Ações na justiça pedem investigação por violação da autonomia universitária e da liberdade de cátedra
Uma disciplina intitulada “O golpe de 2016 e o futuro da democracia no Brasil”, foi oferecida pelo professor Luis Felipe Miguel no curso de graduação de ciência política da UnB (Universidade de Brasília). Era apenas uma disciplina optativa que não integra a grade obrigatória do curso e seria ministrada para um número restrito de alunos. No entanto, para surpresa do próprio professor, provocou uma forte reação inclusive do Ministério da Educação, que pediu no dia 22 de fevereiro de 2018 a apuração sobre a possibilidade de ter havido “improbidade administrativa” por parte dos organizadores do curso.
O ministro da Educação, Mendonça Filho, encaminhou à AGU (Advocacia-Geral da União), ao TCU (Tribunal de Contas da União) e ao MPF (Ministério Público Federal) o pedido para avaliar se a universidade pode alocar professores “para promover uma disciplina que não tem nenhuma base na ciência” e ser” apenas promoção de uma tese de um partido político”. Segundo o ministro, a idéia do curso é “absurda”. Em nota divulgada na imprensa, afirma que os acadêmicos fazem “proselitismo político e ideológico de uma corrente política usando uma instituição pública de ensino”.
Um dia depois, 23 de fevereiro, os deputados Paulo Pimenta, (líder do PT na Câmara) e Waldih Damous (PT-RJ), o ex-reitor da UnB José Geraldo de Souza Júnior, o advogado Patrick Mariano Gomes e o ex-procurador-geral do Estado de São Paulo Marcio Sotelo Felippe ingressaram com duas ações contra o ministro, sendo uma no Conselho de Ética e outra na Procuradoria-Geral da República. pedindo uma investigação por violação da autonomia universitária e da liberdade de cátedra.
Um dos objetivos da disciplina é o de entender os elementos de fragilidade do sistema político brasileiro que permitiram a ruptura democrática de maio a agosto de 2016, com a deposição da presidente Dilma Rousseff, assim como analisar a agenda de retrocessos nos direitos e restrições às liberdades.
E no dia 26 de fevereiro, houve a resposta formal da Universidade de Brasília, em defesa do professor e o Ministro da Educação foi notificado sobre a ação ingressada contra ele no Conselho de Ética da Presidência da República. A universidade declarou entre outras coisas que “as unidades acadêmicas têm autonomia para propor e aprovar conteúdos, em seus órgãos colegiados”.
A representação pede para que sejam sustados os efeitos de ofícios e outras manifestações do Ministério da Educação (MEC) com o objetivo e a intenção de constranger o professor que ofereceu a disciplina. Solicita ainda a instauração de processo contra o ministro por improbidade administrativa.
O professor Luis Felipe também emitiu uma nota dizendo que “trata-se de uma disciplina corriqueira, de interpelação da realidade à luz do conhecimento produzido nas ciências sociais, que não merece o estardalhaço artificialmente criado sobre ela”.
Um dos objetivos da disciplina é o de “entender os elementos de fragilidade do sistema político brasileiro que permitiram a ruptura democrática de maio a agosto de 2016, com a deposição da presidente Dilma Rousseff, assim como analisar a “agenda de retrocessos nos direitos e restrições às liberdades” e ainda discutirá elementos com a Lava Jato e a ascensão do que ele chama de parafascismo no país como também “as possibilidades de reforço da resistência popular e de restabelecimento do Estado e Direito e da democracia política no Brasil”.
No resumo que o professor Luis Felipe publicou da primeira aula da disciplina, inicia com a discussão sobre a pertinência do uso da palavra “golpe” para qualificar o que ocorreu em agosto de 2016. Para ele “O uso da palavra “golpe” para designar os acontecimentos políticos de 2016, no Brasil, tornou-se motivo de disputa:” Trata-se de algo recorrente: como ‘golpe’ possui conotação negativa, remetendo a uma ação que foge às regras e é desenhada para pegar o oponente desavisado. Na maior parte dos contextos, ‘golpe’ remete a um ato de deslealdade. Nenhum agente político a reivindica para si. ‘Golpista’ é, sempre, o outro. Ele concorda com a definição “operacional sucinta” do cientista político Álvaro Bianchi no artigo publicado em 26 de março de 2016, “O que é um golpe de Estado”, segundo o qual “golpe de Estado é uma mudança institucional promovida sob a direção de uma fração do aparelho de Estado que utiliza para tal de medidas e recursos excepcionais que não fazem parte das regras usuais do jogo político”.
