Eugênio Aragão: a formação acadêmica jurídica brasileira está distante da realidade Entrevistas

quarta-feira, 15 novembro 2017
Foto: Wilson Dias_ Ag BR_ Fotos Públicas

Para ex-ministro da Justiça, reforma do ensino jurídico no Brasil é imprescindível à melhoria do judiciário

O então ministro da Justiça quando o Governo da presidenta Dilma Roussef sofreu o impeachment nomeia aquele processo como um golpe e o define como uma ruptura da ordem constitucional e como uma trapaça perpetrada contra o Brasil. Em sua entrevista ao Nossa Ciência, Eugênio José Guilherme de Aragão, que recentemente aposentou-se como procurador da República, afirmou que a justiça brasileira é elitista e falou também das relações “amalgamadas” com o Ministério Público. Aragão, que é professor adjunto na Faculdade de Direito, na Universidade de Brasília, analisou a formação acadêmica jurídica brasileira, classificando-a como distante da realidade.

Nossa Ciência: O senhor tem dito que o processo, pelo qual o Brasil passou, quebrou a liturgia do cargo da Justiça. Quando essa liturgia se quebra, há conserto? O que pode ser feito para se voltar a ter confiança na justiça?

Eugênio Aragão: A liturgia do cargo é uma garantia para os atores da Justiça de uma certa intangibilidade. Essa liturgia irradia ao ator da Justiça uma credibilidade, uma certa majestade que automaticamente afasta as partes do conflito da pretensão de querer incluir esse ator dentro do seu conflito. O problema é que um juiz lida anualmente com milhares de processos e sempre em cada um desses processos vai haver um frustrado. O magistrado tem a tendência de acumular com o passar do tempo, cada vez mais desafetos, que são aqueles que foram frustrados nas suas pretensões em juízo e se o magistrado não tiver essa aura de majestade, de respeitabilidade que a liturgia do cargo transmite, ele se equiparará às partes em conflito, ele descerá do seu pódio. Então é natural que ele se expõe a ser alvo de violência, porque se ele se comporta feito um moleque, feito um litigante raivoso, ele vai ser tratado como tal e vai acabar levando um tiro na testa, ele arrisca sua integridade física.

NC: Como deve ser a atuação do juiz?

EA: A liturgia é algo profundamente democrático, porque é um respeito às instituições do Estado de Direito. O magistrado não deve dar opiniões polêmicas, nunca deve falar de público sobre suas causas porque ele acirra os conflitos, não deve expor as partes, deve cultivar um baixo perfil, a discrição, a tranquilidade, a serenidade. Só assim ele será levado a sério como um juiz imparcial. Infelizmente, no Brasil, o judiciário brasileiro tem uma coisa muito curiosa. Ao mesmo tempo em que ele é, como poder, provido de enormes poderes, muito mais do que qualquer um, comparado com outros países, ele é um poder altamente hierarquizado e os juízes são extremamente medrosos – se tem um bicho medroso é o tal do juiz, tem medo de desagradar os superiores. Para baixo ele pisa, para cima ele faz salamaleque.

Os juízes são extremamente medrosos – se tem um bicho medroso é o tal do juiz, tem medo de desagradar os superiores. Para baixo ele pisa, para cima ele faz salamaleque.

NC: A que se deve esse medo, se é uma carreira absolutamente respeitável?

EA: É porque todo juiz, em última análise, almeja subir, e subir depende dos seus pares na instância superior, então ele tem que agradar a esses pares, eles, os juízes, acabam sendo permanentemente subalternos. Ao mesmo tempo aqueles que estão no topo da carreira, para chegarem lá, fizeram tanto salamaleque ao longo de sua vida que acabam tendo a sua coluna vertebral extremamente elástica. Em que eles se miram para lhes dar segurança? Na mídia. É a mídia que hoje faz a imagem do juiz, do magistrado, principalmente em sua cúpula e isso destrói completamente essa ideia do magistrado imparcial. Isso faz com que o magistrado se afaste de sua liturgia para deturpar, deformar essa liturgia em puro autoritarismo, em prepotência, arrogância.

NC: De que forma o Judiciário se torna um poder com enormes poderes?

