Colonialismo digital, capitalismo globalizado e modernidade eurocêntrica Artigos

quarta-feira, 11 setembro 2024
Imagem Reprodução Revista Afirmativa

O que liga tecnologias digitais, racismo, exploração social e ambiental global, (geo)política internacional e dominação epistêmica do Ocidente?

O pensador, pesquisador e professor Antonino Condorelli começa neste artigo uma série de reflexões sobre tecnologias digitais, novas formas de colonização global e o projeto monotecnológico e bionecropolítico da modernidade eurocentrada.

Há um fio que liga fenômenos aparentemente díspares como a suspensão do X no Brasil por determinação do Supremo Tribunal Federal porque Elon Musk se recusou a cumprir leis do país e a acatar ordens judiciais; a catástrofe climática do Capitaloceno, que já atingiu um ponto de não-retorno normalizando desastres ambientais em todo o planeta (como o que aniquilou a cidade de Derna, na Líbia, em 2023; o que devastou o Rio Grande do Sul em 2024 e o que está deixando Pantanal, Amazônia e São Paulo sufocadas pela fumaça de queimadas); o crescimento em muitos países de pensamentos, atores e práticas políticas supremacistas, xenófobas, etnonacionalistas e fundamentalistas religiosas; mobilizações da juventude em países periféricos – como as recentes de Quênia, Bangladesh e Nigéria – contra a má governança e por melhores condições de vida; os motins racistas e xenófobos ocorridos no Reino Unido este ano; genocídios que estão exterminando povos em diversas partes do mundo, da Palestina à República Democrática do Congo. Esse fio é a – complexa, multifacetada, articulada em múltiplas camadas e desdobrada em diversas linhas de força entrecruzadas – configuração contemporânea da modernidade euro/brancocêntrica e de seu maior sistema de regulação bionecropolítica, o capitalismo globalizado. Neste e em próximos artigos explorarei superficialmente algumas das facetas dessa configuração e os modos de articulação de alguns de seus elementos constituintes, focando nos que estão diretamente atrelados às tecnologias digitais.

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Os recentes ataques de Elon Musk – que, além de proprietário do X, é dono de megacorporações de veículos elétricos, alta tecnologia, desenvolvimento de inteligência artificial, exploração espacial, infraestruturas de transporte e tecnológicas e fornecimento de internet – à soberania nacional do Brasil, seja se recusando a cumprir leis do país e acatar ordens da Justiça como através de ataques e ameaças a representantes de poderes constitucionais brasileiros na plataforma, assim como pela construção discursiva de uma falsa dicotomia entre um suposto “país censor” que adotaria supostas atitudes totalitárias e a defesa, por ele encarnada, da “liberdade de expressão irrestrita” (nome fantasia de “liberdade de supremacistas brancos, misóginos, lgbfóbicos, neonazistas, incels, fundamentalistas religiosos, articuladores de ataques a crianças em escolas, organizadores e apoiadores de golpes de estado, propagadores de toda forma de ódio e violência contra grupos subalternizados ou contra as ordens constitucionais de estados democráticos poderem praticar violências discursivas e articular ações criminosas sem terem que responder penalmente por isso”) para dar mais destaque global às suas posições políticas alinhadas ao projeto de poder da extrema-direita internacional escancaram a existência e a força de um poder econômico-tecnológico digital altamente concentrado que, ao passo que potencializa os pressupostos axiomáticos do sistema-mundo instituído pela modernidade (como aprofundarei na parte final deste artigo), opera fora e além de alguns dos princípios organizadores clássicos desse sistema, os estados-nação e a regulação jurídica, e de seus axiomas (a soberania nacional). Ao mesmo tempo, o fato de ordens judiciais de bloqueio de contas no X terem sido acatados sem resistência em países como Índia e Turquia, que possuem governos nacionalistas com fortes tendências autoritárias, e de Elon Musk nunca ter tecido críticas em nome da “liberdade de expressão” a países como China (o maior mercado mundial de veículos elétricos) e Arabia Saudita (cuja monarquia absoluta possui 5% das ações da Tesla, a empesa de carros elétricos do bilionário, e é acionista do próprio X), assim como o fato de outra empresa de Musk no Brasil, o provedor de internet Starlink, ter acatado as decisões da justiça do país em vista de futuros contratos bilionários com instituições públicas, apontam que esse poder, enquanto transcende mecanismos de regulação e soberanias nacionais, segue apoiando-se seletivamente em alguns desses dispositivos e estruturas para garantir e impulsionar sua expansão, assim como para fortalecer projetos políticos em sintonia com a visão de mundo dos detentores do tecnocapital.

