A professora Bernardete Sousa, da UFRN, é um exemplo de mulher e pesquisadora que ama o que faz
Paraibana de nascimento, mas radicada em Natal (RN) há mais de 30 anos, a professora Maria Bernardete Cordeiro de Sousa é um exemplo de mulher dedicada ao ensino e à pesquisa. Graduada em Medicina pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), em 1977, ela trocou o sonho de ser pediatra pelas bancadas dos laboratórios de Fisiologia, que a levaram ao mestrado e doutorado na USP/Ribeirão Preto e ao pós- doutorado na University of Wisconsin. Professora titular do Instituto do Cérebro/UFRN, atualmente ela coordena o Grupo de Pesquisa Laboratório de Endocrinologia Comportamental e o Grupo Estudo dos Mecanismos de Integração Neuroendocrinoimunes da saúde e na doença. Ela coleciona vários cargos políticos administrativos como, por exemplo, o de coordenadora do curso de pós-graduação em Psicobiologia, pró-reitora de Pesquisa da UFRN, presidente da Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado do Rio grande do Norte (FAPERN), secretária regional da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) do RN e vice-presidente do Conselho Municipal de Ciência e Tecnologia de Natal, só para citar alguns.
Nessa entrevista ao portal Nossa Ciência, para a galeria do “Perfil dos Cientistas”, a professora conta um pouco de sua trajetória profissional, seus desafios, sonhos e preferências de lazer quando não está se dedicando aos seus alunos de graduação e de pós ou às pesquisas. Leia a primeira parte da entrevista.
Nossa Ciência: O que é ser pesquisadora, uma pessoa que vive para a ciência?
Bernardete Sousa: É uma pergunta difícil, principalmente se a gente se espelha nos dias atuais, no sistema nacional de ciência e tecnologia. Tirando essa questão que podemos discutir mais a frente, ser pesquisador é realmente um desafio grande num país como o nosso do ponto de vista do desenvolvimento, que só se iniciou há pouco tempo, cerca de 50/60 anos, a partir da criação das universidades brasileiras. Temos vários talentos que se perdem no meio do caminho, pois o país não tem uma política educacional voltada para isso [pesquisa]. Ser pesquisador no Brasil, por outro lado, é também uma condição que dá certo prazer profissional, a medida que a gente está conseguindo dentro de algumas áreas do conhecimento nacional, dar contribuições relevantes. Temos vários pesquisadores com inúmeras citações, estamos publicando em revistas de conteúdo muito qualificado, por exemplo. Então, ser pesquisador é ao mesmo tempo um desafio que continua até o fim de sua carreira, e também uma grande realização profissional. Você poder juntar a sua especialidade, sua formação de graduação específica e agregar um valor muito importante do ponto de vista de realização pessoal.
NC: Sua graduação foi Medicina, você queria ser pediatra, mas no meio do caminho conheceu o professor Leopoldo Nelson e a Fisiologia. Como foi essa passagem da clínica, do sonho de ser médica e curar uma pessoa de cada vez, para ser pesquisadora que pode ajudar a curar a humanidade inteira?
BS: Eu já era bastante entusiasmada com o estudo aprofundado de determinados temas, tanto que já no segundo semestre da faculdade, no terceiro na verdade, eu fiz um concurso para a monitoria de uma disciplina que eu já havia cursado que foi Histologia. Então, me entusiasmei muito em ficar participando de maneira sistemática apesar dessa disciplina não ser dinâmica, era muito estática, não tinha muita estrutura para a gente fazer as lâminas, mas enfim era um desafio e a oportunidade de me aprofundar em uma determinada área. E coincidiu de um ano e meio depois o professor Leopoldo ter essa ideia de criar um grupo de pesquisa usando um animal, um modelo experimental que é incrível Ele foi visionário, isso na década de 70, e hoje esse animal é um dos modelos mais importantes em Biologia Experimental, que é o sagui comum, esse primata tropical, nativo da nossa região. Então, o acesso que a gente tinha e tem é relativamente fácil. Claro que temos as questões tanto da ética individual como da ética da experimentação animal que são bastante rígidas, mas enfim, era um modelo e fomos nos motivando e começamos a estudar o cérebro do animal que surgia como um modelo experimental muito importante. Fui me dedicando e ao longo do meu curso, já no quarto ano eu me casei, tive um filho, tive dois e acabei não podendo me dedicar tanto.
