Como se tornar escritor/a sem escrever Linguaruda

segunda-feira, 3 fevereiro 2025

A promessa de se tornar escritor sem escrever reflete a banalização da autoria na era digital. O que isso significa para a literatura?

(Cellina Muniz)

Sim, o título contém uma dose de sarcasmo. Porque rir foi minha primeira reação ao me deparar com uma postagem “sugerida” pelo Instagram, que dizia algo mais ou menos assim:

Realize o sonho de ter seu próprio livro sem precisar escrever nenhuma única palavra. Você me fala sua ideia, o que você quer no conteúdo, eu escrevo e te dou 100% dos direitos autorais para você fazer o que quiser.

Junto a esse bizarro texto, narrado e legendado, uma série de imagens feitas por IA mostram uma mulher, jovem, magra e branca, em plácidas cenas: numa banheira, bebendo um café, sempre com um livro em mãos.

Eu ri, mas o assunto é sério e propicia muitas reflexões.

Escritor fantasma

Primeiramente, em essência, a dicotomia entre nome que assina a obra  versus  pessoa que efetivamente escreve não é novidade na história. Alguns chamam isso de ghostwriting, nada mais que um escritor fantasma.Na cidade de Natal, pouco tempo atrás, todos vimos uma figura do cenário político publicar dois livros num só fôlego e tornar-se escritor da noite para o dia…

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O curioso é como isso, pelo que parece, tende a se tornar comum, à beira do banal, graças às possibilidades oferecidas pelas tecnologias digitais e pelos recursos, cada vez mais acessíveis, das inteligências artificiais.

Não à toa, no final da postagem mirabolante e da promessa de um livro de cem páginas A4, o narrador ainda acrescenta:

O preço normalmente de mercado é de, no mínimo, 10 mil reais, porém eu vou escrever seu livro, impecável, perfeito, em menos de uma hora, por 49 reais.

Só rindo. Como a categoria de escritores é barata…

O autor do romance A curiosa história do editor partido ao meio na era dos robôs escritores, Jose Luis Saorin.

Essa postagem me remeteu prontamente ao romance do escritor espanhol José Luis Saorín, lançado no Brasil pela Relume Dumará em 2005 com o título A curiosa história do editor partido ao meio na era dos robôs escritores. Nesse “romance de intriga” (traduzido por Luis Reyes Gil), a trama gira em torno de Ramon, um pequeno editor funcionário de uma grande companhia de comunicações que se divide na identidade secreta de Nomar, um escritor de best sellers açucarados. O detalhe é que, não bastando ter que se equilibrar entre o editor e o autor, Ramon/Nomar vê surgir, com apreensão, os programas EAC – Escrita Assistida por Computadores.

Quando as Big Techs como Google, Facebook e Amazon ainda estavam engatinhando, Saorín já intuía fortemente a tendência que vai se mostrando cada vez mais evidente: na convenção de editoras a que o protagonista comparece, em determinado trecho do enredo, ele logo constata: “Ninguém parecia se importar com o que havia dentro das capas daqueles volumes. Na verdade, ninguém mais os chamava de livros mas de produtos, assim como ninguém utilizava a palavra leitor, e sim clientes ou compradores.”

Nossas pistas digitais

Voltando à postagem, como afirmei no começo deste artigo, muitas reflexões são possíveis: de um lado, há um discurso sobre acessibilidade e democratização da leitura e da escrita que essas tecnologias digitais podem propiciar. Sem dúvida. Porém, por outro lado, há que se considerar que por trás dessas tecnologias há empresas bilionárias, apoiadoras de regimes de extrema-direita e negligentes com suas pegadas de carbono no planeta. Empresas que, a partir do rastreamento de nossas pistas digitais (nossas curtidas, nossos prompts, todos os nossos clicks, enfim…), vão incrementando cada vez mais as bolhas personalizadas em que nos encerram e que filtram o que nos chega de informação, conforme interesses sempre monetários. A esse respeito, ver, por exemplo, o livro de Eli Pariser, lançado no Brasil pela Zahar com o título “O filtro invisível”, na tradução de Diego Alfaro.

Eli Pariser, autor do livro O filtro invisível

Evidentemente, as informações são direcionadas há muito tempo. O livro que você encontra facilmente na primeira prateleira das livrarias de uma grande rede certamente não vem de uma pequena editora independente e certamente não é assinado por um autor obscuro e fora das grandes rodas literárias. O mercado impõe nossas opções. Mas, como afirma o mesmo Eli Pariser, se com os meios de comunicação de massa havia a opção de escolha (eu posso ter em mãos o controle da TV e escolher que canal vou assistir), na internet não temos a opção de decidir o que aparece ou não nos nossos feeds do Instagram ou no ranking que o Google oferece de respostas aos meus comandos de busca.

De filtro em filtro, os robozinhos mágicos vão nos encerrando em bolhas e, conectados na rede, ficamos, na verdade, isolados. E assim vão direcionando as informações, tolhendo nossas opções, determinando nossas direções e moldando cada vez mais nossas visões de mundo.

Um mundo fechado para a diferença, a divergência, o debate. Um mundo fechado para o que não é fácil, instantâneo e descartável. Um mundo fechado para o lento ruminar, para a criatividade, para o esforço do trabalho inventivo e para a disciplina do labor em torno da imaginação. Parar para sentar e escrever cem páginas é uma árdua tarefa que exige tempo, energia de concentração, dedicação e leitura, muita leitura. Qualquer escritor ou escritora de verdade sabe muito bem disso.

E certamente também não abre mão.

Leia outros textos da coluna Linguaruda.

Cellina Muniz é escritora e professora do Departamento de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

(Todas as imagens usadas nesse artigo são reprodução)

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