Penso que para explorar a lógica dessas dinâmicas seja profícuo mobilizar a ideia de colonialismo digital na conceituação de Deivison Faustino e Walter Lippold (1), para sucessivamente desdobrar e amplias algumas de suas implicações. Os filósofos propõem pensar o colonialismo digital, para além da genérica colonização da vida por tecnologias digitais, como uma das principais configurações do estágio contemporâneo do modo de produção capitalista. Essa forma contemporânea de colonialismo se sustenta no processo de acumulação primitiva de dados: a subsunção de todas as esferas da experiência humana à lógica extrativista e a commodificação dessa experiência na forma da nova matéria prima mais preciosa do mercado global, os dados – mais exatamente, aquilo que é configurado como “dados” pelo modo de funcionamento dos algoritmos de plataformas digitais, baseado na extração de elementos diferenciais (informação) de seu ambiente de interação e na identificação de padrões matemáticos em grandes volumes da informação assim produzida, com a capacidade de aprender a reprogramar seus critérios de cálculo e padronização independentemente de intervenção humana, a partir de finalidades e parâmetros de causalidade (até agora) definidos pela programação inicial -, visando a manipulação algorítmica intencional da cognição e dos comportamentos com vistas à ampliação da acumulação de capital, concentrada em grandes corporações digitais (especialmente as sediadas no Vale do Silício, mas também as de novas potências coloniais como China e Rússia). A essa fase do capitalismo globalizado corresponde uma divisão internacional do trabalho que reduz as populações dos países periféricos a mero a território de predação extrativista e receptáculo de tecnologias produzidas nos países centrais, cujas lógicas e modos de operação são estruturados a partir dos interesses e valores desses últimos (e mais do que isso: como discorrerei em outro artigo, que encarnam a ontoepisteme universalizada e tornada global pelo colonialismo histórico europeu, a da versão dominante da modernidade euro/brancocentrada).

A exploração do trabalho pelo capitalismo de plataforma é um dos aspectos do colonialismo digital – Foto Reprodução Portal ESPM

Essa divisão internacional do trabalho produz um novo cognitariado global, trabalhadoras e trabalhadores altamente explorados dos setores de gerenciamento da economia plataformizada (ou seja, uma economia na qual plataformas de redes sociais digitais proporcionam a infraestrutura tecnológica e econômica para o processo de acumulação de capitais (2) ), tais como a moderação de conteúdos de redes socias (que tem disseminado trauma e provocado uma altíssima incidência de ansiedade e estados depressivos entre esses trabalhadores terceirizados) e outras formas de supervisão humana do processamento algorítmico de dados, e um novo precariado ligado à plataformização de serviços, o primeiro concentrado especialmente em países periféricos e o segundo composto, tanto nos centros quanto nas periferias do capitalismo global, essencialmente por pessoas racializadas. O colonialismo digital se vale da competição intracapitalista entre estados-nação neocoloniais e suas grandes corporações para controlar e explorar territórios e mão de obra de países periféricos que possuem matérias primas estratégicas para a fabricação de tecnologias digitais. Da mesma forma, como expressa a atitude de Elon Musk com diferentes países e a de diferentes empresas do bilionário no mesmo país, as megacorporações do colonialismo digital se relacionam com os estados-nação – suas instituições, leis etc. – de maneira funcional à sua expansão, tanto em termos de acumulação de capital quanto de controle geopolítico de recursos, operando para além e acima das soberanias nacionais modernas, mas servindo-se operacional e seletivamente de suas estruturas. É por isso que empresas de altas tecnologias como as do bilionário sul-africano naturalizado estadunidense podem fechar contratos altamente lucrativos com instituições nacionais – inclusive no Brasil, onde tanto as forças armadas quanto órgãos de poder locais possuem contratos com a Starlink – enquanto utilizam essas relações para práticas de expansão que solapam as soberanias nacionais (no caso da Starlink no Brasil, o mapeamento de regiões inteiras do país à procura de jazidas de lítio, material indispensável para a fabricação de baterias de carros elétricos e de celulares, e o controle das movimentações do exército brasileiro na Amazônia, ambas práticas denunciadas pelo jornalista investigativo Leandro Demori no canal do Youtube do ICL Notícias).

