O astrofísico potiguar Jailson Souza de Alcaniz conta como escolheu sua a profissão e fala dos desafios de se fazer ciência no Brasil. Confira a entrevista.
Jailson Souza de Alcaniz, 43 anos, é astrofísico e desde 2011 chefia o Departamento de Astronomia e Astrofísica, no Observatório Nacional (ON), instituição quase bicentenária, cuja sede fica na cidade do Rio de Janeiro (RJ). Em 2012 e 2014, Alcaniz recebeu, respectivamente, os prêmios Jovem Cientista do Nosso Estado e Cientista do Nosso Estado da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj). Com mais de uma centena de artigos publicados nas principais revistas das áreas de Física e Astrofísica, a ênfase da sua pesquisa se dá em Cosmologia.
O pesquisador nasceu em Natal (RN) e desde criança sabia o que queria fazer, embora não soubesse o nome da profissão. Olhava para o céu e dizia que queria estudar os planetas. Sendo o mais novo e único filho, depois de três irmãs, era também muito apegado aos estudos e disciplinado na escola. Sentava nas filas da frente e passava de ano no terceiro de quatro bimestres em todas as disciplinas. Sua trajetória acadêmica e profissional é profundamente marcada por esse apego aos estudos. Com 27 anos de idade havia concluído o Doutorado, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), com a primeira tese sobre aceleração cósmica publicada no Brasil, apenas quatro após a descoberta da expansão do universo. Tal precocidade lhe garantiu um Pós-Doutorado na University of Washington, em Seattle (EUA), com bolsa do CNPq. Depois de três anos, recebeu proposta para permanecer lá, recebendo bolsa do National Science Foundation, e quem sabe tornar-se um pesquisador americano, mas preferiu voltar para Natal, onde havia a possibilidade de trabalhar com cosmologia na UFRN. Mas a possibilidade não se realizou…
Há 13 anos morando no Rio de Janeiro, o pesquisador titular do ON responde sem titubear que ainda é potiguar e que viaja para Natal de três a quatro vezes por ano, não só porque seus pais moram nessa cidade, mas também por colaboração profissional com pesquisadores da UFRN e de outras instituições nordestinas. Ao mesmo tempo, é um dos coordenadores de projetos internacionais de grande porte.
Um deles é o J-PAS (Javalambre Physics of the Accelerating Universe Astrophysical Survey – J-PAS/PAU-BRASIL em colaboração com a Espanha. O Brasil pagou a construção de um telescópio que vai permitir a observação de milhões e milhões de galáxias e com isso os pesquisadores poderão estudar algumas propriedades do universo. A Espanha, que abriga o telescópio, vai bancar o seu funcionamento. A parte brasileira do projeto, que vai começar no final de 2017, foi completamente paga. Foi também acertada a participação de um grupo de brasileiros no eRosita. O pesquisador acredita que por causa do J-PAS, o grupo brasileiro deverá ter participação no Euclid, um dos maiores projetos europeus em pesquisa em Astrofísica, cujo início será na próxima década.
Acompanhe a entrevista que o pesquisador concedeu ao Nossa Ciência em sua sala de trabalho.
Nossa Ciência: Quando entrou na Graduação em Física, você já pensava em pesquisa ou queria ser professor de ensino médio?
Jailson Alcaniz: Eu já pensava na pesquisa. Eu converso sobre isso com meus alunos: no meu caso, eu me decidi muito rápido (sobre) o que eu queria fazer: ainda antes da Graduação, no fim do segundo grau (atual Ensino Médio), depois que eu li um livro sobre relatividade, eu não sabia os termos, só sabia que eu queria fazer Física Teórica. Entrei em Física em 1992 na UFRN. Como eu não sabia exatamente o nome das coisas, não sabia que a área que eu queria estudar era Cosmologia, mas quando me foi falado de Astronomia, vi que era aquilo de que eu gostava. Mas na Astronomia, tem as suas divisões e ainda não era Astronomia o que eu queria fazer, era um ramo dela que é a Cosmologia. Quando finalmente eu encontrei esse ramo, me dediquei desde os primeiros anos da graduação. Eu fiz a Iniciação Científica em Cosmologia, Relatividade Geral, que estão muito associadas; fiz o Mestrado e o Doutorado em Cosmologia e fui para um Pós-Doutorado também para trabalhar em Cosmologia. Quando eu voltei para o Brasil, fiz concurso para criar um grupo em Cosmologia. Eles me contrataram para eu criar um grupo em Cosmologia Teórica, que não existia e estou aqui desde 2004.
