Para o professor Antônio Gomes, Pró-Reitor da Universidade Federal do Ceará, a comunidade acadêmica precisa fazer autocrítica e conquistar a sociedade brasileira para ser sua aliada
Em entrevista ao Nossa Ciência, o professor Antônio Gomes, Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação da Universidade Federal do Ceará, fala sobre a situação atual da área de Ciência, Tecnologia e Inovação no País, as tentativas de integração entre academia, empresas e governo e a necessidade de levar o conhecimento produzido na universidade para a sociedade.
Nossa Ciência: Em 2016, a UFC foi a instituição com o maior número de depósito de patentes no País (67). De que forma a universidade, em especial os programas de pesquisa e pós-graduação, se relacionam com o mercado?
Antônio Gomes: A gente tem evoluído bastante nos últimos anos. A cultura da inovação claramente se consolida. Temos um forte movimento de vários programas de pós-graduação – não apenas dos cursos da área de Engenharia e Ciências, mas também de algumas áreas ligadas às Ciências Humanas. Hoje, a universidade tem um movimento interessante de busca pelo empreendedorismo, seja ele tecnológico ou sócio-cultural. No Ceará, em particular, eu diria que a gente teve um momento de muita sincronia entre o governo e as empresas, um movimento muito articulado, sincronizado entre empresas, academia e governo. Recentemente, houve um evento na Federação das Indústrias do Ceará (FIEC) em que foram aprovados 22 projetos em uma ação da Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Funcap) de financiamento de projetos de empresas desenvolvidos em colaboração com as universidades e institutos de pesquisa do estado. Isso foi uma boa demonstração da articulação entre os três setores – academia, governo e empresas. Também, meio tardiamente, a universidade e o Ceará estão finalizando o conceito de um parque tecnológico – que o estado não tinha. Isso é outra ação que mostra essa articulação em que há interesse de todos os setores. Temos uma expectativa muito grande para que haja cada vez mais iniciativas desse tipo – empresas e pesquisadores interagindo com apoio do governo e assim possamos agregar valor a algumas tecnologias, processos produtos desenvolvidos aqui no Ceará.
NC: Existe uma certa cultura de distanciamento da academia e do setor produtivo – o setor produtivo diz que a universidade é encastelada e a academia acusa o setor produtivo de não querer participar na parte do risco, que é inerente à pesquisa. Em termos práticos, o que a Universidade Federal do Ceará tem feito para estreitar essa relação?
AG: É verdade que os dois lados têm alguns preconceitos que devemos trabalhar para superar, porque o País precisa que sejam superados. A produção do conhecimento e a relevância da comunidade científica para a sociedade só vai se consolidar se o conhecimento científico for transferido para a vida real de alguma forma. E as empresas só serão competitivas e tecnologicamente sustentáveis se agregarem conhecimento, quer seja gerado aqui ou fora, mas precisam fazer isso e, em geral, boa parte das empresas do Brasil não faz isso. Se você olhar quantas empresas tem seu próprio centro de pesquisa e desenvolvimento, vai encontrar um número pequeno. É necessário que o setor empresarial se movimente nessa direção. A gente tem vários movimentos que mostram que nos últimos anos essa coisa tem avançado – temos a Anprotec, um movimento das empresas inovadoras, mas, do lado da academia, eu acho que a gente só vai conseguir fazer essa mudança quando a universidade passar a incentivar de forma muito pragmática a formação dos estudantes. Isso significa que para ter empresas de base tecnológica, vamos precisar fazer um movimento de startups – os próprios pesquisadores e os próprios estudantes começarem seus empreendimentos. O mundo está cheio desses exemplos, é assim que acontece. A gente tem conversado com todos os setores da universidade, a administração, os programas de pós-graduação, os cursos de graduação, programas de extensão, e, aqui na pró-reitoria, a gente tem uma coordenadoria de inovação tecnológica que faz esse meio de campo entre o conhecimento que é desenvolvido, a questão da patente e possíveis contatos com as empresas. A gente tem que fazer um movimento forte para que os estudantes, de posse do conhecimento que eles adquirem na universidade, saiam e sejam geradores de empregos, por meio da inovação e do empreendedorismo. Não significa dizer que todos os pesquisadores e todos os professores têm que fazer esse movimento. Mas, reafirmo que é o protagonismo dos pesquisadores que faz com que a gente tenha obtido esse resultado das patentes. Agora, temos um novo desafio, que é o licenciamento.
NC: Quais são as áreas de maior expertise da UFC?