O crescimento da extrema-direita tem relação com o colonialismo digital – Imagem Frederick Florin, Julien de Rosa, Guglielmo Mangiapane, Chega, Thomas Coex

Embora Faustino e Lippold não explorem diretamente esse aspecto, essa concepção de colonialismo digital também permite compreender o uso de grandes plataformas de redes sociais digitais para a manipulação algorítmica intencional das percepções, da cognição e das emoções visando a adesão ao discurso e aos projetos de atores e grupos políticos específicos, que no caso das Big Tech estadunidenses (especialmente X e Meta, que gerencia Facebook, Instagram e WhatsApp) são grupos e projetos políticos etnonacionalistas/supremacistas, xenófobos e ultraconservadores (dependendo dos países e das conjunturas geopolíticas, Telegram e TikTok – respectivamente, russa e chinesa – também sustentam grupos semelhantes). De fato, mesmo que do ponto de vista da acumulação de capital e do controle da exploração de recursos seja relativamente indiferente para as Big Tech que o modo de gestão dos estados nacionais onde operam seja (neo)liberal, socialdemocrata, conservador ou ultraconservador (todas variantes dos mesmos pressupostos de organização do real modernos) – tendendo, claro, a preferir gestões neoliberais ou conservadoras a gestões nacional-desenvolvimentistas, mas articulando sem muitos problemas seus interesses de acumulação e expansão com o modus operandi de qualquer governo nacional -, o pensamento dos neorreacionários contemporâneos (como mostra Yuk Hui (3) ) acalenta a utopia transumanista de uma aceleração tecnológica desenfreada que levaria aos completos controle e gestão do mundo (sociedades humanas e todos os domínios do não-humano, não mais separados, pois ambos partes de um único super sistema cibernético) pelas tecnologias inteligentes modernas e, assim, à “superação” da política pelo gerenciamento técnico da vida. É um pensamento que está em sintonia com os anseios de aceleração tecnológica infinita e regulação do mundo (humano e não-humano) por tecnologias inteligentes que anima os fundadores ou gerentes das maiores Big Tech – Elon Musk, Mark Zuckerberg (dono da Meta), Jeff Bezos (dono da Amazon), Larry Page (cofundador da Google), Ray Kurzweil (diretor de engenharia da Google), Sam Altman (cofundador da OpenAI), entre outros – e que, embora não faça parte do discurso público de grupos políticos ultradireitistas, mas só dos escritos de pensadores neorreacionários, encontra eco e reverberação em ideias como as de “liberdade de expressão sem limites”, crítica ao “politicamente correto”, armamento da população sem restrições e semelhantes. É um pensamento que também casa com o desencanto com a política (devido ao fracasso das democracias liberais em promover igualdade de direitos e oportunidades) difuso entre as classes populares de diversas latitudes, com os mal-estar pela perda de status das classes médias e a (relativa e limitada) redução do poder de homens, brancos, cishetero etc. pelas (ainda insuficientes e sempre precárias) conquistas de grupos subalternizados, não encontrando dificuldades em fundir-se com ideologias como nativismo, nacionalismo étnico, supremacismo branco (ou suas versões de exportação: supremacismo hindu, supremacismo otomano e etc.) pela visão essencialista – também totalmente moderna – das culturas como sistemas fechados a serem preservados em suas supostas características inerentes através do gerenciamento tecnológico da vida (e, no Ocidente, pela ideia de que as tecnologias que realizarão esse gerenciamento são um produto de uma suposta superioridade cognitiva, moral e cultural das civilizações brancas). Não é contraditório, então, que um bilionário como Elon Musk se importe menos com a lucratividade do X (quando o comprou, o Twitter valia 44 bilhões de dólares; hoje o X vale 13 bilhões, uma queda causada pela fuga em massa de anunciantes que não querem ser associados a conteúdos extremistas) e com a perda do quarto maior mercado de usuários da plataforma, o Brasil, do que com seu uso para dar visibilidade e ressonância a grupos políticos ultraconservadores (alimentando e dando suporte a tentativas de golpe de estado no Brasil, a revoltas islamofóbicas e xenófobas no Reino Unido, etc.), nem que – ainda que de forma mais discreta e sem exposição pessoal – Mark Zuckerberg e outros proprietários de Big Tech, ocidentais e não, também destinem parcialmente suas plataformas para esse fim. O X é parte de um ecossistema de desenvolvimento, produção e comercialização de tecnologias “inteligentes” que, em seu conjunto, garante a aceleração tecnológica e a acumulação de capital desenfreadas que o bilionário e seus congêneres propugnam e buscam.