Aragão em Natal (RN) com com o juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Rubens Casara e o médico Alexandre Motta (centro). Foto: Magaly Câmara

EA: Ele se mira na imprensa e em relação aos demais (poderes) é extremamente arrogante e prepotente. Desfazer isso vai ser difícil porque as corporações estão muito enraizadas dentro do nosso estado, mexer com elas é quase uma guerra civil, arrancar essas corporações dos seus esteios exige desprendimento de muita energia e não sei se até hoje chegou o governo que tem essa energia toda. A Justiça acaba se estabelecendo como poder maior dentro da República porque tem em suas mãos os deputados e senadores e o Executivo e isso faz com que essa Justiça cresça muito além dos limites que lhe foi imposto pela Constituinte.

NC: Na Constituinte foi dado um poder à Justiça, achando-se que ela ia defender o lado que nunca é defendido. Mas na prática…

EA: A justiça no Brasil sempre foi elitista, mas durante o período da Ditadura Militar foi reduzida a um poder burocrático, homologatório. Estava sob a chibata dos generais. Os magistrados que não se submetessem à ordem posta, eram submetidos ao AI-5, podiam ser cassados e mandados para casa. Havia uma enorme politização do uso da Justiça, os militares faziam uso político da Justiça e em 1977, o presidente Geisel fechou o Parlamento, editou o tal do Pacote de Abril e fez uma ampla reforma no poder judiciário, cortando as suas asas. Quando veio a Constituinte de 1988, a Justiça se apresentou como vítima da Ditadura. Eles queriam voltar a ser empoderados e de, certa forma, a Justiça foi vista, naquele momento, como um contrapeso a um (poder) Executivo poderoso demais, que tinha na Ditadura e assim houve uma tendência de se colocar a Justiça no centro das coisas, mas colocar a seu lado um novo órgão, esse novo Ministério Público (MP), que seria como um interlocutor entre o Estado e a Sociedade, dentro dos parâmetros da Lei da Ação Civil Pública. Se esperava desse MP que ele tivesse a capacidade de se fazer como contraponto a uma Justiça que fosse empoderada e que se pudesse tornar arrogante, mas o que aconteceu foi precisamente o contrário. O Ministério Público, ao longo dos anos, foi se amalgamando com a Justiça, quase que criando uma cumplicidade com a Justiça. O MP conseguiu ser reconhecido como equivalente ao judiciário; os procuradores e os promotores conseguiram ter os mesmos direitos dos juízes e com isso foram acolhidos pelo Judiciário. Houve como que uma conquista do Ministério Público pelo judiciário e com isso, em vez de ser o contrapeso ao judiciário, o MP acabou fortalecendo esses aspectos da prepotência, do excesso de poder, que era tudo o que a Constituinte temia.

O Ministério Público hoje está no topo da cadeia alimentar do serviço público, junto com o Judiciário e é uma instituição extremamente cara, assim como o Judiciário é extremamente caro.

NC: Quando esse processo tomou forma com essa clareza que o senhor define?

EA: Isso aconteceu principalmente depois do processo do impeachment de Collor de Melo. A Procuradoria (Geral da República) usou Pedro Collor e praticamente foi um dos vetores mais poderosos para a derrocada do Governo Collor e isso deu ao Ministério Público uma nova dimensão, uma dimensão de um poder que pode, eventualmente, calar um outro poder, foi colocado num nível de igualdade com os demais poderes. Isso faz com que o MP vá abandonando o seu papel de intermediário entre a sociedade civil e o estado, para assumir o papel hegemônico no estado, de querer tomar para si o poder porque isso fortalece a corporação como um todo e esse fortalecimento tem como consequência a sua valorização e também os seus ganhos maiores. O Ministério Público hoje está no topo da cadeia alimentar do serviço público, junto com o Judiciário e é uma instituição extremamente cara, assim como o Judiciário é extremamente caro. Pode ser pouco em relação ao Orçamento Geral do Estado, mas é muito em relação ao PIB, se comparado com outros países.

NC: Caro é uma coisa que não vale o que se paga por ela?

