), criado pelo governo militar para construir moradias populares.
As denúncias, publicadas no jornal Folha de S. Paulo em dezembro de 1982, era de que havia negociatas com terrenos superfaturados, no qual o banco quitava uma dívida da empresa, determinando um preço cerca de seis vezes superior ao do mercado. Segundo a matéria, o Grupo Delfin foi beneficiado pelo governo ao obter Cr$ 70 bilhões para abater parte dos Cr$ 82 bilhões devidos ao banco e o valor total dos terrenos usados para a quitação era de apenas Cr$ 9 bilhões.
Em relação ao escândalo da Coroa-Brastel, as denúncias foram a de que os ministros Delfim Neto e Ernani Galvêas teriam favorecido o grupo, desviando empréstimos concedidos pela Caixa Econômica Federal. O caso foi aberto na justiça em 1985. Segundo a acusação, apresentada pelo procurador-geral da República José Paulo Sepúlveda Pertence, os dois teriam desviado irregularmente recursos públicos por meio de um empréstimo da Caixa Econômica Federal ao empresário Assis Paim, dono do grupo Coroa-Brastel. O caso só foi a julgamento nove anos depois, 1994. O ex-ministro Galvêas teve a denúncia rejeitada e Delfim Neto, que havia sido eleito deputado federal em 1986 e reeleito em 1990, gozou de imunidade parlamentar e não foi a julgamento.
Delfim Neto também foi envolvido em suspeitas em torno de empréstimo de US$ 2 bilhões à Polônia a taxas de juros consideradas baixas, que ficou conhecido como “polonetas”. No outro, um documento conhecido como “relatório Saraiva” o acusava de quando era embaixador em Paris, receber propina para intermediar negócios entre bancos estrangeiros e estatais brasileiras.
Em outro livro de J. Carlos Assis, “A dupla face da Corrupção”, ele mostra como a censura manteve o submundo da economia tão longe da curiosidade pública “da mesma forma que as masmorras sombrias da repressão política” e que foi à sombra que o que ele chamou de “arrivistas e aventureiros do mercado” (…) “penetrou no sistema financeiro e nele engordou seus conglomerados fraudulentos, para explodir posteriormente em escândalos”.
Elio Gaspari, na tetralogia “A Ditadura Envergonhada”, “A Ditadura Escancarada”, “A Ditadura Derrotada” e “A Ditadura Encurralada” traz informações sobre alguns casos de corrupção e também sobre um dos heróis da ditadura, um dos nomes mais conhecidos da repressão, responsável por prisões, torturas e assassinatos de opositores do regime: o delegado paulista Sérgio Fernandes Paranhos Fleury, que recebeu diversas homenagens, como a Medalha do Pacificador e da Medalha Melhor Amigo da Marinha e depois foi acusado pelo Ministério Público de associação ao tráfico de drogas e extermínios e de ser o líder do Esquadrão da Morte – um grupo paramilitar responsáveis por muitas execuções. Segundo as denúncias ele também era ligado a criminosos comuns, fornecendo serviço de proteção a traficantes.
De acordo com Elio Gaspari, no livro “A Ditadura Escancarada”, promotores do Ministério Público foram pressionados para interromper as investigações contra Fleury e houve até mudanças na lei para protegê-lo. Segundo Gaspari “Noves fora suas atividades no esquadrão da Morte, o delegado Fleury fora acusado de aliviar o patrimônio descoberto nos aparelhos e comandar uma Máfia de Proteção, vendendo segurança a empresários. O CIE protegia-o dos promotores paulistanos (p.366) e em relação à mudança da lei diz que “em novembro de 1973, no crepúsculo do governo Médici, providenciou-se uma nova redação para o artigo 594 do Código de Processo Penal, determinando que os réus primários com ‘bons antecedentes’ depois de condenados, teriam direito à liberdade enquanto durasse a tramitação de seus recursos. Simples: abriu-se uma porta para que o delegado respondesse em liberdade (…) o mandato de prisão caducara. Fleury estava livre “(p.374). Fleury morreu em 1979 e ainda estava sob investigação da Justiça.
Assim, um dos seus agentes não apenas foi responsável por torturas e assassinatos, como também acusado de corrupção. Estes fatos só vieram à tona depois e por uma razão: a censura. De qualquer forma – e nisso há de se destacar o papel da chamada imprensa alternativa (como os jornais Opinião, Movimento, Em Tempo etc.) houve denúncias de corrupção, algumas das quais se tornaram notórias e fartamente documentadas e até mesmo investigadas oficialmente, como superfaturamento de obras, desvio de verbas, abuso de autoridade etc. sem que houvesse informações sobre seus desdobramentos, como punições dos envolvidos.
Ainda sobre corrupção durante a ditadura, no dia 1º de junho de 2018, o jornal Folha de S. Paulo publicou uma matéria sobre um caso envolvendo os governos dos generais Emílio Garrastazu Médici (1969-1974) e Ernesto Geisel (1974-1979). Trata-se de documentos que o cientista político João Roberto Martins Filho em suas pesquisas sobre o regime militar encontrou na diplomacia britânica e atestam que o governo brasileiro comprou seis fragatas superfaturadas pelo Reino Unido e depois se recusou a receber a indenização – de 500 mil libras, hoje equivale a quase três milhões de libras, ou 15 milhões de reais – e de dar sequência nas investigações sobre o caso, ou seja, em vez de permitir e ajudar no inquérito que seria do interesse do Brasil, a ditadura militar abafou apuração de corrupção ao abrir mão de indenização por compra superfaturada de fragatas.
Algumas empreiteiras financiadoras de campanhas eleitorais, como foi demonstrado na Operação Lava Jato, pavimentaram o caminho da corrupção em período mais recente, no entanto, segundo Pedro Henrique Campos em sua tese de doutorado e publicada em livro com o título “Estranhas catedrais: as empreiteiras brasileiras e a ditadura civil-militar, 1964-1988” (Faperj/Eduff, 2017) muitas das grandes empreiteiras se beneficiaram de relações especiais com o Estado desde seu surgimento e que o pagamento de propinas se consolidou durante a ditadura militar.
Portanto, corrupção havia. O que não havia era informação e ainda há muito a ser conhecido.
Leia outro artigo do mesmo autor: A criminosa defesa da intervenção militar
Homero de Oliveira Costa é Professor Titular (Ciência Política) do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Homero de Oliveira Costa
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