Antônio Pavão defende a valorização do potencial que os alunos trazem de fora da universidade e o estímulo à cultura humanística nas Ciências Exatas. Veja a segunda parte da entrevista com o professor do Departamento de Química da UFPE e diretor do Espaço Ciência.
Nossa Ciência: Prefere dar aula na graduação ou na pós?
Antônio Pavão: Eu gosto dos dois, mas prefiro dar aula na graduação para quem está entrando na Universidade. É isso que eu gosto! E eu gosto de dar aula para mil pessoas, não para três gatos pingados, como acontece na pós-graduação. Na pós-graduação, eu dou estudos dirigidos. Eu tenho a consciência de que os alunos que estão entrando precisam de um acolhimento maior, de professores mais experientes – como é o meu caso, evidentemente, depois de tanto tempo – e de professores que possam orientar esses alunos e valorizar o potencial que eles trazem. Nós sabemos que existe uma evasão muito grande, vexaminosa, eu diria, nas nossas universidades públicas e que a gente tem que pensar sobre isso. O aluno entra na universidade e nem conhece os colegas, vai logo fazer uma disciplina. Ele desiste e a gente nem fica sabendo por que, e às vezes só precisa ter uma conversa. Eu não tenho problema com alunos. Eu gosto deles e para compensar, eu acho que eles gostam de mim. Ontem mesmo chegou um aluno na minha sala dizendo: professor trouxe aqui um livro para o senhor, “A invenção do ar”, um livro que conta a história da Química e também da fundação dos Estados Unidos, que eu emprestei – porque eu empresto meus livros a meus alunos – e não recebi de volta. Eles (os alunos) fizeram uma vaquinha e compraram o livro para mim. Eu procuro cumprir minhas responsabilidades de professor, e embora repita as disciplinas, não tem uma aula que eu não prepare, não tem duas aulas iguais que eu dou. Claro que eu conto às vezes as mesmas piadas, mas não tem duas aulas iguais. Eu sempre me ocupo em organizar a aula, introduzir novidades e eu percebo essa recepção por parte dos alunos.
NC: Que disciplina o senhor ministra?
AP: Atualmente estou ensinando a História da Química. Conhecer a História é fundamental: quem conta um conto, aumenta um ponto, tem que ir no original. Muita gente repete que Lavoisier falou que na natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma. Lavoisier nunca falou isso! Talvez essa frase seja melhor atribuída a Heráclito! Heráclito dizia que tudo se transforma. Você não toma banho duas vezes no mesmo rio porque tanto o rio muda, quanto você muda. Lavoisier falou que a massa dos reagentes é igual à massa dos produtos e você dizer que na natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma já é uma extrapolação muito grande. Mas por quê? Porque as pessoas não conhecem História, não vão no original. Hoje está todo mundo falando em crise, mas não lembra que a gente teve a crise da poupança, pense na História em quantas crises nós tivemos, e parece que o mundo está se acabando. Então você tem que ter essa visão histórica e para que você se aproprie de conhecimento científico, de conceito científico, de como o conceito foi construído historicamente tem que conhecer História. Não é simplesmente chegar ao final e pegar uma frase ou uma informação e repassar para o aluno. E História é uma coisa que a gente está sempre reconstruindo. Cada vez que você volta, vê um aspecto novo, modifica. A História é dialética.
Para ler a primeira parte da entrevista, acesse aqui.
NC: Qual é o grande desafio?