EA: Sim, porque há exageros, há desperdícios, há uma tendência do MP e da Justiça ficarem só olhando para seu próprio umbigo; seus atores vivem numa redoma de bem-estar social que faz com que eles esqueçam o que está lá fora. Em qualquer cidadezinha, por exemplo, do interior de Goiás, as casas podem ser de pau-a-pique, o vilarejo pode ser pobre, mas o Fórum é de vidro fumê e sua fachada é de granito e tem ar condicionado central lá dentro. Isso é a imagem do judiciário. Pode não ter dinheiro para o hospital, para o posto de saúde, mas o Judiciário está com toda a sua pompa e majestade.

NC: As escalas também são suntuosas, não?

 

NC: Tanta gente trabalhando numa única direção não se melhora a qualidade do produto final?

EA: Não. O que acontece é que se reage à pressão de quantidade. Hoje o STJ (Supremo Tribunal de Justiça) tem perto de 370 mil processos por ano e o STF (Supremo Tribunal Federal) tem algo entre 120 e 150 mil processos por ano. Em nenhuma corte suprema do mundo há esta carga de processos. Em vez de pensar o sistema como um todo, faz-se o puxadinho, coloca-se 50 funcionários para trabalhar com um ministro, para dar conta dessa carga processual, só que os votos acabam sendo de baixíssima qualidade, são relativamente curtos, superficiais, cheios de frases feitas, de preconceitos. Por exemplo, num sistema como o alemão, em que existe uma matriz de casos, é muito difícil um juiz de Hamburgo decidir substancialmente diferente de um juiz de Munique, porque os operadores aprendem suas matrizes de casos desde a época da faculdade, sabe como resolver um caso, à luz da jurisprudência dominante. Na Alemanha, a parte, dificilmente, vai para o recurso, para a apelação porque ela sabe que não adianta, as instâncias vão decidir de forma igual. Se ele perdeu, ele perdeu e se ele for indo às outras instâncias para cima, além de correr o risco de pegar uma multa porque o seu processo não vai ser admitido, é meramente protelatório, ele não vai mudar o seu destino, então isso faz com o que realmente chega lá em cima é de outra qualidade. Um juiz da maior corte alemã (Tribuna Constitucional Federal) tem por ano 200 processos. Assim, ele pode se dedicar a redigir 100, 200 páginas, profundas porque essa é a mais alta corte do país e olhe que são 200 e tantos juízes nessa corte.

NC: Há outas diferenças marcantes entre aquela corte e a nossa?

 

NC: Aqui não é assim?

EA: Não. Aqui no Brasil, nossa formação jurídica é do Século XVIII, Século XIX, aquela formação jurídica enciclopédica, em que o sujeito aprende tudo um pouquinho: Sociologia, Ciência Política, Economia. E esse menino, na hora que sai da faculdade, se vê como um luminar. Ele não sabe de nada de matriz de caso. Na hora em que ele vai para um cargo de juiz, depois de recém-formado, se acha um sábio e não tem matriz de caso para segurá-lo, então ele decide o caso conforme a sua cabeça. Só que o juiz do lado também decide conforme a sua cabeça e aí dá contradições entre aquilo que decidiu o juiz de uma vara e o que decidiu o de outra vara. Aquele que ficou com a pior decisão vai ficar insatisfeito e vai recorrer para a segunda instância. Na segunda instância tem uma turma que diz ‘A’ e outra turma que diz ‘Não A’ e aí sempre vai um insatisfeito que vai querer ir para a terceira instância, da terceira instância, para a quarta instância. Então, uma grande parte acaba chegando lá no final. Isso faz com que os tribunais superiores estejam extremamente sobrecarregados porque eles são, afinal de contas, instâncias para unificar o entendimento, já que os juízes não são capazes de seguir o entendimento unificado.

Esse é um problema da formação jurídica brasileira: há uma grande separação entre o trabalho jurídico diário e a academia pensante no Brasil.

NC: Uma reforma nos cursos de Direito poderia mudar essa história?
EA: Eu entendo que uma reforma do nosso sistema jurídico depende, antes de mais nada, de uma reforma do ensino jurídico. Uma reforma do ensino jurídico que tenha como prioridade a formação de operadores do Direito e não de pensadores luminares, não de acadêmicos, pessoas capazes de transmitir para as partes segurança jurídica, que isso não existe hoje no Brasil. Aquilo que diz a velha sabedoria popular, ‘de cabeça de juiz e de bumbum de neném, ninguém sabe o que vem’, pior é que sabe o que vem, mas não sabe quando vem. Esse é o problema. Juiz no Brasil é um elemento da insegurança e não da segurança, a gente nunca sabe o que um juiz é capaz de fazer.

