Bactérias e seu carinho desmedido por besouros Biologia do Envolvimento

segunda-feira, 9 abril 2018

O número de besouros catalogados é equivalente a um quarto de todas as plantas e animais descritos

John Burdon Sanderson Haldane (1892-1964) foi um dos pais da síntese neodarwinista, a teoria evolutiva que nos foi ensinada nas escolas, principalmente a partir da segunda metade do século XX. E a Haldane é creditada uma das frases mais famosas em biologia “Deus tem um carinho desmedido por besouros”(God has an inordinate fondness for beetles). Não que ele tenha escrito isso, mas pessoas que o conheceram confirmaram a autoria e a interessante escolha de palavras. Parece que ele gostava muito dessa frase e a repetia diversas vezes.

O Stephen J Gould, meu autor de divulgação científica preferido, tem um ensaio sobre isso em seu livro “Um dinossauro no palheiro”.

Mas o que Haldane queria dizer com isso? Você sabe quantas espécies de mamíferos existem na Terra? Umas 4 mil. E besouros? Ninguém sabe ao certo. Catalogadas são mais de 380 mil espécies, mas pode ser muito mais que isso, até milhões de espécies. O fato é que 380 mil é mais ou menos um quarto de todas as espécies de plantas e animais descritas. Bom, se existisse um Deus que criou essas espécies todas eu diria que é fácil imaginar que ele gostou dessa coisa de fazer besouros.

Besouros assumem diversos tamanhos, formas e cores e uma característica importante deste grupo é a sua carapaça. Ela confere aos seus donos resistência física que os protege de predadores ou ressecamento do corpo e é uma das grandes razões para o sucesso deste grupo em colonizar uma grande diversidade de ambientes. Mas o que um grupo de pesquisadores do Japão mostrou recentemente torna essa estória ainda mais interessante, os besouros não conseguem fazer suas carapaças sem suas bactérias simbiontes!

O grupo de besouros com o maior número de espécies descritas é a superfamília Curulionoidea, com aproximadamente 70 mil espécies. Muitos deles, se não todos, possuem uma associação simbiótica com um grupo de bactérias chamadas Nardonella. As larvas de besouros possuem essas bactérias e elas estão presentes dentro dos ovócitos, no sistema reprodutivo feminino, sugerindo que os besouros herdam as bactérias de suas mães. Através de experimentos que medem a quantidade de mutações no tempo (a teoria do relógio molecular) estima-se que essa relação tenha mais de 100 milhões de anos. Essas bactérias possuem muito poucos genes, o que se atribui ao fato de viverem há tanto tempo dentro de seus hospedeiros, e assim ter reduzida a pressão de seleção natural sobre genes produtores de proteínas que cumprem necessidades básicas e que seus hospedeiros fornecem. Mas uma via metabólica foi mantida, Nardonella se manteve extremamente eficiente na produção de tirosina. Acontece que tirosina é um aminoácido essencial para a produção do exoesqueleto que compõe a carapaça de besouros.

Com essa informação em suas mãos, estes cientistas foram então testar o que aconteceria se os besouros crescessem sem Nardonella. Eles observaram que se deixassem as larvas e pupas em meio contendo antibiótico, as mesmas davam origem a adultos com carapaça de cor mais clara e deformada. Além disso, o par de asas mais externo, que se torna mais espesso em besouros, permanecia fino nos besouros sem simbiontes.

Mas os besouros não são espectadores passivos esperando seus simbiontes fazer tirosina a seu gosto. Acontece que apesar de possuir genes envolvidos na síntese de tirosina, Nardonella não tem o gene que codifica a enzima que catalisa o último passo da síntese, a conversão de 4-hidroxi-fenilpiruvato em tirosina. Mas os besouros sim tem esse gene de uma aminotransferase expresso nos órgãos onde estão as bactérias (na verdade dois, GOT1A e GOT2A). Se reduzirmos a expressão destes genes através de uma técnica chamada RNA de interferência, os animais morrem até chegarem a adultos jovens, antes mesmo de eclodirem da pupa. Já se reduzirmos somente a expressão de GOT2A alguns animais chegam a se tornar adultos, mas com asas deformadas e mais claras. Assim, o hospedeiro controla o passo final de síntese mas sem o seu simbionte alimentando os passos iniciais da via o seu corpo não se forma.

Essa estória nos mostra como relações simbióticas são importantes para a evolução. O grupo mais diverso de animais do planeta, os besouros, só geram a infinita diversidade de formas e cores de carapaças graças aos seus simbiontes. Neste caso, claramente a seleção natural atua sobre, pelo menos, uma dupla de organismos. Nós organismos multicelulares surgimos em um mundo dominado pelos microrganismos. Nossos corpos só representaram novos nichos e nós nunca existimos sem eles. E foi graças a relação de bactérias com besouros que podemos desenvolver um carinho desmedido por estes animais.

Referências

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Eduardo Sequerra

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