Notinhas sobre o campo literário Linguaruda

segunda-feira, 28 outubro 2024

Quem define o que se “deve” ou não ler, o que é bom ou não em termos de literatura?

Nestes dias, concluí a leitura do romance “O mistério Henri Pick”, do escritor francês David Foenkinos, traduzido no Brasil por Julia Rosa Simões e lançado pela L&PM. Uma leitura leve, despretensiosa (que haja, sim, o entretenimento puro e banal!), mas que pode nos dar o que pensar, principalmente sobre algumas das tramas “invisíveis” do campo literário.

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No enredo, uma jovem funcionária de uma grande editora descobre, em uma pequena cidade do interior da França, uma biblioteca bastante peculiar: ela abriga exclusivamente “livros” recusados por editoras e tiveram, assim, sua publicação rejeitada. E é lá, em meio a estantes empoeiradas, que a jovem editora “descobre” uma obra prima. Detalhe: o nome que assina o original em questão é Henri Pick, um prosaico dono de pizzaria da cidade, já falecido.

Literatura

A partir daí, muitas questões podem ser suscitadas, sobretudo para leitores que se interessam pela, digamos assim, “sociologia da literatura”: o que faz de uma pessoa um escritor ou escritora? O que (ou quem) define o que é ou não é um bom livro?

Essas e outras questões estão atreladas à compreensão da literatura como campo social e discursivo, perspectiva tratada, por exemplo, pelo linguista Dominique Maingueneau, em trabalhos como “O discurso literário” ou “O contexto da obra literária”. Essa perspectiva implica considerar o cenário em que atuam os diferentes sujeitos envolvidos, com suas funções específicas, rotinas e rituais, deveres e sanções. O romance de Foenkinos acena para alguns desses elementos: lá estão o escritor, a editora, o crítico literário e, em meio a tantos atributos e atividades, pertinentes ou não (pode um pizzaiolo ter escrito um romance?), um aspecto se destaca: o golpe de marketing.

A velha máxima, assim, de que a propaganda é alma do negócio vale também para a “nobreza letrada” e a fama de que um anônimo supostamente escreveu uma grande obra literária rapidamente se alastra e faz vender exemplares e mais exemplares daquele “achado”.

(Freddie Marriage/Unsplash/Reprodução)

Isso logo remete a possíveis paralelos: por exemplo, o quanto de grandes escritores estão por aí, desconhecidos ou enjeitados, e o quanto de falsas pedras são vendidas a preço de ouro pelo mercado livreiro. O que, por sua vez, levanta outras questões: quem define o que se “deve” ou não ler, o que é bom ou não em termos de literatura? Editoras, resenhistas, prêmios e festivais literários se baseiam exclusivamente no “mérito” ou o critério final acaba mesmo nas mãos dos poderes do vil metal?

Tenho mais dúvidas do que respostas. Evidentemente, não teríamos o prazer de ler um Franz Kafka se não fosse pelo editor Kurt Wolff. Ou Lima Barreto poderia não ser tão popular caso não tivesse Monteiro Lobato editado seu primeiro livro no Brasil.  Não quero nem posso negar a relevância dessas instâncias. Mas acredito também que cai bem questionar as ondas de “oba-oba” que circulam no campo literário (aqui ou alhures), quase sempre impostas a nós, leitores, por quem está no centro do mercado editorial (ondas intensificadas, agora, pelas “turbinadas algorítmicas”).

 Para concluir, não custa lembrar que, à maneira do que cantou o poeta Raul Seixas, às vezes tem muita estrela para pouca constelação.

Leia o texto anterior: PODER, RESISTÊNCIA E HUMOR NO CONTEXTO DE VIGILÂNCIA DIGITAL

Cellina Muniz é escritora e professora do Departamento de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Cellina Muniz

Cellina Muniz

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