NC: Qual livro?
Como vejo o mundo, do Albert Einstein, mas também li outro livro que é adotado em algumas faculdades, que é o livro (Curso de Física Básica) do Moyses Nunssenzveig, a minha versão era escrita à mão. No início, ele fala da História da Ciência desde Galileu e aquilo foi muito fascinante para mim.
NC: O que é ser cientista?
JA: Ser cientista é buscar entender os processos naturais observando o resultado de experimentos e aplicando ferramentas matemáticas para descrevê-los. No meu caso, tento compatibilizar ambos, já que uma parte considerável do meu trabalho confronta previsões teóricas de modelos do universo com observações cosmológicas. Ser cientista é ter essa curiosidade, querer entender cada vez melhor como a natureza funciona, sabendo que a natureza não respeita sua teoria se esta não for a correta. É preciso também saber que você pode trabalhar muito numa teoria e a natureza mostrar que essa teoria não é a melhor, você tem que sair dela e buscar um entendimento melhor. Esse é também um processo em que se aprende muito. Do ponto de vista prático, o cientista precisa ter vocação, porque não tem como se desligar. Existe uma diferença entre um cientista e outros trabalhadores: é que às vezes, em outros ramos, a pessoa sai às cinco horas do trabalho e só volta a pensar naquilo no outro dia pela manhã. Com o cientista não é assim. Ele sai do trabalho pensando como pode melhorar tal análise – não é que nunca se tire férias, mas é difícil se desvincular, sair completamente do ambiente de trabalho, do trabalho em si, mesmo quando não se está nele.
NC: Você vem de uma família evangélica…
JA: Mais ou menos. Minha mãe é evangélica. Meu pai nunca foi e hoje nem católico ele é…
NC: Você chegou a acreditar no criacionismo? Isso fez parte da sua educação?
JA: Não, que eu me lembre. Talvez hoje por causa da internet, porque se tem acesso às informações, isso tenha ficado mais patente aos olhos de todo mundo, então as pessoas pensam mais nisso. Quando eu era adolescente, as pessoas não pensavam muito nisso. Agora, quando você começa a ter mais leitura, não somente em Física, mas em outras áreas, você começa a perceber que a aquela história especificamente é uma história que faz parte da cultura judaica, é uma maneira como eles veem e eles têm todo o direito de ver a criação daquela maneira, mas isso não te nada a ver com a figura de Deus.
NC: Você acredita em Deus?
JA: Eu acredito, acredito de fato. Mas o fato de você entender que aquela narrativa ali é da maneira como eles veem o mundo e que você não acredita naquela narrativa, isso não significa que você não acredita em Deus. São duas coisas completamente diferentes. Religiões, principalmente hoje em dia, não estão representando Deus muito bem, nem mesmo o próprio cristianismo. É tanto que você vê as posições que as pessoas que são ditas religiosas, cristãs tomam. Para mim está muito clara essa separação, acreditar em Deus é uma coisa e seguir ipsis litteris essas religiões cristãs é outra. Não é que não haja pessoas bem-intencionadas, pessoas boas, como há em qualquer lugar, mas o que domina hoje são pessoas com as quais é preciso se ter cuidado.
NC: Como é fazer ciência no Brasil?
JA: Em todos os lugares e em todos os ramos há dificuldades e a primeira é financeira. Eu sou um físico teórico que trabalha com teorias e testa as teorias com dados. Isso significa que eu preciso de dados observacionais que, no caso específico da Astrofisica, da Cosmologia, são muito caros. Quando o Brasil estava crescendo e o volume de dinheiro para a Ciência era muito maior, havia muito mais oportunidade de se trazer pessoas, de se enviar pessoas para fora, de se ter acesso a dados, enfim, de se entrar em colaborações; quando a coisa começou a andar para trás, as dificuldades aumentaram.