Nesta obra de 2023, D. Faustino e Walter Lippold propõem pensar o colonialismo digital como a fase atual da acumulação capitalista

Faustino e Lippold mostram que a expansão colonial digital é sustentada e está umbilicalmente atrelada a uma ideologia e um discurso de “democratização” e “universalização” do acesso à internet e a serviços e tecnologias digitais, promovido pelas grandes corporações tecnológicas e informáticas para legitimar seus mega investimentos em provedores e outras tecnologias para populações marginalizadas do Sul Global e incentivar governos e instituições de países subalternizados (especialmente, os que são ricos em recursos essenciais para a produção de tecnologias digitais e “inteligentes”) a fecharem contatos que garantem, de forma mono ou oligopolista, o controle das infraestruturas-chave da conectividade de populações inteiras (como os satélites de baixa órbita da Starlink que levam internet a comunidades amazônicas que só têm esse meio de acesso, o que permite que a empresa gerencie – por exemplo – a conexão tanto dos povos originários que vivem em terras demarcadas quanto dos garimpeiros que as invadem e depredam), sufocando soberanias nacionais e incluindo essas populações – sem seu conhecimento nem consenso – na dinâmica unidirecional de mineração de dados, fornecimento de informações e monitoramento de processo sociais pelo grande capital dos países neocoloniais, além de possibilitar – como também ocorre no caso da Starlink – o mapeamento de recursos locais. É uma ideologia que revitaliza as ideias de “missão civilizadora” e “fardo do homem branco” do colonialismo histórico europeu e que, por isso, os dois filósofos batizaram de fardo do nerd branco. Eles apontam como esse sentimento “civilizatório digital” ocidental (mas que, hoje, se estende também a potências não-ocidentais) está amalgamado ao pensamento dominante no universo da tecnologia, profundamente impregnado em todas as empresas (megacorporações e startups) do Vale do Silício e adotado por suas correspondentes em outras latitudes, assim como pelas muitas startups do Sul Global vinculadas às infraestruturas e plataformas das Big Tech dos países centrais. Se trata de uma ideologia que mistura elementos antiestatistas e antiautoritários das contracultura branca da costa Oeste dos Estados Unidos (que só pôde florescer, como os dois pensadores bem lembram, porque o extermínio dos povos indígenas, a escravização e a sucessiva opressão e exploração cotidiana dos povos negros e a subalternização das populações latinas forneceram as bases materiais para que parte da classe média branca desenvolvesse um ambiente cultural hipster) com utopias tecnológicas pós e transumanistas e liberalismo econômico, do que resultaram ideias como a do “faça você mesmo” para além da burocracia do estado, de que todo o mundo pode “vencer” (sinônimo de enriquecer) através das tecnologias se se esforçar e tiver fé em seu potencial, de que as tecnologias digitais inteligentes vão libertar os potenciais de cada indivíduo e aumentar a liberdade de cada um(a) contra o estado. Não é difícil perceber o quanto esse imaginário vai ao encontro das perspectivas neorreacionárias (estritamente ligadas às transumanistas) que mencionei anteriormente, assim como o quanto oblitera realidades fundacionais indissociáveis da expansão das tecnologias digitais, como o fato de que a maioria dos investimentos para seu desenvolvimento vieram do âmbito militar e das universidades estadunidenses, de que o estado é peça central para garantir (militar, política e economicamente) a expansão das corporações digitais ao longo e largo do planeta, de que a “libertação tecnológica” do ser humano (branco) precisa da velha exploração de mão de obra barata e não-sindicalizada racializada do resto do mundo para a insalubre e desgastante fabricação de chips e outras peças necessárias ao funcionamento de dispositivos digitais, para a supervisão do trabalho algorítmico, para a execução do serviço de entregas “facilitado” por aplicativos digitais etc., assim como para a extração de minerais essenciais à produção de determinadas peças e dispositivos (a disputa pelo controle dos quais, principalmente em países africanos, vem há tempo produzindo genocídios e guerras civis entre grupos estatais e paraestatais sustentados por corporações e governos de países neocoloniais). Em meu próximo artigo neste espaço, irei conectar essa ideologia e seu imaginário a um processo bionecropolítico maior de ampliação da dominação cosmológica da modernidade euro/brancocentrada através da universalização de seus pressupostos e de sua tecnoepisteme pelas tecnologias digitais e inteligências artificiais contemporâneas. Uma perspectiva que, ao passo que incorpora a ideia de colonialismo digital, penso que permita pensar melhor tanto o evangelismo tecnológico do qual falam Faustino e Lippold para se referir à adoção cada vez mais generalizada por governos, empresas e mídias de países do Sul Global de ideias como “inovação”, “aceleração tecnológica”, fé cega nas inteligências artificiais e etc., quanto as configurações assumidas por mobilizações populares em diversas partes do Sul Global (como as recentes de Quênia, Bangladesh e Nigéria), além de um aspecto que os dois pensadores não abordam em suas reflexões: a participação cada vez maior no colonialismo digital de atores não-ocidentais, em direta disputa com as Big Tech e os governos do Ocidente.

