Cúpula foi a expressão de interesses econômicos não explicitados e claros objetivos políticos: de defesa da democracia, apenas discursos e intenções
Entre os dias 13 e 14 de abril de 2018 foi realizada em Lima, no Peru, a 8ª. Reunião da Cúpula das Américas. Trata-se de uma reunião de cúpula de chefes de Estado e de Governo do continente americano. Quando foi criada, em 1994, nos Estados Unidos, tinha como objetivo possibilitar cooperação entre os países da zona econômica americana, com uniões comerciais, acordos de diminuição alfandegária etc. A iniciativa foi da Organização dos Estados Americanos (OEA), durante o mandato de Bill Clinton. Na primeira reunião, realizada em Miami, foi aprovada a formação da ALCA (Área de Livre Comércio das Américas) e teve a presença de representantes dos países da América Latina, com exceção de Cuba (só aceito em 2015). As sete reuniões anteriores foram: 1998, Santiago (Chile); 2001, Quebec (Canadá); 2005, Mar Del Plata (Argentina); 2009, Porto de Espanha (Trinidad e Tobago); 2012, Cartagena das Índias (Colômbia) e 2015, cidade do Panamá (Panamá).
Cada reunião tem um tema, que reflete o respectivo contexto. O tema de 2018 foi “Governabilidade democrática frente à corrupção”. Um dos objetivos seria a de aprovar um documento contendo compromissos para aumentar a cooperação entre países membros na prevenção e combate à corrupção.
Na reunião de Lima, pela primeira vez não teve a presença do presidente dos Estados Unidos (Donald Trump enviou o vice presidente. A justificativa foi a perspectiva de recrudescimento da guerra na Síria, após denúncias sobre o uso de armas químicas, mas também deve ter pesado o avanço das investigações do FBI sobre as eleições presidenciais de 2016).
No final da reunião foi assinada uma declaração, “O Compromisso de Lima”, com 57 itens contra a corrupção, entre outros, sobre governabilidade democrática; transparência, acesso à informação e proteção de denunciante, direitos humanos e liberdade de expressão; financiamento de partidos políticos e campanhas eleitorais; prevenção de corrupção em obras públicas; cooperação jurídica internacional e fortalecimento de mecanismos interamericanos anticorrupção”.
Outro item foi a intenção de promover “a mais ampla cooperação entre as autoridades judiciais, policiais, promotorias, unidades de inteligência financeira e autoridades administrativas, relacionadas com delitos de corrupção, lavado de ativos e suborno internacional”.
Boas intenções, portanto, é que não faltaram. Mas, o que de fato foi e/ou tem sido feito nesse sentido nos países presentes à reunião? Será que faz aquilo que afirma a carta da Organização dos Estados Americanos (OEA), que estabelece o propósito essencial de “promover e consolidar a democracia representativa, respeitando o princípio da não-intervenção”? Na realidade, um dos objetivos foi o de ampliar a presença dos Estados Unidos na América Latina, que já conta com bases militares na Colômbia e no Peru, no mar do Caribe (há de se ressaltar a presença do Exército dos EUA, entre os dias 6 e 13 de novembro de 2017 em Tabatinga (AM), na tríplice fronteira entre Peru, Brasil e Colômbia, a convite do Exército brasileiro, um exercício militar inspirado numa atividade da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Não é por acaso: A Região Amazônica é estratégica por concentrar a maior biodiversidade do planeta e de recursos hídricos e reservas minerais).
A reunião de Lima ocorreu num contexto em que há uma guinada à direita na América Latina, em sintonia com o crescimento da direita nas eleições de 2017 nos EUA, com a Vitória de Donald Trump (e também o crescimento da direita na Europa). Na América do Sul, é o caso da Argentina com o presidente Mauricio Macri, Chile, com Sebastián Piñera, Peru, com o ex-banqueiro Pedro Pablo Kuczynski (economista que trabalhou para o FMI foi eleito em 2016 e que renunciou em função das denúncias por seu envolvimento no escândalo de corrupção da Odebrecht, revelado pela Operação Lava Jato e substituído por Martín Vizcarra) e no Brasil com Michel Temer.
Um aspecto relevante é que, com exceção de Cuba, Bolívia e Venezuela, são governos aliados incondicionais dos Estados Unidos. E não por acaso, um dos alvos principais foi à Venezuela, excluída de participação. Foi até criada um “Grupo de Lima”, para “promover a democratização da Venezuela e trabalharem para não reconhecer os resultados eleitorais da eleição presidencial de 20 de maio de 2018.
