Como o 'complexo de vira-lata' afeta a percepção da ciência brasileira e o papel dos cientistas. Dá para superar esse comportamento e fortalecer a ciência nacional?
(John Fontenele Araújo)
Prezado leitor, se você está lendo este texto é porque tem interesse em ciência, mas será que você conhece algo sobre a ciência brasileira? Você consegue lembrar facilmente o nome de um cientista brasileiro ou de uma instituição científica no Brasil? Estas perguntas compõem uma pesquisa com a população brasileira pelo Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE) e pelo Instituto Nacional de Comunicação Pública da Ciência e Tecnologia (INCT-CPCT).
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Os resultados da pesquisa realizada em 2024 pelo CGEE em conjunto com o INCT-CPCT mostraram que os brasileiros são otimistas em relação a ciência e que devemos aumentar o investimento em pesquisa científica, que a população brasileira reconhece a importância da ciência e confia fortemente nos cientistas (veja a figura abaixo que apresenta o índice de confiança em diversas categorias).
Por outro lado, quase metade dos entrevistados consideram que a ciência brasileira está atrasada, enquanto 35% consideram a ciência brasileira de forma intermediária e somente 15% entendem que a ciência brasileira está numa posição avançada. Além disso, somente 8% conseguem se lembrar do nome de um cientista brasileiro, e em muitos casos os nomes citados são de cientistas estrangeiros ou de pessoas que atualmente não fazem ciência, tais como influenciadores, jornalistas, políticos etc.
Esta contradição entre o interesse mais a valorização da ciência pela população brasileira em relação ao seu desconhecimento sobre a qualidade, e quem são os cientistas brasileiros e onde eles trabalham, tem múltiplas explicações. Aqui neste texto sugerimos uma explicação que em parte pode ser estar no próprio comportamento dos cientistas brasileiros. Comportamento este que chamamos de “complexo de vira-lata”.
A expressão complexo de vira-lata foi criada pelo escritor e dramaturgo brasileiro Nelson Rodrigues em 1950. Ele usou o termo para descrever um sentimento coletivo de inferioridade dos brasileiros que, segundo ele, carregam em relação a outros países, especialmente em relação aos países localizados no hemisfério norte. Isto significa que o Brasil e os brasileiros sentem-se de alguma forma inferiores em aspectos culturais, econômicos, políticos ou sociais. Adicionalmente, o complexo de vira-lata implica na tendência a acreditar que tudo que vem de fora (produtos, ideias, culturas) é superior ao produzido no Brasil, ou seja, é uma visão que ignora ou desvaloriza as riquezas e potencialidades locais. Mas será que a ciência brasileira é “vira-lata”?
Primeiro queremos deixar claro que não estamos generalizando este tipo de comportamento, mas que existe um expressivo comportamento vira-lata entre os cientistas. Consideramos como uma justificativa para esta afirmativa um parecer que o comitê de avaliadores do CNPq deu para uma proposta apresentada à chamada CNPq/MCTI/FNDCT Nº 22/2024 – Programa Conhecimento Brasil – Apoio a Projetos em Rede com Pesquisadores Brasileiros no Exterior. O objetivo da chamada é “Apoiar projetos de pesquisa que visem contribuir significativamente para o desenvolvimento científico e tecnológico e a inovação do País, nas diversas áreas do conhecimento, em cooperação com pesquisadores brasileiros radicados no exterior”. Uma chamada que visa estimular a formação de rede de pesquisadores que estão no Brasil com pesquisadores brasileiros que estão trabalhando em instituições de pesquisa fora do Brasil. Um exemplo de parecer apresentado foi
“Os pesquisadores brasileiros residentes no exterior não são líderes do grupo e apresentam produção intelectual muito abaixo dos pesquisadores que trabalham no Brasil. Desta forma, a formação da colaboração internacional não possui potencial de trazer benefícios ao grupo brasileiro”
(o texto do parecer foi modificado para corrigir os erros de português e deixá-lo mais claro para os leitores).
Fica claro que para alguns cientistas brasileiros, só é possível fazer pesquisa em colaboração internacional quando o grupo de pesquisadores brasileiros é inferior aos pesquisadores que trabalham no hemisfério norte. Por isso chamamos este comportamento de “complexo de vira-lata”, afinal desvaloriza o que é nacional em comparação ao que é estrangeiro, acredita que tudo que vem de fora (produtos, ideias, culturas) é superior. Consideramos que o comportamento “vira-lata” de alguns cientistas brasileiro tem raízes no processo histórico do Brasil, incluindo a colonização, a escravidão, as desigualdades sociais e econômicas. Quero deixar claro que este comportamento “vira-lata” não faz parte das diretrizes da instituição CNPq, inclusive as proposições do CNPq institucionalmente são no sentido contrário.
A ciência vira-lata no Brasil, a partir do comportamento de alguns cientistas se equivale a “tese de que no Brasil não existe e nem poderá existir filosofia brasileira, ou seja, brasileiro é inapto para a filosofia. Ou ele não faz ou quando ele faz, faz muito mal feito” como descreve John Aquino em seu excelente texto A desqualificação da filosofia brasileira, em que comenta a historiografia da desqualificação do Silvio Romero.
O comportamento vira-lata de alguns cientistas brasileiros provavelmente está contribuindo à desmotivação coletiva da população brasileira, com uma falta de orgulho da ciência nacional e talvez justifique a dificuldade da população brasileira em lembrar de nomes de cientistas brasileiros. E para o conjunto da sociedade, este comportamento vira-lata contribui para a manutenção de estereótipos negativos sobre o Brasil e os brasileiros.
Então, aproveito para convidar os colegas a debatermos o problema da ciência vira-lata para desenvolvermos estratégias de superá-la e com isso ampliar a percepção positiva sobre a ciência brasileira e em especial a valorização da ciência produzida no Brasil, aumentando o Índice de confiança nos cientistas brasileiros. Talvez assim a comunidade científica passe a ser chamada para contribuir com a formulação de políticas públicas baseadas em evidências científicas.
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John Fontenele Araújo é professor titular do Departamento de Fisiologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicobiologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
John Fontenele Araújo
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