AG: É até um pouco arriscado elencar, porque uma hora ou outra a gente pode esquecer. Mas, na perspectiva dos programas de pós-graduação, hoje a universidade tem cinco programas nível seis na Capes – isso significa, nessa escala, excelência internacional – temos em programas na saúde – Ciências Médicas e Farmacologia, na área da tecnologia temos recursos hídricos, que é uma área muito forte aqui no estado e temos, na área de Ciências Exatas, Matemática e Física – que são áreas bem tradicionais da universidade e que foram as primeiras pós-graduações da universidade, tanto em nível de mestrado quanto de doutorado. Então, globalmente, essas cinco áreas seriam as de excelência olhando do ponto de vista dos programas, do coletivo, mas, obviamente, temos vários grupos de excelência em outros cursos que não necessariamente são seis, mas que são grupos de pesquisa ou pesquisadores com inserção internacional, que fazem pesquisas de alto nível. Temos grupos que se destacam na Bioquímica, no Centro de Ciências Agrárias – na Zootecnia em particular, nas Ciências Humanas – na Sociologia – em vários outros, no Instituto de Cultura e Arte, na área de Filosofia, no Instituto de Ciências do Mar, na Engenharia de Transportes, a questão de logística, de tecnologias ligadas à pavimentação, na área médica, a questão de medicamentos é muito fortes – temos uma área e um grande grupo de pesquisa que atua desde o princípio básico até os ensaios clínicos – esse grupo idealizou uma pesquisa que ganhou repercussão enorme no mundo inteiro de uso da pele de tilápia na recuperação de queimaduras. Em todas as áreas a gente tem grupos de excelência.
NC: Como a universidade lida com esses grupos de excelência e com os que ainda são incipientes, que não têm essa inserção?
AG: A nossa universidade tem tido uma política, nas últimas gestões e na gestão atual também, equilibrada, no sentido de você apoiar, na medida do possível, os grupos de excelência, mas não esquecer, e, mais do que isso, traçar políticas para incluir, dar oportunidade aos grupos que estão se consolidando. Na distribuição de bolsas de iniciação científica, por exemplo, que é a base, onde começa a formação dos pesquisadores, a gente tem cotas dedicadas aos campi do interior, cuja competitividade ainda não é muito alta – se você comparar com a capital, eles estão em desvantagem. Temos feito essas ações para diminuir as assimetrias internas. A gente tem um edital importante, de professor visitante, para atrair pesquisadores estrangeiros e isso é muito equilibrado entre as diferentes áreas. Quando a gente olha a distribuição de bolsas concedidas para a iniciação científica de pesquisa, as bolsas concedidas para a pós-graduação, e os contratos de professores visitantes, quando a gente olha a universidade como um todo, eu diria que está muito equilibrado. Hoje o edital de professores visitantes é equilibrado, em número, na área de Ciências Exatas e Engenharia e na área de Humanas. A gente tem feito uma política equilibrada. Queremos que todos estejam envolvidos. Mesmo na questão do conceito de parque tecnológico, incentivamos a comunidade para que tenhamos as áreas de inovação tecnológica propriamente dita, com empresas de tecnologia, tecnologia da informação, química, materiais, biotecnologia, medicamentos, mas também com um espaço grande para ser ocupado pelas áreas que podem participar tanto do empreendedorismo cultural quanto do empreendedorismo social na linha da economia criativa, contribuições para projetos de mobilidade, essa coisa toda… A administração tem sempre atuado visando ter uma universidade que se desenvolva por completo, em todas as áreas. É um desafio enorme, mas a gente tem tentado fazer isso, um envolvimento de todo mundo.
NC: Tem havido, desde 2015, uma redução do número de bolsas de iniciação científica ano a ano. Esse ano houve uma redução de quase 100% em relação a 2015. Como a universidade lida com isso?
AG: A gente tem dificuldades, é verdade, mas eu diria que, na medida do possível, elas foram mitigadas. No caso da iniciação científica, em particular, nós temos três fontes – temos a universidade, a Funcap e o CNPq. No ano passado, o CNPq teve um corte da ordem de 22%, mas cerca de três meses depois, eles fizeram uma recomposição e quase que recuperou 100%. No caso da Funcap, a gente também teve um aporte das bolsas que a gente usufruía e, no caso da cota que depende da universidade, não teve nenhum corte. Em agosto do ano passado, a gente começou o edital de iniciação científica (IC) com alguns cortes, realmente, mas em outubro, novembro, houve uma recomposição e a gente ficou com um corte muito pequeno – bem menor do que o inicial – saímos de mil bolsas para cerca de 950 – não foi um corte tão significativo. O sistema exige, pela quantidade de pessoas, um crescimento. Isso é importante, mas a gente também precisa encontrar um ponto de sustentabilidade, porque não é possível crescer indefinidamente. Esse número de bolsas de IC, nos últimos quatro anos, na universidade, tem ficado constante, enquanto a comunidade científica cresce muito. Com um esforço enorme do seu orçamento, a universidade foi capaz de se manter e o mesmo com as agências de fomento. Isso também se aplica à Capes, na questão das bolsas de Mestrado e Doutorado. O que mais preocupa