Uma das principais características do colonialismo digital é o racismo algorítmico – Imagem Reprodução Outras Palavras.

Para finalizar a primeira parte destas reflexões, não há como deixar de fora desta discussão um elemento estruturante do colonialismo digital: o racismo. Por não ser possível pensar os modos de exploração e apropriação de valor capitalistas desatrelados deste, como apontado por Frantz Fanon (4), Faustino e Lippold propõem pensar o que chamam de racialização digital como uma das principais características do colonialismo digital. O principal, mas não único dispositivo da racialização digital é o racismo algorítmico (5), que Tarcízio Silva concebe como estruturado em cinco pilares. O primeiro pilar é o que o pesquisador chama looping de feedback, a incorporação da discriminação racial presente na sociedade, através de bancos de dados racialmente enviesados, no aprendizado maquínico de sistemas de inteligência artificial. O segundo pilar é o que nomeia de humanidade diferencial, a distribuição desigual com base racial do acesso a tecnologias digitais. O terceiro pilar apontado por Silva é o paradoxo entre invisibilidade e hipervisibilidade, as dinâmicas simultâneas de apagamento dos traços de pessoas negras de determinados sistemas de inteligência artificial (por exemplo, os mecanismos de busca de imagens) e a ênfase exacerbada em pessoas negras por outros sistemas e aplicativos (por exemplo, os de reconhecimento facial para fins de controle e segurança). O quarto pilar é a colonialidade global no negócio da tecnologia: o monopólio ou oligopólio por grandes empresas de tecnologia das infraestruturas que possibilitam a conexão em países periféricos e subalternizados, que tem como consequência que populações inteiras só podem acessar os produtos dessas empresas. O quinto pilar é o que o pesquisador define como colonialidade de campo, a obliteração do racismo dos estudos e pesquisas em tecnologias digitais, em todas as áreas, incluindo as ciências humanas e sociais. Através do racismo algorítmico e outros dispositivos de controle (como a ausência de diversidade entre os cargos técnicos de empresas de programação, o prestígio distribuído de maneira racialmente diferenciada entre produtores de conteúdos em plataformas de redes sociais, a escassez de pesquisadoras e pesquisadores de tecnologias digitais racializados, entre outros), mesmo em um mundo onde a “condição negra” se universaliza – como sustenta Achille Mbembe (6) – e todas e todos somos reduzidos a mercadoria, a racialização digital define quais corpos-mercadoria são descartáveis e quais não podem ser reduzidos a essa condição.

Genocídios como o em curso na República Demicrática do Congo estão atrelados ao colonialismo digital – Foto Picture Alliance

Essa conceituação de colonialismo digital como forma contemporânea de organização das relações globais de produção, estruturada pela incorporação de tecnologias digitais no processo de valorização do valor e umbilicalmente atrelada a processos de racialização, permite pensar a relação dessa versão contemporânea – e hoje não só ocidental, embora governada por uma ontoepisteme ocidentecêntrica – de colonialismo com genocídios como o na República Democrática do Congo (ligado à disputa pelo controle das jazidas de coltan, mineral essencial para a fabricação de smartphones), com (tentativas de) golpes e diversas formas de desestabilização de países periféricos para fins de controle de recursos indispensáveis à fabricação de tecnologias digitais (não dá para esquecer as palavras de Elon Musk – mais uma vez, ele – no Twitter em 2020, em ocasião do golpe na Bolívia: “Vamos dar golpes em quem quisermos. Lidem com isso”) e – como já apontei – com novas formas plataformizadas e racializadas de brutal exploração do trabalho. Além do mais, permite refletir sobre as profundas implicações ambientais das tecnologias digitais e levanta questões centrais como a necessidade de construir soberania digital popular para além da mera regulação jurídica nacional a internacional das plataformas digitais e das inteligências artificiais (que – embora essencial dadas as ameaças à liberdade e à autonomia de sujeitos individuais e coletivos, à segurança de grupos vulneráveis, às soberanias de países que essas plataformas apresentam – é uma abordagem que opera dentro de condições de possibilidade e pressupostos axiomáticos da mesma modernidade que representa o problema: a ideia de estado-nação, à de soberania vinculada a um projeto nacional etc., o que oblitera que em grande parte do sistema-mundo moderno os estados nacionais são construções do colonialismo europeu que perpetuam sob novas configurações as dinâmicas racistas, escravocratas, patriarcais, extrativistas deste e cuja soberania foi construída em cima de tais regimes de poder).

