Em dissertação, pesquisadora analisa o papel de arte na representação das questões raciais no Brasil do século XIX
O mito bíblico da maldição lançada por Noé sobre seu filho Cam – condenando toda a descendência deste último à escravidão [Gênesis, capítulo 9, versículos 18 a 27] – foi utilizado como justificativa para a escravização dos africanos pelos europeus, empreendida pelo Império Português a partir do século 15.
Com a abolição da escravidão em 1888 e a proclamação da República no ano seguinte, a questão sobre “o que fazer” com a população “negra” livre passou a preocupar e ocupar as elites “brancas”. Diferentes teorias foram importadas e adaptadas.
Uma delas foi a do “branqueamento” ou “embranquecimento”. A ideia era a de que, por meio de sucessivos casamentos inter-raciais, o fenótipo “negro” seria progressivamente apagado e, ao longo de algumas poucas gerações, a população brasileira se tornaria inteiramente “branca” [desconsiderados os povos indígenas: eliminados, assimilados ou segregados nas periferias dos centros urbanos ou no distante interior].
Amparado na ideologia cientificista do fim do século 19 e início do século 20, incorporando elementos do evolucionismo darwinista e do darwinismo social, o “branqueamento” assumiu ares de “teoria científica”. E também de contrapartida moderna ao mito da maldição da Cam. Mas seu conteúdo racista continha formas próprias de violência – pois não apenas inferiorizava a população “negra” como também propunha, no limite, a sua extinção.
A ideologia do “branqueamento” também se expressou por meio da arte. E sua representação mais icônica ocorreu no quadro A redenção de Cam, produzido em 1895 pelo pintor espanhol, radicado no Brasil, Modesto Brocos y Gómez [1852-1936]. O livro Contornos do (in)visível: racismo e estética na pintura brasileira (1850-1840), de Tatiana Lotierzo, faz uma análise exaustiva desse quadro – que se encontra no Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro – e de seu contexto.
Segundo a pesquisadora, essas imagens foram elaboradas a partir de modelos de perfectibilidade considerados ideais, assim como o fez a ciência racial da época. Arte e ciência iam conferindo corpos conformes ou inconformes a determinados modelos – e o corpo “negro” figurava sempre inconforme diante do modelo de corpo “branco”, considerado a forma exemplar, o ideal da convenção, ainda que pudesse ser imperfeito. A força desses modelos está no fato de constituírem esquemas tão arraigados que uma grande parte das telas desse período acaba se reportando a eles – na maior parte dos casos, para reforçá-los. Decorre daí uma grande inquietude do livro, que é pensar como seriam as imagens capazes de romper com essas convenções, ou transformá-las criativamente, a partir de outras perspectivas.
O livro resulta da dissertação de mestrado de Lotierzo – apresentada na Universidade de São Paulo sob a orientação da professora Lilia Schwarcz, uma das grandes especialistas no campo de estudos sobre o racismo do século 19 no Brasil.
Agência Fapesp
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