A convergência entre humor e digital, umas reflexões críticas sobre as tecnologias e suas práticas contemporâneas
(Cellina Muniz)
Neste nosso mundinho em que as tecnologias e práticas digitais estão cada vez mais presentes (pelo menos, nos grandes centros urbanos), não é de se estranhar que o humor se faça presente também nesse contexto.
A convergência entre o humor e o digital pode ser abordada em, pelo menos, dois aspectos. Um primeiro aspecto diz respeito aos próprios meios de produção e de circulação do humor. No livro “Humor hipermidiático” (Buenos Aires, editora Teseo, 2023), o pesquisador argentino Damian Fraticeli aponta algumas particularidades destes novos tempos, em que, além dos meios de comunicação em massa (TV, rádio etc.), os meios com base na internet e telefonia (smartphones, tablets, notebook, computadores em geral) possibilitam algumas características para as formas com as quais se faz e se consome humor nesta era digital:
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Assim, por exemplo, não é preciso mais ser um comediante profissional, com contrato assinado , com dia e horário para piadas em seu programa de auditório ou ser um chargista empregado por empresa jornalística para publicar suas tiras cômicas nos suplementos de fim de semana: qualquer um, a qualquer momento e em qualquer lugar, pode criar um perfil humorístico nas redes sociais, ou ajudar a viralizar um meme, produzir um GIF engraçado ou usar IA para fazer parodia de uma velha canção cantada pelo influencer da vez…
Mas essas características não parecem se restringir apenas a textos de humor e sim a toda e qualquer discursividade digital: qualquer comando de busca, mesmo considerando os “filtros-bolhas” em que os algoritmos nos encerram, permitirá o encontro de uma infinidade de dados, de sermões religiosos a tutoriais de instrumentos musicais, de palestras sobre a escrita egípcia hieroglífica a receitas culinárias veganas, isso e o que mais permitir a inventividade humana. Inclusive a crítica a este mundo digital, como propõem autores como Jonathan Crary ou Byung-Chul Han, para citar alguns.
E é aí que chegamos ao segundo aspecto pelo qual podemos considerar a relação entre o humor e o digital, o aspecto do posicionamento a respeito das tecnologias e práticas digitais.
Pensemos, por exemplo, na República das Letras em Natal do começo do século XX, quando a cidade, sob o comando da oligarquia dos Albuquerque Maranhão, pretendia ser, nos moldes franceses, “civilizada”. Tal como o resto do país, aliás. E, nesse contexto Belle Époque, um tipo se destacava: o homem das letras, o erudito, o intelectual, o poeta. Se o discurso oficial, por exemplo, enunciava esse tipo como símbolo de progresso, o humor por sua vez invertia-o em um chato, gabola e pedante. Tal como sugere esse exemplo, um dentre tantos, publicado na coluna “Pensando e Rindo”, do jornal A República, em 5 de fevereiro de 1902:
Dicionário Fin de Siecle:
Fim: palavra que o autor gosta muito de escrever e o leitor ainda mais de ler.
Orador: tagarela que fala sozinho.
Assim, mesmo mais de cem anos depois, o humor continua provocando o riso (ou tentando provocar) a partir de inversões, subversões, contradições. Então, enquanto uns celebram o mundo digital, outros já não assumem tal tom celebratório, e o fazem por meio de textos humorísticos, mesmo se valendo dos próprios recursos digitais para isso.
Nesse posicionamento crítico acerca das tecnologias e práticas digitais o humor encena, por exemplo, o antigo embate entre gerações, entre o velho e o novo. Inúmeras postagens das redes sociais ilustram o conflito entre os mais e os menos “letrados” digitalmente, demonstrando, mais uma vez, o equilíbrio instável entre estabelecidos e marginais, tal como apontou Norbert Elias tempos atrás.
Em suma, nada de novo.
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Cellina Muniz é escritora e professora do Departamento de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Cellina Muniz
Excelente texto, parabéns