Depois disso, o professor Leopoldo me tirou da Morfologia, da Histologia e me levou para a Fisiologia. Daí, eu entrei realmente para fazer uma carreira acadêmica. Eu confesso que tive vários pontos de questionamento ao longo desse período. Quando eu terminei o doutorado, voltei, me estabilizei como professora na UFRN, mas eu sentia muita falta da clínica, da interação com os seres humanos. Sentia falta de tratar, de conversar, ainda hoje eu me recinto disso, tanto que estou voltando para dentro da pesquisa clínica. Eu trabalho com modelos experimentais, mas estou investindo fortemente na minha carreira de pesquisa clínica, coordenando um laboratório dentro da estrutura do Hospital Universitário.
NC: Qual foi ao longo da sua carreira o grande sonho que você conseguiu realizar?
BS: Eu sempre me achei abençoada porque passei no primeiro vestibular, no curso que eu queria, fiz um mestrado e doutorado numa universidade que é a melhor na minha área que é a Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto. Depois teve outro marco na minha vida que foi o pós-doutorado na Universidade de Wisconsin que para o que eu queria era um laboratório de referência e é até hoje. Enfim, eu tenho vários pontos importantes na minha vida que me realizaram: minha graduação, pós-graduação e pós-doutorado. Esses três pontos de ascensão do ponto de vista emocional na minha carreira foram muito relevantes para mim.
NC: E teria um sonho que você ainda não realizou?
BS: É difícil, pois já estou num ponto em minha carreira que estou querendo estabilidade. Eu me senti muito desafiada em vários momentos, quando fui convidada para ficar em Ribeirão Preto, de maneira informal. Da mesma forma na Universidade de Wisconsin tinham oportunidades para eu ficar. Em ambas as situações poderiam ter sido pontos de virada, mas eu já estava casada com filhos e não pude fazer isso. Eu gostaria, por exemplo, de ter uma vivência de mais tempo, meu pós-doutorado foi de oito meses de trabalho intenso não me relacionei muito, nem convivi com a comunidade acadêmica local. Gostaria de ter tido uma vida acadêmica mais prolongada no exterior, ter morado lá pelo menos uns três anos no mínimo, para mim teria sido uma realização completa.
NC: Você é professora da UFRN há mais de 30, quase 40 anos, nessa trajetória o que mais te estimula: a bancada de pesquisa ou sala de aula?
BS: Ambos. Do ponto de vista da bancada, trabalhei muito em laboratório, isso me mobiliza completamente e o contato com os alunos, também é muito importante. Eu posso certamente responder às duas coisas, pois eu tenho um prazer imenso no laboratório, mas também a sala de aula para mim é fundamental, tanto na graduação quanto na pós. Na graduação você tem uma diversidade maior de alunos, daí você tem um estímulo múltiplo. Na pós-graduação os alunos são mais centrados, mais focados, aprofundam mais, são mais atentos, mas uma coisa compensa a outra. Desse modo realmente eu não consigo me ver só sendo pesquisadora ou só professora, as duas coisas fecham o conjunto.
NC: Você já ocupou vários cargos na política científica, já foi pró-reitora adjunta de pesquisa, presidente da Fapern, por exemplo. Qual o papel da política na ciência no Brasil e no Nordeste especificamente?