AP: O grande desafio é convencer cada vez mais que todo aluno é um cientista. Levantar essa moral, essa autoestima do nosso aluno. Oferecer condição para que ele possa exercitar a sua condição de cientista. Toda criança é cientista, mas quando o tempo vai passando a gente vai deixando de ser cientista. A criança tem as características básicas daquilo que a gente classifica como cientista que é curiosidade, ter resposta para tudo, ou seja, tem hipóteses e tem a cabeça aberta; se você argumenta dentro de uma lógica que ela perceba, ela muda de opinião. Todos somos cientistas e devemos tratar os nossos alunos como cientistas e esse é o grande desafio. Acabar essa atitude professoral nossa de ficar um sabidão lá na frente cuspindo sabedoria nos alunos e os alunos vistos como receptáculos dessa sabedoria. Precisa estabelecer essa via de mão dupla, vê-los como produtores importantes do conhecimento. Isso implica em mudança de currículo, mudança de uma visão de curso, acabar com essa história do cara ter que saber resolver uma integral que aparece nas nossas provas e que nunca vai aparecer na vida dele. Às vezes, a pessoa se especializa numa área sem ter uma formação humanista, uma compreensão da História da humanidade, a visão do outro, de se colocar na posição do outro. Eu acho que os nossos cursos, e muito das áreas de Exatas, incentivam muito o individualismo e não o conjunto das pessoas. O self-made-man. E a Ciência vira americana, europeia, masculina e branca. É assim que esses equívocos são cultivados. A gente precisa refletir sobre isso e procurar mudanças, sem a doença infantil do esquerdismo, entendendo tudo isso como um processo.
NC: Esses equívocos estão ficando mais evidentes ou estão mais obscuros?
AP: Isso é uma luta de contrários. Dentro de uma visão histórica, eu acho que nós estamos vencendo essa luta, mas existe ainda muita resistência. Você vai a países com os Estados Unidos, há um grande incentivo ao individualismo, à pessoa que se faz e isso é uma política de governo. Nada contra o povo, o americano em si, mas contra essa política do individualismo. Mas eu sou muito otimista em relação a esse processo histórico e acho que a gente já começa a perceber, já começa a superar essa visão atrasada, conservadora. Eu posso dizer que sou feliz. Mas sem querer de maneira nenhuma negar o papel do indivíduo na História, eu não posso realmente ser feliz enquanto meu vizinho também não for feliz, não posso me considerar de sucesso enquanto meu vizinho também não tiver sucesso. Essa é a minha luta e a minha angústia também de ver todo o subdesenvolvimento tanto intelectual, político e material que a gente vive e que é uma luta constante que você tem que trabalhar para modificar esse quadro. Mas eu fico muito satisfeito de saber que nisso aqui eu não estou sozinho, tem muita gente. É isso que me dá essa força para continuar fazendo isso.
NC: Um motivo de orgulho?
AP: Vários. Orgulho quando eu vejo na Universidade, o Departamento de Química, o que a gente não tinha antes e o que a gente tem hoje; o Espaço Ciência ; a grama e as orquídeas da minha casa, que eu construí há mais de 35 anos, na várzea do Rio Capibaribe; a correspondência que eu tive com o Linus Pauling (foto). Eu tenho uma visão muito positiva e aposto muito num futuro melhor.
NC: O senhor que nasceu no interior de São Paulo, hoje diz que é pernambucano. O que lhe caracteriza como pernambucano?
AP: O que me caracteriza é essa megalomania, tudo, até falando de mim. Eu até já sou conhecido lá fora porque eu falo que em Pernambuco tudo é o maior, o melhor, o primeiro, é onde o Rio Capibaribe se junta com o Rio Beberibe para formar o Oceano Atlântico. Pernambuco tem características que a gente não conhece, o Brasil nasceu aqui, o paulista é ignorante, não conhece o nordeste, Recife, Salvador, Natal, Fortaleza, toda essa História não é conhecida. Eu falo o paulista, mas também o carioca, o sulista, eles são muito limitados, olham muito para o seu umbigo e não percebem essa grandeza que nós temos aqui. Por isso que eu falo na brincadeira, mas eu valorizo muito essa exacerbação, essa megalomania que temos porque é uma forma de chamar a atenção para o que nós temos aqui. Aqui em Pernambuco é um local que, de fato, tem uma História marcante na área científica. Isso que eu chamei do caldo cultural não é apenas de música e outras manifestações, mas também da Ciência, a Cultura, incluindo a Ciência. E eu me identifiquei bastante aqui.
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