NC: Quais são as grandes dificuldades?
JA: As dificuldades de se fazer Ciência no Brasil variam de acordo com o ramo em que se está. Como uma espécie de herança desses últimos anos em que o Brasil estava bem e crescendo, no meu caso específico há muitos dados observacionais para serem tratados, para serem estudados, de maneira que muita teoria vai ter que ser feita para entender melhor esses dados. Mas não se faz isso sozinho, eu tenho aqui um grupo de pesquisa que tem em torno de 15 pessoas trabalhando; são estudantes de Doutorado e de Pós-Doutorado e tem outro pesquisador que foi contratado recentemente. Hoje a dificuldade é manter esse pessoal, porque embora o Brasil tenha pago milhões de dólares para construir esse telescópio (J-PASS) e ter acesso a esses dados e tudo o que vem com ele, a gente agora precisa ter dinheiro para manter esse pessoal, que se especializou nisso e agora que os dados vão chegar.
NC: E isso não está assegurado?
JA: De forma nenhuma, isso não está assegurado. O que está assegurado aqui é a minha posição e a posição do Armando, que foi contratado há quatro anos. Uma hora as bolsas dos pós-docs e doutorados podem acabar. Um projeto de pesquisa como o nosso, que envolve colaboração internacional com grandes volumes de dados, com muitos trabalhos importantes para serem feitos, precisa ter gente. Meu trabalho não é puramente teórico, em geral quando se tem que lidar com isso e testar as teorias à luz desses dados, precisa ter gente de estatística, gente de computação, gente da teoria, gente da parte observacional e é essa junção que funciona. Desde 2004 que eu estou aqui. Nós treinamos gente em diferentes áreas para que hoje tivéssemos essa massa crítica, mas essa massa crítica não é contratada, não tem uma posição permanente.
NC: Por que você saiu de Natal?
JA: Na verdade eu nunca fui muito encantado com outras regiões do país que se dizem mais desenvolvidas. Eu tive a sorte de ao começar o Doutorado em 1998, ter havido a descoberta da expansão acelerada do Universo, e eu fiz a primeira tese do Brasil sobre a aceleração cósmica. Era uma área nova, tinha muita coisa para se explorar e eu explorei muita coisa. Eu sai de Natal porque eu terminei o Doutorado em 2001. Eu fui trabalhar nos EUA, na Universidade de Washington, em Seattle e fui fazer pós-doc com Craig Hogan, que era um dos pesquisadores que tinham descoberto a aceleração do universo, um teórico num grupo de observacionais, e em 2011 esse pessoal recebeu o Prêmio Nobel por essa pesquisa. Eu estava bem em Seattle, estava no Departamento de Astronomia, no terceiro andar e no quarto andar era o Departamento de Física. Como eu sou físico e trabalho em Cosmologia, eu estou na interface entre Astronomia e Física, então eu tinha acesso de um lado e do outro. Eu tinha publicado um artigo sozinho sobre uma teoria bastante recente, que é a teoria de Branas, mas eu tive que fazer algumas escolhas. Existia a possibilidade de ficar mais três anos em Seattle, com a bolsa da National Science Foundation. Em Natal havia a ideia de se transformar o Departamento de Física (da UFRN) em Instituto de Física, que teria alguns departamentos e um desses seria o Departamento de Astronomia e certamente quando se faz isso surgem vagas. E eu decidi voltar para Natal, por causa dessa possibilidade, que parecia bem plausível, afinal já havia rumores desde que eu havia saído de lá, dois anos antes. Quando eu cheguei em Natal, porém, a situação era completamente diferente
NC: Que realidade você encontrou?
