Replicabilidade no Brasil: Um Marco para a Ciência Aberta e Transparente Artigos

quarta-feira, 30 abril 2025

(John Fontenele Araujo)

Uma das discussões centrais na ciência contemporânea é o debate sobre a confiabilidade dos resultados científicos. Esse debate ocorre tanto na academia quanto na sociedade em geral. Por exemplo, têm surgido diversas notícias sobre artigos de cientistas brasileiros sendo retratados — ou seja, removidos de revistas científicas — por má conduta dos autores. As razões para a retratação são variadas: podem decorrer de simples erros de edição ou erros não intencionais, como duplicação de artigos, ou de más condutas graves, como manipulação, fabricação, falsificação de dados e plágio.

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Uma avaliação publicada na revista Nature indica que a taxa de retratação — a proporção de artigos publicados em um determinado ano que são posteriormente retratados — triplicou nos últimos dez anos e, em 2022, ultrapassou 0,2%. A própria ciência reconhece esse problema e tem desenvolvido diversas estratégias para garantir a confiabilidade dos estudos. Atualmente, dois conceitos centrais permeiam essa discussão: replicabilidade (replicability) e reprodutibilidade (reproducibility). Ambos são fundamentais para o método científico e estão no centro do que se denomina hoje de crise de reprodutibilidade, especialmente nas ciências biomédicas, psicológicas e sociais.

Recentemente, foi divulgada a primeira pesquisa brasileira sobre a replicabilidade de estudos científicos nacionais. O artigo apresenta uma ampla replicação multicêntrica de experimentos biomédicos publicados no Brasil. As taxas de replicação variaram de 15% a 45%, dependendo dos critérios utilizados para definir a replicabilidade. Antes que o leitor interprete esses números como uma demonstração de baixa qualidade da ciência brasileira, é importante destacar que essas taxas são compatíveis com as estimativas observadas na literatura biomédica internacional.

A pesquisa foi conduzida pela Rede Brasileira de Reprodutibilidade (RBR), uma iniciativa multidisciplinar e multi-institucional que busca promover práticas de pesquisa mais transparentes e confiáveis. A criação da RBR reflete o reconhecimento da necessidade de aprimorar práticas metodológicas por meio de maior rigor, colaboração e transparência.

O estudo começou com uma avaliação sistemática de uma amostra aleatória de artigos biomédicos brasileiros, a fim de identificar os métodos experimentais mais utilizados. A partir daí, foram selecionados os dez métodos mais comuns. Em uma chamada nacional, 73 laboratórios de todas as regiões do país — incluindo o nosso — manifestaram interesse em participar. Com base na experiência dos respondentes e na viabilidade dos experimentos, três métodos foram escolhidos para replicação:

  • Ensaio de redução de MTT (brometo de 3-[4,5-dimetiltiazol-2-il]-2,5-difenil tetrazólio);
  • Reação em cadeia da polimerase com transcrição reversa (RT-PCR);
  • Teste de ansiedade em labirinto em cruz elevado (EPM).

Cada laboratório participante foi responsável pela replicação de um experimento, selecionado conforme sua expertise.

Ao comparar o estudo brasileiro com iniciativas internacionais, observou-se uma taxa de replicação semelhante, embora levemente inferior. Múltiplos fatores explicam essas diferenças, incluindo:

  • A estratégia de amostragem (literatura geral versus artigos altamente citados);
  • A seleção dos experimentos (primeiro experimento significativo versus experimentos mais relevantes);
  • O tipo de instalação (laboratórios acadêmicos versus serviços comerciais);
  • A participação ou não dos autores originais na replicação;
  • A subárea (biologia geral versus câncer);
  • A região de origem dos artigos (Brasil versus outros países).

Destaca-se a originalidade do estudo brasileiro, que utilizou uma amostra representativa aleatória — diferente de estudos anteriores, que priorizavam áreas específicas ou artigos mais citados —, sendo o primeiro estudo a avaliar replicabilidade dentro de um país específico. Isso é crucial, pois gera dados diretamente aplicáveis para agências de fomento, instituições de pesquisa e cientistas, fundamentando a formulação de novas políticas científicas.

Este estudo representa uma grande contribuição para a ciência brasileira. Todos os dados quantitativos das replicações estão abertos e disponíveis para análises futuras. No entanto, ainda é necessária uma análise mais profunda para entender melhor os fatores que influenciam a replicabilidade.

Por fim, destaca-se a natureza colaborativa do projeto, que contou com apoio financeiro do Instituto Serrapilheira e proporcionou uma rica experiência de aprendizado para os muitos pesquisadores envolvidos. O estudo trouxe a discussão sobre replicabilidade e reprodutibilidade não apenas para o meio acadêmico, mas também para o debate público. Esta foi uma iniciativa exitosa que deve ser expandida. Como afirmam os autores na conclusão do artigo:

“Esperamos que esse legado ajude a colocar a reprodutibilidade na vanguarda da agenda de pesquisa nacional do Brasil.”

O estudo da RBR é um marco para a ciência brasileira, destacando a maturidade da comunidade em autorreflexão e colaboração. Os resultados reforçam que a reprodutibilidade deve ser tratada como um pilar da pesquisa, não como uma “nota de rodapé”. Como próximo passo, seria valioso:

  1. Repetir o estudo em outras áreas (por exemplo, psicologia, agricultura);
  2. Criar diretrizes nacionais para replicação e transparência;
  3. Engajar o público na discussão, mostrando como a ciência “auto corrige” seus métodos.

Como citado no texto, o legado dessa iniciativa pode, de fato, colocar o Brasil na vanguarda de uma ciência mais confiável e colaborativa.

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John Fontenele Araújo é professor titular do Departamento de Fisiologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicobiologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte

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