NC: Essa reforma do ensino de Direito está no horizonte?

EA: Eu não ouvi falar a respeito disso.

As reformas que nós temos tido tem aumentado muito em conteúdos, a ponto de permitir até que faculdades acabem especializando seus alunos, porque o conteúdo acaba se acumulando de tal forma, que a especialização pelos menos é uma forma de se racionalizar esses conteúdos, mas não mais do que isso. As pessoas dos cursos jurídicos que se dedicam à formulação dos currículos, sentados na CAPES, na maioria das vezes são professores universitários de dedicação exclusiva com uma visão da academia como lugar de se discutir as grandes ideias e não tem a visão prática de transformar os seus alunos em eficientes operadores do Direito. Esse é um problema da formação jurídica brasileira: há uma grande separação entre o trabalho jurídico diário e a academia pensante no Brasil. Só que essa academia pensante em outros países, por exemplo, na Alemanha onde os professores, na maioria das vezes, são dedicação exclusiva, são chamados permanentemente pela administração pública para serem auxiliares do estado com seu conhecimento jurídico e isso lhes dá uma permanente presença nas grandes discussões do Direito posto.

NC: O que aconteceu em 2016 no Brasil foi um processo regular de impeachment ou uma traição política ou um golpe parlamentar ou uma eleição indireta ou foi tudo isso?

Foto: Luis Macedo/ Câmara dos Deputados

EA: Regular não foi, esse já excluo de antemão, não é regular você usar um instituto previsto na Constituição, deturpando-o pra aplicá-lo para afastar uma presidente da República que não praticou um crime de responsabilidade. Aquilo que qualificaram como crime de responsabilidade foi tirado do bolso do colete pelo Tribunal de Contas União, condenando uma prática que ele sempre tinha consagrado; foi oportunista, foi raivosa, foi hostil, foi confrontativa. Golpe tem vários significados; o golpe pode ser uma ruptura e o golpe pode ser também uma trapaça. Me parece que o que aconteceu em 16 foi os dois, foi uma trapaça e foi também uma ruptura da ordem constitucional.

Sem o centro, a Esquerda não governa, não governa. A Esquerda não tem, no Brasil, a densidade político-demográfica para governar sozinha.

NC: Quais foram as condições para que ocorresse?

EA: Se a gente olha o processo como um todo, a gente tem que ver que este resultado só foi possível porque houve uma desidratação do centro político no Brasil. O centro político era que desde 1988, melhor, desde 85 era o que garantia a estabilidade dos governos Sarney, Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso. Collor, quando perdeu o apoio desse centro, foi derrubado. Ocorre que o centro brasileiro há algum tempo, desde o governo Fernando Henrique Cardoso, por vários fatores, vem sendo empurrado para a Direita. Houve uma fragmentação desse centro e, por isso, mais facilmente cooptado pelas forças da reação. Então foi um processo político em que esse centro garantidor da estabilidade foi simplesmente desaparecendo, ele foi desidratado e o Brasil passou para uma enorme polarização. Sem o centro, a Esquerda não governa, não governa. A Esquerda não tem, no Brasil, a densidade político-demográfica para governar sozinha.

NC: Daí o perdão de Lula…

EA: Perdão, o Lula usou isso como retórica. O perdão é uma forma para o povão entender melhor a recomposição de forças. Lula sabe que só tem chance de voltar se houver uma recomposição desse centro. Como esse centro passou para a direita e, bem ou mal, teve presente no golpe, é difícil você recompor essa força sem buscar apoio de pessoas que tiveram envolvidas no golpe, mas que talvez se arrependam do que fizeram ou que pelo menos aquelas que não aceitam o resultado do golpe. Essas pessoas tem que ser trazidas de volta. Esse é um processo absolutamente necessário, já que se a gente não tem capacidade de mobilizar a opinião pública para realmente fazer uma mudança de peso com votos de Esquerda ou eventualmente mobilizá-la para uma ruptura dessa ordem burguesa, então nós temos que trabalhar para melhorar o ambiente político para a gente poder fazer os nossos pequenos avanços. A alternativa para isso seria a Revolução, mas se nós não temos capacidade nem para mobilizar pessoas para um ato de paralização nacional, como é que a gente vai fazer isso? A gente só tem condição de ir negociando com essas forças do centro que, por várias circunstâncias, foram empurradas para a Direita.