O bloqueio do X e das contas da Starlink pelo STF se liga à ameaça às soberanias nacionais do Sul Global representada pelas Big Tech – Foto Rafapress.

Penso que refletir sobre essas últimas questões, a ambiental e da soberania digital popular, implique em desdobrar o conceito de colonialismo digital para compreendê-lo como elemento da universalização de um bionecropoder ocidente-brancocêntrico moderno e de sua ontologia e episteme tecnológicas, a que Hui define como monotecnologia (7). Não proponho pensar em um poder abstrato e universalizante desvinculado da materialidade das relações globais de produção, nem reduzir expressões de bionecropoder moderno e a ontoepisteme que o sustenta a reflexos superestruturais das primeiras, mas de conceber um e as outras como coemergentes. Tanto uma ampla e fértil tradição de pensamento crítico e insurgente afrodiaspórico e africano (8) dos séculos 20 e 21 quanto pensamentos indígenas abyayalense contemporâneos (9) e pensamentos acadêmicos decoloniais (10) (estes últimos, geralmente, produzidos por intelectuais brancos) convergem ao apontar não somente a imbricação da modernidade com o colonialismo, o genocídio, a escravidão e o extrativismo ecocida e ao escancarar sua natureza inerentemente epistemicida, mas também a tendência do projeto moderno (em suas múltiplas versões, vetores e tensões internas) a impor – pela universalização de seus axiomas, sua razão, seus princípios, suas lógicas, suas práticas e suas tecnologias – os modos de organização do real da modernidade (internamente diversificados, mas sustentados pelos mesmos pressupostos ontoepistêmicos) em escala planetária. A universalização da ideia de desenvolvimento como aceleração tecnológica – ou melhor, monotecnológica – e a expansão ininterrupta da acumulação; a uniformização do tempo histórico pelo tempo da tecnologia e da acumulação; a subsunção de todos os domínios do não-humano pelos interesses, valores e desejos de uma concepção/configuração específica de humano, calcada no humano ocidental branco, não importa se não versão binária do humanismo ou na versão pretensamente não-dualista das epistemes pós-humanistas e dos delírios transumanistas; o universalismo epistêmico erguido em cima de um epistemicídio planetário são, entre outros aspectos, parte desse projeto de governo do mundo (humano e não-humano) por um modo específico – o moderno ocidente-brancocêntrico – de concebê-lo e configurá-lo. Um projeto que afunda suas raízes no colonialismo europeu, na supremacia branca e na construção do capitalismo, mas que os subsume (atores não ocidentais, hoje, participam ativamente da imposição desse domínio tecno-ontoepistêmico). Um projeto que encontra na lógica do capital e no capitalismo globalizado – em sua configuração contemporânea de colonialismo digital – seu maior e mais eficaz modo de regulação, mas que vai além dele. Um poder e um projeto que, obviamente, não são pensáveis fora dos arranjos sociotécnico-simbólico-materiais de orgânico e inorgânico e humano e não-humano, de práticas e relações de produção dos quais coemergem e nos quais se expressam.

Antonino Condorelli (Foto: Arquivo pessoal)

Estas últimas considerações são meu ponto de partida para pensar as relações de monotecnologia e versão contemporânea da modernidade com catástrofe climática e tecnogenocídios (11) como o de Israel na Palestina, e atrelar a promoção de tecnodiversidade à construção de soberania digital popular pluriversal. Irei desenvolver estas reflexões em meus próximos artigos neste espaço.

Notas

Antonino Condorelli é professor do Departamento de Comunicação Social da UFRN e coordenador do grupo de pesquisa DESCOM e membro da equipe de curadoria da coluna Diversidades.

Antonino Condorelli.

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