Mastodontes, preguiças-gigantes e tatus do tamanho de fuscas. A extinção da megafauna da mais recente era do gelo foi uma tragédia biológica que repercute na ecologia da América do Sul mais de 10 mil anos depois
A ausência de mamíferos gigantes nos ecossistemas do continente se faz sentir na dinâmica de dispersão das maiores sementes, como, por exemplo, do pequi. Poucos dos frugívoros viventes consegue engolir uma semente desse tamanho e transportá-la em seu trato digestivo para dispersá-la no meio ambiente. Preguiças-gigantes e gonfotérios (parentes dos elefantes) faziam isso.
Não foram somente as maiores sementes que perderam o seu meio de transporte. A extinção da megafauna também reduziu o raio de dispersão de sementes quando comparado à dispersão feita pelos maiores mamíferos viventes, como a anta.
Um novo estudo calculou a distância que preguiças-gigantes (megatérios) ou mastodontes (gonfotérios) percorriam transportando sementes em seu trato digestório antes de defecá-las no meio ambiente. O estudo foi feito em coautoria com os professores Mauro Galetti, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Rio Claro, e Paulo Roberto Guimarães, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP). Publicado na revista Ecography, o trabalho foi realizado no âmbito do Projeto Temático “Consequências ecológicas da defaunação na Mata Atlântica”, coordenado por Galetti.
Os maiores frugívoros viventes do continente sul-americano são as antas (Tapirus), os guanacos (Lama guanicoe), as alpacas (Vicugna pacos), os catetos (Pecari tajacu) e o veado-mateiro (Mazama americana). Mas mesmo o maior, a anta, com cerca de 200 quilos, é cerca de 10 vezes menor do que as preguiças-gigantes e cerca de 30 vezes menor do que os gonfotérios.
A distância de dispersão de sementes observada entre os maiores frugívoros viventes raramente ultrapassa 3,5 mil metros. O estudo concluiu que, no passado, a megafauna ia muito além. O raio de dispersão de sementes das preguiças e dos gonfotérios podia superar os 6 mil metros.
Para estimar a capacidade de dispersão de sementes entre a megafauna, em primeiro lugar foi preciso determinar três conjuntos de dados básicos entre as maiores espécies viventes de dispersores de sementes. Foi necessário saber: o quanto de alimento, em média, as diversas espécies comem; quanto tempo o alimento fica retido no sistema digestório; e qual a distância percorrida pelo animal antes de defecar as sementes.
O passo seguinte foi extrapolar as estimativas de cada um dos três atributos (quantidade de comida, tempo de retenção e distância percorrida) para algumas espécies da megafauna extinta que habitaram a América do Sul durante o período Pleistoceno – os últimos 2,5 milhões de anos.
O conjunto de dados utilizado para a extrapolação se refere aos tamanhos corpóreos estimados que aqueles bichos tinham. Estima-se, por exemplo, que os gonfotérios tinham de 5 a 6 toneladas, dependendo da espécie, e que as maiores preguiças tinham entre 3,5 toneladas, no caso do eremotério, e mais de 6 toneladas, no caso do megatério.
Os três atributos foram igualmente estimados para gonfotérios, paleolhamas (lhamas gigantes), grandes quadrúpedes ungulados chamados macrauquênias e cervídeos. Foram selecionados apenas animais folívoros e frugívoros. Pastadores que se alimentavam principalmente de gramíneas, como os robustos toxodontes, não entraram no estudo.
Como resultado das simulações, estimou-se entre os gonfotérios que eles dispersavam sementes a distâncias entre 500 metros e 3,5 mil metros da planta-mãe que produziu as sementes. São valores médios. Em 5% das simulações, o raio de dispersão se estendeu, chegando mesmo em alguns casos a ultrapassar 6 mil metros.
Já animais do porte das preguiças terrestres dispersavam sementes, em média, entre 300 metros e 2,5 mil metros de distância da planta-mãe. Em alguns casos, contudo, a distância se estendeu até os 6 mil metros. Entre as antas, a média fica entre 200 metros e 1,4 mil metros.
Diversidade genética
No estudo, os pesquisadores compararam os valores obtidos pelas simulações com os dados conhecidos de animais em um ecossistema rico e ainda relativamente preservado, no caso o Pantanal Mato-Grossense.
A queda na distância de dispersão de sementes experimentada nos últimos 10 mil anos tem várias consequências para a formação e diversidade de plantas nas matas e para a diversidade genética das espécies. As maiores distâncias de dispersão de sementes da megafauna permitiam que aumentasse a distribuição espacial das espécies de plantas.
Sem os dispersores, as populações de plantas não trocam material genético e essa separação entre indivíduos da mesma espécie resulta em baixa variabilidade genética, o que pode diminuir as chances de sobrevivência dessas plantas em longo prazo.
A extinção dos frugívoros gigantes reduziu as chances de dispersão das espécies de plantas com maiores sementes, como o abacateiro. Por consequência, as sementes que caem da planta-mãe têm menos chances de germinar e crescer. Se não podem ser engolidas e transportadas intactas, as sementes no solo ficam à mercê de predadores de sementes, como os roedores, que mastigam as sementes, matando o embrião. Ao mesmo tempo, sementes que caem ao solo e lá permanecem têm menos chance de germinar e crescer, dado que as plantas jovens competem por luz solar, água e nutrientes do solo com a planta-mãe.
Haveria algum meio para tentar expandir o raio de dispersão de sementes nos biomas sul-americanos atuais? Se por um lado a perda da megafauna reduziu as possibilidades de dispersão de sementes, a introdução do fator humano serviu, em alguns casos, de contrapeso. A América do Sul foi o continente que mais perdeu em termos de dispersão de sementes com o fim da megafauna, que era fundamental para a regeneração da floresta e a manutenção do equilíbrio entre as várias espécies de plantas.
Agência Fapesp
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