JA: Aquela possibilidade não era tão plausível assim – tanto é que até hoje o Instituto de Física no Departamento de Física nunca foi criado e nem o Departamento de Astronomia também nunca foi criado, meu ex-orientador estava saindo para a Universidade de São Paulo, onde está até hoje… Então, eu me inscrevi para três concursos: do INPE, em São José dos Campos; aqui no Observatório Nacional; e da USP, em São Carlos. Eu tirei a nota máxima no concurso do INPE, junto com Oswaldo Miranda, que está lá até hoje, e pela regra do concurso, o mais velho fica com a vaga e eu sou mais novo do que ele. Na semana seguinte, eu fiz e passei no concurso do ON e nem fui mais fazer o da USP. Em 2003, 2004 esse tema de aceleração cósmica, de energia escura era semelhante ao que hoje são essas áreas de exoplanet ou de ondas gravitacionais, tanto que logo depois veio um prêmio Nobel para essa descoberta. Aqui (no ON) a ideia era criar um grupo de Cosmologia e é isso que eu tenho trabalhado para construir. Não é que em Natal não fosse possível fazer isso. Em Natal era e é possível fazer exatamente o que a gente tem aqui…
NC: Parece que a sociedade deu alguns passos atrás em relação a ciência. No Brasil, houve severos cortes nos recursos do MCTIC. Como você vê isso?
JA: Eu sofro essa consequência. Se hoje eu não tenho como manter todos os pós-docs que a gente precisa para fazer essa pesquisa é uma consequência disso que está acontecendo. E eu não sei se eu culpo as pessoas por não entenderem e não pressionarem os políticos, porque cada vez que se investe em Ciência, melhora a vida da população como um todo. Países que investem mais em Ciência tem um melhor Índice de Desenvolvimento Humano, isso é uma relação, aparentemente, direta. Como eu disse aqui, há um tempo a gente tinha outra política de ciência, mas atualmente quando se tem que cortar (investimentos) de algum lugar, eles cortam na Ciência. O que a gente vê é que aparentemente ou a Ciência não tem tanta importância ou os governantes não têm noção do cenário catastrófico que os cortes vão causar na Ciência como um todo e que é extremamente difícil recuperar. Não é fácil formar gente boa, é muito trabalho para simplesmente a partir de agora não se ter mais nada disso, voltar para à estaca zero. Ou a população não tem conhecimento disso ou se tem – o que é mais grave – não reage. Infelizmente muito trabalho que foi feito, vai ter sido feito em vão porque não se tem como dar continuidade. No meu caso específico, a gente vai ter muitos dados porque a gente conseguiu pagar esses telescópios até o começo do ano passado e vai começar a funcionar. O funcionamento é da Espanha, ou seja, são eles que têm que manter e isso vai ter, mas eu não tenho como fazer sozinho. Agora, imagine o pesquisador que está no laboratório, que não tem mais verba para manter o laboratório funcionando e tantas pesquisas que foram desenvolvidas ali… É catastrófico!
NC: É possível reverter esse quadro?
JA: Eu acho que tinha que ter uma conscientização, a própria academia deveria fazer isso, mostrar à população que dinheiro investido em Ciência não é dinheiro desperdiçado. Eu entendo que isso não é fácil das pessoas entenderem. As pessoas podem se perguntar por que eu vou gastar dinheiro para alguém estudar como as galáxias se formam? Por que isso é um investimento para a população em geral? Primeiro, que você não só estuda como as galáxias se formam, embora isso também seja investimento em tecnologia, cultural e tudo o que você possa imaginar, mas enquanto as pessoas não souberem disso que esse investimento é para o bem estar da população como um todo e não só dessa classe de pessoas, a gente vai ter um governo fazendo isso, cortando em Ciência sem nenhuma reação da população. Eu lamento e gostaria muito de ter a oportunidade de contribuir para mostrar isso às pessoas. Eu acho que esse tipo de iniciativa que você tem, é uma coisa regionalizada, o fato de ter portais científicos que mostram a importância disso, certamente contribui para que as pessoas entendam. Não e simples, eu entendo, mas é preciso mostrar.
NC: Em algum momento, nesses 13 anos, você pensou que fez a escolha errada?
Falar do que poderia ter sido é sempre difícil. São muitos os fatores que determinam o sucesso ou não de um pesquisador. Certamente, as condições lá fora – nos chamados países desenvolvidos – são mais estáveis. De qualquer forma, por tudo que foi possível fazer durante esses 13 anos – um grupo de pesquisa consolidado, com várias colaborações no Brasil e no exterior, 15 orientações de doutorado e mestrado etc. – eu não tenho razões para me arrepender. Eu acho que essas realizações mostram que a decisão de voltar não foi errada.
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