De acordo com o deputado venezuelano do Parlamento Latino, Ángel Rodríguez, em entrevista para o canal TeleSur, antes da realização da reunião, o que a Cúpula buscaria era o de legitimar os planos intervencionistas dos Estados Unidos sobre a América Latina, e a missão principal da delegação norte-americana seria a de reunir apoio para avançar com as ações e sanções contra a Venezuela. E foi o que ocorreu. Como ele disse, a direita mantém uma hegemonia na região e um dos objetivos da cúpula é a cooperação dos governos para impulsionar políticas neoliberais conjuntas.
Se o objetivo da reunião fosse de fato “Contribuir para o fortalecimento dos processos políticos dos Estados membros, em particular para a manutenção da democracia como a melhor opção para garantir a paz, a segurança e o desenvolvimento” e contribuir para a sustentabilidade democrática nos Estados membros, seria ideal. O problema é que não tem sido assim.
Há problemas relevantes na região para os quais deveria haver consenso, como a estratégia de segurança nas fronteiras, o combate ao crime organizado transnacional (um dos grandes desafios talvez seja o da violência relacionada ao tráfico de drogas), mas não há nem consenso nem uma articulação nesse sentido que vá além das intenções.
Com a exclusão da Venezuela, as duas vozes dissidentes foram apenas a dos representantes da Bolívia e de Cuba. O presidente da Bolívia, Evo Morales, se referiu a uma questão central, afirmando que se não forem eliminados os paraísos fiscais, se não houver controles das empresas transnacionais e se o sistema financeiro, que promove a acumulação de riqueza, não for modificado e enquanto não for suprimido o sigilo bancário, “nada servirá” para promover o desenvolvimento da região. Para ele, “o capitalismo é o pior inimigo da humanidade e do planeta: Antes utilizavam o pretexto da luta contra o comunismo, hoje pretendem usar a luta contra a corrupção para derrubar governos democráticos”.
Segundo o presidente Evo Morales, a principal ameaça contra a paz e o multilateralismo é o governo dos Estados Unidos que tem ”Virando as costas ao acordo de Paris, constrói muros, gasta centenas de milhões de dólares para continuar construindo armas de destruição em massa”. Registre-se que, na América do Sul, a Bolívia foi o único país que condenou as ameaças dos Estados Unidos de invasão da Venezuela e lamentou que ela não estivesse presente na reunião de Lima por pressões dos EUA.
Outro crítico dos Estados Unidos foi o chanceler cubano. Para ele: “Os EUA não são uma referência moral à América Latina. Nos últimos 100 anos, todos os governos despóticos na região foram impostos ou apoiados pelos EUA, incluindo as mais cruéis ditaduras. A Operação Condor e o golpe no Chile pesam na consciência dos EUA. E foi o único a usar uma arma nuclear contra civis inocentes”.
Para ele, os Estados Unidos são responsáveis “pelo massacre de civis, crianças, mulheres e idosos, que chama de “danos colaterais” (…) e é o autor de violações maciças dos direitos humanos de sua própria população afro-americana. É uma vergonha à humanidade que nesse país de extrema riqueza existam milhões de pobres. Têm um padrão de diferenciação racial nas prisões”.
Em relação ao sistema eleitoral que elegeu Donald Trump “é corrupto por natureza porque é sustentado pelas contribuições corporativas” e que o país “Promove um protecionismo feroz. Impôs a ideia de que a mudança climática é uma invenção. Se ele se interessasse pela liberdade dos cubanos levantaria o bloqueio. Usou a mesma linguagem que causou a invasão da Baía dos Porcos”.
Enfim, a reunião de Lima pode ser considerada um retrocesso, inclusive em relação à 7ª. Reunião, realizada no Panamá, em 2015 porque esta foi marcada pela aceitação de Cuba e a mais recente vetou a participação da Venezuela porque esta não respeita “os princípios democráticos com os quais estão de acordo os outros países participantes”, embora aceitasse a participação de um presidente golpista, e de outros acusados de corrupção em seus países. Não aceitou a Venezuela, cujo presidente foi eleito legitimamente, mas recebeu uma representação de opositores de Nicolás Maduro. Dois pesos, duas medidas e, evidentemente, expressão além dos interesses econômicos não explicitados, claros objetivos políticos: uma cúpula que, de defesa da democracia teve apenas discursos e intenções.
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Homero de Oliveira Costa é Professor Titular (Ciência Política) do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Homero de Oliveira Costa
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