Azania: a desconstrução do conhecimento branco como caminho de emancipação Diversidades

segunda-feira, 16 setembro 2024
Estátua de criança negra, em Joanesburgo (Foto: Antonino Condorelli)

Reflexões sobre a tradição intelectual e ativista negra do Azanian Political Thought, nascida na luta contra o apartheid na África do Sul, e suas implicações para o presente das lutas emancipatórias.

O professor Antonino Condorelli faz uma reflexão crítica sobre os movimentos indígenas e negros em Abya Yala e Farafina, abordando a luta por direitos humanos e igualdade. O texto examina como conceitos como Estado, soberania e constituição, moldados pela supremacia branca e colonialismo, influenciam essas lutas. Destaca o Pensamento Político de Azania e sua crítica ao apartheid e ao pós-apartheid na África do Sul, questionando a capacidade das estruturas políticas e sociais eurocêntricas de promover emancipação genuína e sugere novas formas de luta a partir da experiência africana negra.

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Quando movimentos indígenas e negros em Abya Yala e em Farafina (1) lutam por direitos humanos, por igualdade, por reconhecimento pelo estado e por políticas de reparação de desigualdades históricas, quando sustentam suas lutas em direitos constitucionais, quando afirmam sua humanidade qual noção de humano é mobilizada para afirmar e promover essa igualdade? Quem definiu a gramática política e os pressupostos axiomáticos (estado nacional e uma noção de soberania atrelada a este, regulação constitucional, etc.) dessas lutas? A garantia constitucional de direitos e políticas estatais fundadas em tais direitos podem promover emancipação num modo de organização do real concebido para a efetivação da supremacia branca e do domínio do humano (de uma determinada concepção e configuração do humano, moldada no humano ocidental branco) sobre o não-humano? E se a questão não fossem os problemas (desigualdades, racismo, devastação ambiental etc.) “do” Brasil (ou “da” Colômbia, “do” México, “do” Chile, “da” Bolívia, etc.), “da” África do Sul (ou “da” Nigéria, “do” Quênia, “de” Moçambique, “de” Burkina Faso, etc.), mas Brasil (ou Colômbia, México, Chile, Bolívia…) e África do Sul (ou Nigéria, Quênia, Moçambique, Burkina Faso…) fossem o problema? Se pensássemos América Latina e África Negra – construções, conceitos, políticas produzidas pelo colonialismo europeu e estruturadas pela modernidade – como projetos inerentemente escravocratas, supremacistas brancos, patriarcais, extrativistas, ecocidas e epistemicidas; se pensássemos seus atuais modos de gestão (estado-nação, contrato legal, constituições etc.) e os fundamentos da maioria das lutas por igualdade e das práticas políticas de seus grupos subalternizados (humanismo, direitos humanos, reconhecimento, marxismo, entre outros) como parte do problema e, por isso, intrinsecamente incapazes de promover emancipação? É este o desafio epistêmico e político que, durante as lutas de libertação do colonialismo no continente africano na segunda metade do século 20 e, especialmente, a luta contra o regime do apartheid da África do Sul, foi lançado por algumas correntes de pensamento e ativismo político radical negro. Vou focar aqui em uma delas, a tradição do Azanian Political Thought (Pensamento Político de Azania).

Registro histórico do assassinato de Steve Biko em museo na Cidade do Cabo (Foto Antonino Condorelli)

Azania não é só o nome usado por uma parte dos movimentos de libertação do apartheid, e hoje por lutas e coletivos emancipatórios do pós-apartheid, para substituir o colonial “África do Sul”. É, acima de tudo, uma ideia pensada como alternativa política, epistêmica e estética ao construto inerentemente racista de “África do Sul”. O Pensamento Político de Azania – internamente heterogêneo, mas atravessado por pressupostos ontológicos e epistemológicos, anseios e preocupações comuns – se articulou ao redor do Pan Africanist Congress of Azania (PAC), fundado em 1959 por Robert Sobukwe após uma ruptura com o principal ator político da luta contra o apartheid, o African National Congress (ANC) – sustentando que o segundo assumia acriticamente princípios, ideias e objetivos políticos forjados pelo pensamento europeu, branco e colonial – e da Black Consciousness (Consciência Negra), conceito e movimento idealizados por Steve Biko (em setembro de 2019, refleti nesta coluna – veja a primeira e a segunda parte do artigo – sobre alguns aspectos do pensamento desse intelectual e ativista assassinado pela polícia do apartheid em 1977) e que foi a maior potência mobilizadora da última fase da luta contra o regime segregacionista, além de inspirar movimentos emancipatórios negros em todo o continente e na diáspora.