hoje, o mais crítico, não é a questão das bolsas, é o financiamento da pesquisa em si. Só para ter uma ideia, se a gente pegar a Capes, que é a principal agência de fomento de bolsas, o orçamento dela tem sistematicamente aumentado. A gente tem que fazer uma ressalva que quando você coloca o Ciência sem Fronteiras, que começou a alterar há alguns anos, houve um aporte muito grande e tem-se uma impressão de que o orçamento cresceu vertiginosamente e em seguida caiu drasticamente. Essa análise precisa ser feita com cuidado, porque se você tirar esse programa e olhar só o orçamento ordinário, ele tem aumentado. Mas o do CNPq é uma tragédia. Desde quando os recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) foram desvinculados, o fundo perdeu muitos recursos e o CNPq sofreu muito. Nitidamente, se a gente olhar os gráficos, o CNPq teve um orçamento em 2016 menor que em 2015 e em 2017 também. Pode ser que em 2018 seja ainda menor. Em 2016 ainda houve um certo “fôlego”, porque parte dos recursos que foram repatriados, da ordem de quase meio bilhão, foram pro CNPq. Isso permitiu pagar alguns editais que estavam atrasados e fazer alguns aportes para os INCTs (Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia), mas a situação é muito crítica. O que está no horizonte não é um cenário animador, porque a principal agência de fomento da ciência no Brasil – o CNPq – claramente tem um orçamento diminuindo. Se a gente olhar do ponto de vista do montante de recursos, estamos voltando, quando você corrige pela inflação, ao ano de 2004. Então, se a gente olhar o quanto a comunidade científica cresceu, essas coisas não são compatíveis. Não dá para imaginar que em 2017, a gente tenha o mesmo recurso para investimento que em 2004.
NC: Como a comunidade científica ou a própria sociedade brasileira poderia interferir nesse processo? Qual a sua perspectiva?
AG: A comunidade científica tem feito um esforço enorme, porque ela tem que se dividir em mil tarefas. Ciência é uma coisa feita com muita dedicação e muito trabalho, exige trabalho duro, insistente e com muito suor. Einstein tem uma frase de que no processo de geração do conhecimento, inspiração representa 5%, o resto é transpiração. A comunidade científica, no Brasil, tem que se desdobrar em muitas tarefas. O nosso apoio para os pesquisadores, do ponto de vista institucional é muito baixo. A gente tem muita dificuldade para fazer compras, a gente não tem muito apoio institucional para fazer prestação de contas. O pesquisador no Brasil concebe desde a ideia, faz a materialização do projeto, o gerenciamento do recurso, a prestação de conta e toda a operacionalização da compra, instalação de equipamentos…Praticamente faz tudo, e isso consome muito tempo, que poderia ser dedicado a estar completamente imerso e focado na atividade para a qual ele foi treinado, que é a pesquisa. E ainda é preciso fazer divulgação científica, dar boas aulas e interagir com as empresas, além de fazer inovação. É uma carga de trabalho muito grande. Também é necessário fazer política para não ser engolido nas crises, porque no Brasil, ao contrário do que acontece em outros países, durante a crise a primeira área em que é levantada a possibilidade de fazer corte é a ciência e tecnologia – são ministérios em geral desprestigiados. A comunidade, os pesquisadores estão no limite da força física – é muita tarefa – e, mesmo assim, mantendo um bom padrão de produção científica, um bom padrão de pesquisa – o Brasil tem hoje vários pesquisadores com inserção internacional que fazem pesquisa de nível internacional em condições muito adversas. Isso é um ponto, agora tem outro. Eu não estou querendo dizer com isso que a comunidade científica está atuando de forma ideal. Uma autocrítica que a comunidade científica pode e deve fazer é de que ela precisa ter a sociedade como aliada. A gente peca em duas coisas: primeiro, a sociedade não sabe o que a gente faz – por isso vem aquela questão de que o papel da divulgação científica é importante. Sem a ciência brasileira, nós não teríamos muitas coisas, mas o cidadão comum, se você perguntar, não tem essa percepção. Isso é um ponto que a gente precisa atacar. É mais uma tarefa para a comunidade científica, mas talvez ela seja uma estratégica – se a gente não fizer isso, ninguém vai fazer. A sociedade brasileira precisa saber o que a ciência brasileira faz para o desenvolvimento do País e para o benefício dela. Se isso não estiver claro, ela não vai ser aliada. O outro ponto é esse muro que alguns setores da sociedade colocam que a universidade está inserida, ele tem que ser derrubado, porque a sociedade precisa perceber que o investimento que é feito em ciência, o investimento que é feito nas universidades, tem um retorno muito grande. Esse discurso de que a pesquisa é importante, que a educação é importante, a gente não precisa fazer internamente, pois todo mundo concorda. É preciso externá-lo. Os tomadores de decisões serão muito mais cautelosos se houver a percepção popular de que a universidade é fundamental, de que a pesquisa é fundamental para a sociedade. Apesar de todos esses momentos que a gente vive – o Brasil é muito cíclico e a gente não está em uma boa hora – eu diria que a gente evoluiu bastante.
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