Nesse sentido, o que ocorreu em agosto de 2016, “não se tratou de uma intervenção pontual, destinada a retirar uma governante indesejada mas o momento fundador de um amplo realinhamento das forças políticas e de implantação de um projeto político que, submetido às regras até então vigentes, havia sido repetidas vezes derrotado nas urnas” e foi uma mudança “imposta unilateralmente e em desrespeito à lei por grupos de dentro do Estado, nas regras do jogo político. Em uma palavra: é mesmo um golpe.”
Um aspecto importante desse processo foi a reação que suscitou em várias universidades e o engajamento de parte considerável da comunidade acadêmica em se solidarizar com o professor Luis Felipe e ampliar o espaço de resistência, em defesa da autonomia universitária e a liberdade de cátedra. Até o momento já são 23 universidades que vão oferecer ou uma disciplina regular sobre o mesmo tema ou cursos de extensão.
Na UFRN, quatro professores ofereceram a disciplina regular no Programa de Pós-Graduação com o mesmo título (O golpe de 2016 e o futuro da democracia) e que deverá contar com a participação de professores de outros departamentos e de outras Universidades (Unicamp, UFPE, UFPB, Universidade Federal de Campina Grande, Universidade Regional do Cariri (URCA), Ufersa, e contará com a presença já confirmada do próprio professor Luis Felipe Miguel.
E, importante destacar, não é uma disciplina ou curso de extensão para fazer proselitismo partidário. São professores com posições político-partidárias muito diferentes, como expressam os programas e professores de todas as disciplinas oferecidas não apenas na UFRN, como nas outras universidades. O objetivo é o de possibilitar a discussão de vários aspectos relativos ao golpe, como o papel de setores do judiciário (hipertrofia do judiciário como ameaça à democracia), da mídia hegemônica, inseridos, como diz Eugênio Aragão, neste “longo processo de deteriorização da institucionalidade que o acompanha e que vem tocando a todos nós de forma intensa”.
Para Moisés Mendes no artigo “o golpe na sala de aula”, publicado no jornal extra classe: “Os professores não podem fugir da obrigação de ensinar o que é um golpe, como se articula e como é levado adiante, como este executado pelo Brasil (…) Vamos torcer para que se multipliquem pelo Brasil os cursos sobre o golpe. Que a universidade pública, ameaçada de extinção, ressuscite em grande estilo. Queremos cursos sobre o golpe em toda parte, em igrejas, sindicatos, ONGs, inclusive no ensino médio”.
A Universidade pública, diferente do ensino superior privado não é movida ou filtrada pelo mercado ou a organização empresarial que as caracterizam e submetem todos os aspectos da organização do ensino e da pesquisa. As acusações de corporativismo e ineficiência feitas à universidade pública se dão, em grande parte, por ela se manter distante do mercado. E por isso, ao não se submeter aos seus ditames e injunções é que ela pode e deve cumprir o seu papel social (e histórico) de produção e difusão do conhecimento, e ter a possibilidade de crítica e reflexão que deve fugir dos compromissos definidos pelas pressões do mercado (demanda e de consumo). E neste momento em particular, no qual o país vive um período depois de uma ruptura democrática, sua função é importante para evidenciar como esse processo mostrou a fragilidade do sistema político brasileiro e trouxe como conseqüência uma agenda de retrocessos nos direitos e restrições à liberdade, de propostas de ajustes fiscais que implicam em cortes nos orçamentos para áreas fundamentais como educação, segurança e saúde, ao mesmo tempo que submete o país a uma nova inserção subordinada na divisão internacional do trabalho (que compromete a sua soberania).
Daí a importância e necessidade de uma análise crítica desse processo: a Universidade precisa se alimentar não apenas de conhecimento mas de pensamento crítico também, de um posicionamento público de quem defende a universidade e, de forma mais ampla, a democracia e este o propósito de uma disciplina como esta que, sem qualquer conotação partidária, possa ajudar a compreender a realidade, os desdobramentos da crise e a importância do estado de Direito e da democracia política (e social) no Pais.
Homero de Oliveira Costa é professor titular (Ciência Política) do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Homero de Oliveira Costa
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