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O pensamento de Azania operou uma profunda e radical crítica às ciências sociais, ao pensamento político e à práxis política emancipatória sul-africanos, apontando que todos eles obliteravam a violência fundacional da conquista europeia, do colonialismo e do roubo de terras de povos nativos, reificando através dessa amnesia histórica o mundo construído por esses processos (2). O “mito da raça” (a construção e essencialização da categoria pela política colonial e o pensamento europeus); a alterização dos povos africanos e sua objetificação (a criação da branquitude como conceito e prática política e o apagamento de sua natureza racial e identitária, ou seja, essencializada; o erguer esse construto a sinônimo do universal e parâmetro de definição, julgamento e organização de uma alteridade concebida a partir dele, e a consequente racialização dos povos nativos africanos como “negros”, junto à reificação deles enquanto “outros”); concepções eurocentradas de sujeito (como entidade autônoma – seja racional ou movida por dinâmicas inconscientes – separada dos “outros do mesmo”, desatrelada do não-humano, unitária ou não-unitária, mas individuada, independente de vínculos de ancestralidade ou solidariedade, ancorada numa cosmologia humanista), soberania (como atrelada ao estado nacional), nação (como comunidade caracterizada por homogeneidade étnica, linguística, cultural e histórica), lei (como expressão de direito natural ou contrato formal codificado), justiça (como regulação pela lei e igualdade formal abstrata), terra (como meio de produção), desenvolvimento (como acumulação), tempo histórico (como uniforme e projetado em linha reta) etc., entre outros pilares ontoepistêmicos do mundo edificado pelo colonialismo de ocupação europeu, tinham se tornado – segundo a filosofia de Azania – pressupostos apriorísticos de toda produção intelectual e pensamento social e político, incluindo perspectivas que se pretendiam emancipatórias como a do African Nation Congress e da Freedom Charter (3).

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Esta última, por exemplo, ao abraçar acriticamente o multirracialismo, ainda que visando a emancipação dos grupos oprimidos (racializados como negros, indianos e coloured pelo colonialismo), ratificava – de acordo com os pensadores e ativistas de Azania – identidades raciais essencializadas e a compartimentalização da sociedade em “grupos nacionais” operada pelo apartheid, sem questionar a origem dessa visão e – por meio dessa obliteração – fortalecendo a supremacia branca, pois aspirava a uma igualdade de oportunidades dentro de estruturas e modos de organização da sociedade (e das relações de humanos e não-humanos) construída por esta em função de sua perpetuação e permanente benefício (lógica do capital, cuja acumulação continuaria essencialmente em mãos brancas; extrativismo; regulação legal da “convivência” entre grupos essencializados, etc.). Nessa perspectiva, a famosa declaração contida na Carta de que “South Africa belongs to all who live in it, black and white” (4) reafirmava a injustiça fundacional que havia criado e essencializado branquitude e negritude – o roubo das terras dos povos nativos e a ocupação colonial (como se negros e brancos fossem realidades dadas que precisavam apenas ser postas em condições iguais de convivência, e não categorias políticas produzidas para sustentar um sistema opressor) – e apagava a necessidade histórica de devolução das terras como condição sine qua non para a construção de qualquer possibilidade de nova sociedade sob novas bases não-brancocentradas (5). Para a Azanian Philosophical Tradition, a libertação não implicava na “convivência multicultural pacífica” entre grupos reificados, mas na restituição da terra aos nativos e na construção de novos sujeitos, valores, instituições e uma nova ordem social (incluindo na ideia de social o não-humano) a partir da experiência histórica (não essencializada na noção de “culturas” estanques e impermeáveis) dos povos africanos.

Mural em Soweto lembra o massacre de estudantes pelo apartheid de 1976 (Foto Antonino Condorelli)

Não se trata, como é evidente, de um utópico retorno a uma condição pré-colonial idealizada e essencializada, nem da universalização/essencialização de genéricos e supostamente “autênticos” valores africanos (ou mais estritamente de valores zulu, xhosa, sotho etc. reificados), mas do anseio por construir novos valores e novas formas de vida emancipadas a partir da multiplicidade, da diversidade e da experiência real e dinâmica dos diversos povos negros do continente. A filosofia política de Azania não é, portanto, um tipo de etnonacionalismo negro (acusação superficial muitas vezes lançada pela tradição intelectual e ativista dominante, a pretensamente “não-racial” do ANC e dos Charterists, para desqualificar essa perspectiva radical), mas um pensamento antiessencialista fundado na consciência de que qualquer modelo societário que não desconstrua os pressupostos da supremacia branca e do colonialismo estará fadado a reproduzir – mudando apenas de arranjo político e jurídico – a opressão dos povos negros.

