O nordeste brasileiro é cheio de pedras que, mesmo silenciosas, nos contam e revelam a história do nosso povo
Pelo menos quatro municípios do nordeste brasileiro – São Raimundo Nonato, Brasileira e Piracuruca, os três, localizados no estado do Piauí, e Santana do Matos, localizado no estado do Rio Grande do Norte – abrigam sítios arqueológicos com pinturas rupestres. O município de São Raimundo Nonato abriga o Parque Nacional da Serra da Capivara, uma unidade de conservação (proteção integral à natureza) que engloba outros três municípios (Canto do Buriti, Coronel José Dias e São João do Piauí). Esse parque é tombado como patrimônio Mundial pela Unesco devido à diversidade e quantidade de sítios arqueológicos com pinturas rupestres pré-históricas. Nele, localiza-se ainda a Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham), instituição responsável pela manutenção do Museu do Homem Americano. Já os outros dois municípios piauienses, Brasileira e Piracuruca, abrigam o Parque Nacional de Sete Cidades, outra unidade de conservação, também de proteção integral. Por sua vez, o município de Santana do Matos abriga pelo menos 75 sítios arqueológicos na região conhecida como Área arqueológica de Santana, dos quais apenas dois são registrados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) como patrimônio histórico. As provas da ocupação humana pré-histórica da região foram registradas por meio dos estudos coordenados pelo Professor Valdeci dos Santos Júnior, docente da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Agora no mês de novembro, a prestigiada revista americana Science noticiou, como destaque, um estudo publicado na revista científica Journal of Anthropological Archaeology (Elsevier) acerca da descoberta de pinturas rupestres em uma região montanhosa da Arábia que seriam, possivelmente, as primeiras evidências pré-neolíticas de estratégias de caça auxiliadas por cães. As imagens esculpidas nas rochas revelam um caçador com seu arco para matar, acompanhado de 13 cães, cada um com possíveis marcas de casaco e, dos quais, dois têm linhas que correm do pescoço para a cintura do homem. Talvez, o leitor ao ler essa notícia se questione, qual a relevância? Bom, segundo os arqueólogos do Instituto Max Planck responsáveis pela descoberta, as gravuras provavelmente datam de mais de 8.000 anos e as linhas na cintura dos animais provavelmente representam coleiras, o que sugere que os seres humanos dominaram a arte de treinar e controlar cães, em especial para caçar, milhares de anos antes do que se pensava. A presença de grandes grupos de cães sugere ainda uma população com reprodução sustentada e talvez gerida. Essa descoberta ganha ainda mais destaque devido: à função dos cães pré-históricos na caça, o que não é facilmente visível no registro arqueológico e, ao potencial da arte rupestre em fornecer evidências quanto ao uso de cães domésticos de maneira precoce.
Esse estudo – juntamente com as recordações das visitas que tive a oportunidade de fazer aos sítios arqueológicos do Parque Nacional de Sete Cidades e de alguns sítios da Área arqueológica de Santana – fez lembrar-me de um livro que li do celebrado paleontólogo e biólogo evolucionista Stephen Jay Gould, falecido em 2002. A montanha de moluscos de Leonardo da Vinci – Ensaios sobre História Natural, cujo título original é Leonardo’s Mountain of Clams and the Diet of Worms, é apenas um dos mais de 20 livros escritos por esse professor da Universidade de Harvard que, certamente, ocupa o mesmo patamar que Carl Sagan e Stephen Hawking quando o assunto diz respeito aos grandes popularizadores e divulgadores da ciência do Século XX.
Segundo Jay Gould “somos, acima de tudo, um bando de contestadores, incapazes de chegar a um acordo a respeito do que quer que seja. Entretanto, não há como não experimentar um enorme sentimento de reverência e uma verdadeira fascinação diante das pinturas nas cavernas feitas por nossos ancestrais, entre 30 mil e 10 mil anos atrás”. E continua, “a razão legítima reside no fato de que, ao olharmos para os exemplos mais brilhantes e vigorosos dessa arte, convencemo-nos de imediato de que estamos diante de um Michelangelo”. E por que não um Mestre Ataíde, Candido Portinari, Di Cavalcanti, Anita Malfatti e Tarsila do Amaral?
Logo em seguida, Gould cita algumas das razões para esse sentimento de fascinação: “ficamos surpresos, ou até mesmo aturdidos, ao descobrir que uma pintura tão antiga pode mostrar tamanha sofisticação. Antigo deveria significar rudimentar – seja primitivo, em virtude da maior regressão evolutiva em direção a um passado simiesco, ou infantil, pela maior proximidade com os primeiros passos do nosso percurso em direção à modernidade. (Essas metáforas – de rusticidade animalesca ou de juventude balbuciante – provavelmente assumem pesos aproximadamente iguais na formação dos nossos preconceitos). À medida que retrocedemos no tempo ao longo de nossa própria árvore evolutiva, seria de se esperar que encontrássemos ancestrais mais e mais longínquos, com capacidade cada vez menor. As primeiras expressões conhecidas de arte representacional deveriam, então, mostrar-se grosseiras e primitivas. Em vez disso, o que encontramos é o trabalho de uma espécie de Picasso primal – e ficamos emudecidos”.
Entretanto, Gould pondera que “se consideramos o período da arte parietal conhecida por nós, veremos que não se estende aos nossos passados simiescos. Ao que parece, os pintores das primeiras formas de arte parietal estavam muito mais próximos, do ponto de vista temporal, das pessoas que vivem hoje do que dos primeiros Homo sapiens”. E brinca ao dizer que: “…somos verdadeiramente irmãos dos primeiros artistas paleolíticos conhecidos. Não fosse pelos 30 mil anos adicionais, eu poderia ser um deles. Se essas pinturas nos dizem tanto, hoje em dia, é porque conhecemos as pessoas que as fizeram; são pessoas como nós”.
As pinturas rupestres mais famosas da Europa – as da França (Lascaux e Chauvet) e da Espanha (Altamira) – têm nos revelado muito acerca da nossa pré-história. As do nordeste brasileiro também, em especial, os sítios arqueológicos da Serra da Capivara, mundialmente conhecidos. Mesmo com toda a riqueza, diversidade e o potencial arqueológico ainda inexplorado, falta recurso para manter viva a nossa pré-história. Em Santana do Matos, por exemplo, os sítios arqueológicos são praticamente desconhecidos. Isso sem contar os municípios, no entorno dessa região, que também devem possuí-los, mas para os quais não há registro.
A comunidade científica – mesmo que golpeada a cada dia -, o Ministério Público Federal e algumas entidades governamentais (Iphan e ICMBio) precisam agir logo. A degradação e a destruição desse patrimônio, fonte inestimável de valor científico, cultural e turístico para essas regiões e para o país precisam ser evitadas. Assim como muitas espécies estão sendo extintas, antes mesmo de as conhecermos, o que representa perdas inestimáveis, os nossos sítios correm o mesmo risco. Ou seja, a existência das nossas pinturas está “contra a parede”.
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Thiago Jucá