Essa classe média se mobilizou a partir de 2013 porque foi pilhada pela mídia.

NC: A classe média foi de verde e amarelo para as ruas protestando contra a corrupção dos governos do PT. E agora tem uma corrupção amplamente mostrada e a classe média parece não estar muito preocupada com isso. O que houve?

EA: No fundo, o que a gente nota disso é que esse discurso de combate à corrupção é um discurso vazio, porque não é um discurso estruturante. Ele é um discurso para mobilização de opinião pública, com objetivos nitidamente corporativos. Essa classe média se mobilizou a partir de 2013 porque foi pilhada pela mídia, apesar da classe média ter o melhor grau de instrução – vamos falar claramente – a instrução política no Brasil está abaixo da crítica, as pessoas são muito desinstruídas politicamente e isso faz com que elas sejam muito sujeitas aos chamados formadores de opinião e esse bombardeio sistemático da mídia, que começou com o mensalão, praticamente no terceiro ano do governo Lula, 2005 e isso sendo batido todo santo dia, essa massa não teve visão crítica suficiente para entender que estava sendo manipulada.

NC: Que elementos podem caracterizar que essa massa estava lá meio sem saber porque?

NC: Porque?

EA: O MP e a justiça, principalmente de 1º grau estão contaminados por uma clientela que passou nos concursos públicos, que é uma clientela muito exigente quanto a prestígio e vantagens. Houve uma modificação da composição dessas classes a partir do Collor, o aumento do prestígio e os aumentos dos ganhos fizeram com que aquelas pessoas que naturalmente estariam predestinadas para a diplomacia ou para os grandes escritórios de advocacia passassem a ver o MP e a Justiça como alternativa para ganhar dinheiro, porque os salários são muito altos. Para se ter uma ideia, um escritório 5 estrelas paga para um menino recém-formado, na melhor das hipóteses, de 6 a 8 mil reais. Enquanto um menino no MP, com três anos de formado, passa a ganhar quase 30 mil reais. Isso passou a atrair essa classe média alta, que tem uma visão reacionária, antipovo, uma visão de uma redoma de bem-estar fechadinha em que ela não interage com o resto, acha que povão é estorvo. Essa modificação se refletiu muito na atuação do Ministério Público, de uma atuação que era a favor dos direitos humanos, das populações indígenas, meio ambiente, passou a ser uma atuação essencialmente punitivista. É muito mais fácil você punir alguém, arrumar um culpado para um problema do que resolver o problema. E a corrupção é um problema a ser resolvido e não de se buscar pessoas apenas para serem punidas por ela.

O PT se omitiu em relação ao Supremo (…). Não havia por parte do Governo Lula, nem do Governo Dilma uma visão clara sobre (…) o que se esperava de um ministro.

NC: Como o senhor avalia a atuação do STF que depois de Eduardo Cunha garantir o seguimento do processo de impeachment, recebeu a denúncia contra ele e o afastou da presidência da Câmara sob o argumento de que ele não poderia estar na linha sucessória, mas o mesmo raciocínio não foi aplicado com Renan Calheiros…

EA: E nem com Aécio.

NC: Isso é o que se pode chamar de contradição?

EA: Não. Em primeiro lugar, eu não acho que houve um plano de deixar Cunha para ele terminar seu serviço e só tirá-lo depois. Isso são as contradições internas do sistema. Que no STF existe uma predominância de um pensamento conservador, isso não tem dúvida nenhuma, que a predominância desse pensamento conservador é muito influenciável pelo senso comum formado pela grande mídia, isso eu não tenho dúvida. A dificuldade de Teori (Zavascky) foi precisamente de conseguir construir um consenso ao longo de meses para afastar Cunha, ele tentou. Ele, na verdade, foi vítima de uma cilada do (Rodrigo) Janot.

NC: Como foi essa cilada?

NC: O senhor disse que o Supremo tem um viés conservador. Entende-se que o PT errou na mão?