Um punho negro levantado se tornou o símbolo do Black Consciousness Movement (Foto Reprodução)

É uma perspectiva epistêmico-política que, na África do Sul, está sendo recuperada por movimentos e parte das correntes intelectuais que criticam a configuração do pós-apartheid. Entre estes, pelo pensamento enraizado na praxe de auto-organização popular do Abahlali baseMjondolo (Movimento de Moradores de Barracos), o maior movimento social popular sul-africano contemporâneo, que em sua luta por terra e moradia para a população negra pobre (a imensa maioria das e dos negros na África do Sul contemporânea) e em sua filosofia enraizada na construção diária de democracia de base (6) – um pensamento autobatizado Abahlalism (7) – questiona a ideologia oficial do pós-apartheid, o Rainbowism (da ideia de Rainbow Nation, Nação Arco-Íris, uma versão sul-africana do multiculturalismo liberal), como apagamento da injustiça fundacional do colonialismo; a ordem social pós-Constituição de 1996 – extremamente desigual para as pessoas racializadas, apesar da garantia constitucional formal de direitos – como estruturada nos pressupostos não problematizados do euro/brancocentrismo e o sistema atual de propriedade da terra como a configuração contemporânea da (nunca desconstruída) supremacia branca. Discorrerei mais sobre a experiência do Abahlali em futuras contribuições para esta coluna. O que interessa aqui é que o pensamento e a práxis política do movimento podem ser vistos como parte de um esforço, que alguns intelectuais vêm travando também no âmbito acadêmico (8) (e que, no caso do Abahlali, nasce da materialidade da despossessão da população negra marginalizada), de uma crítica ao presente baseada em pressupostos convergentes com os do pensamento de Azania: a ideia de que a configuração social, política, econômica e jurídica do pós-1994 (ano do fim do apartheid e do começo da democracia liberal multirracial na África do Sul) reproduz e – ao invisibilizar sua origem – deixa sem solução os efeitos históricos do colonialismo de ocupação europeu, promovendo uma nova versão de capitalismo racializado. Em um planeta em que os modos de organização do real sustentados na ontoepisteme moderna, construídos pelo colonialismo histórico europeu e por este universalizados, continuam em todos os continentes subjugando, explorando e exterminando vidas não-brancas, depredando biomas e aniquilando as condições para a preservação da vida humana e da maioria das vidas não-humanas na Terra; em um momento histórico em que o povo palestino está sofrendo a pior fase da limpeza étnica começada por Israel em 1948 e em que países ocidentais defendem hipocritamente a solução de “dois estados” (que oblitera a injustiça fundacional de Israel e assume como pressuposto que o problema seria a existência de dois grupos nacionais essencializados com problemas de convivência ao invés do colonialismo de ocupação israelense, o apartheid deste nos territórios palestinos ocupados e o projeto etnonacionalista sionista) enquanto financiam e apoiam politicamente o genocídio; em um país como o Brasil, que encarna em seu próprio nome (derivado do principal produto da predação extrativista colonial, o pau-brasil) e em seus símbolos nacionais (uma bandeira com as cores da casa real portuguesa e um slogan positivista, uma ideologia social e científica do século 19 que universaliza o eurocentrismo epistêmico e a ideia moderna – racista e ecocida – de progresso; um hino que transforma um arrumadinho da elite branca com a potência colonial para preservar a estrutura escravocrata da sociedade sob uma nova configuração político-jurídica no “brado retumbante de um povo heroico” e não faz uma única menção a Palmares, a Tereza de Benguela, às resistências indígenas e um longo et cetera) a natureza inerentemente supremacista branca, escravocrata, patriarcal, ecocida e epistemicida de sua concepção e projeto, nos voltarmos para a crítica às ciências sociais, ao pensamento político e às práticas de emancipação dominantes realizada por tradições filosóficas, políticas e de ativismo radicais negras como o Azanian Political Thought pode abrir caminhos instigantes, plurais e necessários para (re)pensar nossas lutas.

Notas

Antonino Condorelli é professor do Departamento de Comunicação Social da UFRN e coordenador do grupo de pesquisa DESCOM e membro da equipe de curadoria desta coluna Diversidades

Antonino Condorelli

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