Thiago Jucá fala da evolução de algumas drogas analgésicas, anestésicas e hipnóticas e sua relação com a humanidade
Segundo Karl Marx, “a religião é o ópio do povo”. A referida frase, certamente, fazia referência ao contexto social da época, no qual Marx se inspirou para traçar um paralelo entre o papel das religiões e as propriedades do ópio (analgésicas, anestésicas e hipnóticas). O intuito aqui não é fazer crítica, ataque ou até mesmo juízo de valor acerca de qualquer religião. Gostaria, inclusive, de parabenizar a religião brasileira Umbanda pelos seus 109 anos de existência, comemorados agora em novembro (15/11). Voltando ao cerne da questão, os relatos acerca do conhecimento das propriedades do ópio – mistura de alcaloides extraídos da papoula – bem como sua utilização remontam ao início das primeiras civilizações, há pelo menos 3000 anos A.C. O seu uso, inclusive, foi motivo de guerra entre a China e Grã-Bretanha – Guerra do Ópio -, em meados do século XIX.
Um fato interessante é que já se passaram mais de 200 anos desde que, a partir do ópio, Friedrich Wilhelm isolou a morfina (1806) da espécie vegetal Papaver sommniferum, popularmente conhecida como papoula. O isolamento dessa substância está associado à primeira demonstração de que o princípio ativo de uma espécie vegetal podia ser atribuído a um único composto químico. Esse fato é tipicamente descrito na literatura científica como o surgimento da química de produtos naturais, o que inclusive motivou os avanços em outras áreas, como a química orgânica, em especial a síntese química.
Os opiáceos podem ser naturais (morfina, codeína e tebaína, por exemplo), quando são extraídos diretamente a partir do ópio (cálice da papoula), ou semissintéticos (heroína e oxicodona, por exemplo), quando são modificados a partir das substâncias naturais. Os opióides são totalmente sintéticos, a citar a metadona e o fentanil. Os opióides são mundialmente reconhecidos e utilizados pela sua ação analgésica no tratamento de dores agudas e crônicas. Baseando-se nessa reconhecida propriedade, a Organização Mundial de Saúde (OMS) criou um sistema de escada analgésica, por meio do qual recomenda o uso de algumas dessas substâncias para o tratamento de dor. Esse tratamento considera o grau de dor – leve, moderado ou forte -, para então utilizar o analgésico adequado, considerando sua potência/eficácia. Outro problema decorrente do uso dessas substâncias são as síndromes de dependência e de abstinência. O uso prolongado, recreativo e a automedicação têm acentuado sobremaneira essas síndromes.
Recentemente, os Estados Unidos declararam que o país passa por uma epidemia de uso de opióides. O próprio presidente americano Donald Trump declarou que o país nunca tinha vivido situação semelhante nos últimos quatro anos. O renomado jornal científico da área médica “The New England Journal of Medicine” publicou um artigo especial sobre o assunto em 2015, alertando que as últimas duas décadas foram marcadas pelo aumento abusivo da prescrição desses medicamentos, além do seu recreativo. Segundo os autores desse estudo, o problema toma proporções ainda maiores quando se considera que, entre os anos de 2002 e 2011, 25 milhões de pessoas iniciaram o uso de medicamentos analgésicos sem prescrição médica. Ainda de acordo com o estudo, houve um aumento de 183% no número das emergências médicas relacionadas a produtos farmacêuticos opióides no período entre 2004 e 2011, o qual tem como causa o aumento da disponibilidade e abuso dessas drogas. Como consequência, o número de óbitos causados por opióides, apenas prescritos, atingiu a marca de 16.651.
Já em 2016, outra prestigiada revista da área médica, The Lancet, publicou o artigo intitulado “Uso e barreiras ao acesso de opióides analgésicos: um estudo mundial, regional e nacional”. De acordo com os autores, apesar de os analgésicos opióides serem essenciais para o alívio da dor, o uso tem sido inadequado em muitos países. Entretanto, mesmo com o aumento crescente do uso, o mesmo ainda é considerado baixo na África, Ásia, América Central e América do Sul. Agora em 2017, o mesmo jornal publicou dois editoriais. O primeiro deles tentou desvendar a complexa propensão ao vício de opióides nos EUA. Esse editorial alerta que, somente em 2015, 52.404 óbitos foram registrados no país devido à overdose por uso de drogas, dos quais 63,1% foram atribuídos aos opióides. Além disso, as perspectivas a curto prazo não são promissoras, haja vista que atualmente, entre 10 e 12 milhões de americanos estão fazendo uso prolongado de opióides para sanar dores crônicas. Muitos, talvez, nem consigam deixar de usá-los. O uso disseminado de analgésicos, como a Oxicodona, entre adultos de todas as faixas, nos casos pós-cirúrgicos e de dor crônica são exemplos desse cenário. Entretanto, na falta de tratamento para a dependência química gerada nesses casos, os usuários têm recorrido à morfina, acentuando ainda mais o problema. A introdução do fentanil, um potente opióide sintético, ilícito nos EUA, disparou o número de mortes entre adultos jovens, o que também agrava o quadro. Por fim, o editorial conclui que essa tragédia tem sido promovida, em grande parte, pelo marketing de algumas empresas do setor farmacêutico, sobre alguns de seus produtos, como o OxyContin.
O segundo editorial de outubro da revista The Lancet alerta que, entre 2016 e 2017, mais de 64.000 americanos morreram de overdose devido a opióides, a qual já é a principal causa de morte em pessoas com menos de 50 anos. O fentanil, um opióide sintético entre 50-100 vezes mais potente do que a heroína, é o responsável pela maioria dessas mortes. O mesmo tem sido combinado com açúcar para fazer um pirulito analgésico de ação rápida e palatável. Algumas formulações desses opióides sintéticos incluem, inclusive, sprays para a via oral. O editorial tratou também de uma questão contrastante acerca do uso desses opióides no mundo. A morfina, por exemplo, faz parte da lista de medicamentos essenciais da OMS, entretanto o seu acesso – assim como de outros opióides -, é limitado a aproximadamente 80% da população mundial, o que contrasta com a sua prescrição indiscriminada e o uso recreativo nos EUA. Entre as dificuldades ao acesso a esse grupo de substâncias estão os preços elevados e as políticas governamentais de alguns países contra narcóticos.
Dessa vez, um editorial da revista Science (novembro) trousse novidades acerca de novas drogas opióides (“New painkillers could thwart opioids’ fatal flaw”) que poderiam anular o efeito colateral mais letal decorrente da superdosagem dessas substâncias, a depressão respiratória. Assim, o combate desse efeito colateral letal sem a perda do poderoso efeito analgésico é o desafio a ser superado. O órgão federal americano responsável pelo controle de alimentos e medicamentos (US Food and Drug Administration – FDA) está considerando, inclusive, a possibilidade de aprovar uma nova substância com essas propriedades, comercialmente chamada de OLINVO™ (oliceridine).
Enquanto isso, o Afeganistão bate recorde de produção de ópio em 2017, o que significa maior oferta de heroína para os mercados americano e europeu. Já no Brasil, o crack e a cocaína – embora derivados da coca e não dos opióides – dominam o mercado ilícito de drogas. Mas é a nossa política – ou pelo menos uma parte dos personagens que a compõe – que tem anestesiado e entorpecido grande parte do nosso povo, o qual parece ter perdido a capacidade de se mobilizar e se indignar. Ou seja, a política e o ópio podem ter efeitos semelhantes!
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Thiago Jucá