Foto: José Cruz Agência BR_Fotos Publicas

NC: Com certeza. Não é que errou na mão, o PT se omitiu em relação ao Supremo, vamos dizer claramente isso. Toda vez que surgia uma vaga no Supremo Tribunal Federal, começava a gincana dos apadrinhados, pessoas começavam a correr para chegar perto das cercanias do Palácio do Planalto, para isso usavam seus apoios e esses apoios iam tentando criar uma tendência no poder decisório favorável ao seu candidato. Não havia por parte do Governo Lula, nem do Governo Dilma uma visão clara sobre um perfil, um estudo de como esse perfil devesse ser, o que se esperava de um ministro, não houve nenhuma sistematização dessa escolha, simplesmente se deixou isso ao sabor dessas corridas desenfreadas dos oportunistas. Quem acabava chegando ao final da corrida não era o mais bem preparado, não era o melhor perfil, mas sim era muitas vezes o mais inescrupuloso. É mais ou menos como numa seleção natural, na natureza vence o que tem mais resistência, o que é mais forte, e é esse o que vencia. E o que era mais forte e tinha mais resistência não significa necessariamente o que tem o melhor caráter, não significa que seja a melhor pessoa, politicamente mais engajada, que seja mais clara nas suas posições. Foi uma mixórdia. Colocou-se de tudo o que é tipo de gente lá dentro, sem visão clara de poder.

NC: Diferente de governos anteriores…

EA: Muito diferente do governo Fernando Henrique Cardoso, que só teve três vagas, o PT teve 13 vagas. O Fernando Henrique Cardoso teve três vagas e soube perfeitamente pinçar com segurança quem ele queria ali. Colocou Nelson Jobim, que era de uma fidelidade canina a Fernando Henrique Cardoso, colocou a Ellen Grace, que enquanto presidenta do Tribunal Regional Federal da 4ª Região foi sistematicamente suspendendo liminares contra a União, portanto apoiando o governo e colocou Gilmar Mendes, que dispensa qualquer tipo de comentário. Colocou ali três pitbul.

NC: Pitbuls?

NC: Qual é o resultado dessa falta de sistematização do perfil necessário por parte do governo?

EA: São pessoas incapazes de ver uma posição de governo e defender uma posição de governo e isso não tem nada de errado com o judiciário. Você pega qualquer judiciário do mundo, as composições são feitas não para beneficiar de forma antirrepublicana um governo, mas para alinhar a visão de mundo, a cosmovisão do Tribunal àquela de quem está no governo da vez. Quando o eleitor vota num governo ou vota num determinado candidato, num partido, ele está comprando um pacote, que vai moldar o parlamento e vai moldar o judiciário, ele está querendo um estado que tenha uma determinada cara. É isso que ele faz quando vota no presidente da República.

Nosso judiciário se tornou uma força fascista.

NC: E aqui nós viramos uma colcha de retalhos?

EA: Nós viramos um sujeito sem características claras, descaracterizado. Isso (foi o) que aconteceu com o Brasil. De certa forma é um pouco frustrante, foi um erro grande. Mas isso eu atribuo a uma profunda falta de conhecimento da cultura e do modo de ser do judiciário por essa Esquerda brasileira que era do PT. Se pegar os estudos do Instituto da Cidadania anteriores a 2003 e se vê muito lá discutido questão de segurança pública, vê-se muito discutida a questão agrária, discute-se muito educação, saúde, mas não se tem paper discutindo o judiciário. Lula quando assume em 2003, uma de suas primeiras declarações que deixou o então presidente do STF, Maurício Correia, fora de si, foi que o judiciário é uma grande caixa preta que tem que ser aberta. Mas no fundo ele estava sendo absolutamente sincero. O judiciário para o PT era uma grande caixa preta porque ele não conhecia aquilo, foi conhecendo pelo seu pior lado, o lado da arrogância, da prepotência, o lado ideológico, ativista, o lado do judiciário que é midiático. Esse judiciário que se converte numa força, desculpe a expressão, mas numa força fascista no sentido de que engambela a opinião pública para seus projetos de poder, utiliza-se das frustrações e das raivas da opinião pública para mobilizá-la, isso é fascista. Nosso judiciário se tornou uma força fascista.

Mônica Costa

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