BS: A política científica é crucial para que nós mantenhamos a universidade atenta ao que acontece, por exemplo observando a questão da violência em Natal, com índices tal altos. Se nós estamos aqui em ambientes que deveriam ser/estar mais engajados, como é que isso acontece? Se nós temos o domínio de conteúdo que poderíamos intervir em diferentes setores da sociedade, setor de segurança sim, mas também de educação principalmente. O Brasil ao mesmo tempo em que amplia a inclusão social com o aumento de alunos universitários, do ensino médio, do ensino profissionalizante, temos a violência de fundo. Acho que a política de ciência e tecnologia é fundamental e ela tem que estar muito mais transparente para a sociedade do que é hoje, tanto do ponto de vista nacional como do ponto de vista local, regional. Falta aos pesquisadores um envolvimento maior. Quando a gente tem a oportunidade de participar dessas instâncias notamos o quão importantes elas são. Por outro lado vemos que o mundo é movido pelo desafio, a ciência, os grandes impactos da ciência farmacêutica, econômica etc. No Brasil não temos essa valorização pelo próprio governo federal, vemos ministros de C&T que não tem a vocação, não tem a vivência desse segmento. Então, encontramos situações que são bastante preocupantes do ponto de vista nacional. As agências também mudam de gerenciamento devido às vinculações político-partidárias isso não é bom, isso é natural, acontece no mundo inteiro. Só que às vezes é mais contundente, as rupturas são mais agudas e geram quadros de transição com prejuízo. Sabemos que quando interrompemos uma ação em curso teremos prejuízo.
Nosso sistema local de C&T tem alguns pontos que podem se articular, que seriam os conselhos municipal e estadual. A gente nota que esses conselhos funcionam, mas não tem o ganho para a população, eles não conseguem reverter ou dar diagnósticos. Os conselhos eles vão aprovar decisões, encaminhamentos ou sugestões para os governos, mas eles não encaminham, dependendo do gestor que estiver envolvido naquele momento. Então eu avalio que é muito complicado localmente, não temos o setor articulado, atuante. Isso decorre também pela falta de mobilização dos pesquisadores que compõe o nosso sistema das universidades públicas, privadas, dos institutos federais. Devemos superar essa falta de articulação e trazer a sociedade de alguma forma para nos auxiliar e realmente participar, identificar conjuntamente quais seriam as propostas que demandam marcos tecnológicos e científicos do ponto de vista local.
NC: Como você vê a atuação da mulher nesse segmento que é tão masculino, nacional e localmente?
BS: Pesquisa recente na Nature mostra que do ponto de vista mundial, as mulheres estão sub-representadas na Academia variando numa faixa de 10% a 30%. Um dos países onde há uma maior representação feminina é Cuba, onde 27% do quadro acadêmico superior, de gestão é de mulheres. É onde elas podem realmente dar sugestão e interferir nas políticas acadêmicas dessas universidades. No Brasil, Estados Unidos e Europa também essa representação fica em torno de 20%, uma sub-representação.
A questão que se coloca nesse artigo [da Nature] e que eu concordo é que dessa forma você não tem a visão feminina quando ela tem uma participação que chega a 50%, como aqui no Brasil – os indicadores de dois anos atrás mostravam que alunos do Pibic eram 50/50, não tive acesso ao banco de dados atual – quando você pensa do ponto de vista da representação e da gestão, coordenação dessas atividades e os colegiados estão subrepresentados. Desse ponto de vista, ficaria uma visão enviesada e de certa forma não contempla a realidade da pesquisa em lugar nenhum.
Quais são as linhas predominantes, qual o foco de interesse de determinados aspectos dentro das políticas públicas? Muitas vezes as mulheres tem uma vivência maior em algumas áreas, no trato com adolescentes, com crianças, em algumas profissões que são preferencialmente femininas outras masculinas, independente dessas questões de escolhas, não tem a ver com sexo, com gênero, mas tem profissões preferidas e isso cria um viés acadêmico.
A mulher ainda tem muito que conquistar. Esses espaços são como concessões. Tem que ter polícias afirmativas porque nos vários países da Europa existem os comitês que discutem especificamente essas políticas de maior inserção das mulheres nos cargos de coordenação acadêmica, de chefia para que não ocorra esse viés que reflete problemas culturais que nós temos no mundo inteiro com relação à participação da mulher no mercado de trabalho de uma maneira mais ampla.
Leia a segunda parte da entrevista.
(Crédito da última foto: Demis Roussos Assecom/RN).
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