Artigo de Homero Costa com dados do relatório do Instituto de Estudos Políticos de Paris, o qual faz um balanço da crise política, econômica e institucional brasileira
O Observatório Político da América Latina e do Caribe (OPALC), sediado no Instituto de Estudos Políticos de Paris, publicou no início deste ano um relatório no qual faz um balanço da crise política, econômica e institucional brasileira e afirma que a consolidação do golpe em 2016 “desafia um quarto de século de consolidação democrática” no país. Segundo o relatório, “Os representantes corromperam a democracia brasileira” e que “a corrupção moral do regime constitucional foi somada a uma corrupção moral e financeira do sistema político, reforçando o descrédito da democracia”.
Segundo o documento, a democracia brasileira foi corroída e um dos efeitos do processo de impeachment foi o de “reforçar a polarização política e fragilizar as instituições democráticas e alimentar (e aumentar) o descrédito da classe política”. Essa fragilização tem como uma das suas consequências a criminalização da política, servindo como uma espécie de antessala de alternativas autoritárias. Cenários como esses alimentam o crescimento de apoio a quem defende ditaduras.
O documento também aponta para o caráter ilegítimo da ascensão (e do governo) de Michel Temer: “A alternância política que resultou da destituição pode ser qualificada como ilegítima”. Além de um governo ilegítimo, pelos dados disponíveis em pesquisas de opinião, impopular, com baixo índice de credibilidade.
Em relação à “democracia corrompida”, podemos falar que vivemos em um regime plenamente democrático? Como considerar democrático um governo que é resultado de uma ampla coalizão de interesses, tanto dentro como fora do Congresso Nacional, que, através de um processo de impeachment de um governo legitimamente eleito e sem que os crimes de responsabilidade atribuídos à presidenta fossem comprovados? Como também ignorar o fato de que este processo contou com a participação decisiva da chamada grande mídia (criando o clima propício para o golpe, tal como ocorreu em 1964, com suas conhecidas manipulações e seletividades).
Da mesma forma, foi também decisiva a participação de setores do Judiciário, Polícia Federal e Ministério Público (Judiciário que em 1964 também chancelou o golpe). O Judiciário tem uma função relevante numa democracia: sua tarefa primordial é o de zelar pela Constituição, garantir que os direitos sejam efetivados, com independência e isenção. Para Luiz Moreira, doutor em Direito pela UFMG e ex-conselheiro nacional do Ministério Público e Gisele Cittadino , coordenador ae professora do Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC/RJ, no artigo “Aliança política entre mídia e judiciário (ou quando a perseguição torna-se implacável”)(O caso Lula: a luta pela afirmação dos direitos fundamentais no Brasil, Editorial Astrea, 2016) , o que tem se observado nesses últimos tempos é “ um cenário preocupante (que) tem atingido a realidade brasileira e transformado o judiciário em uma instituição absolutamente parcial em matéria penal. Isso tem ocorrido em todas as ocasiões em que a mídia passa a defender a condenação de cidadãos, reduzindo demasiadamente a possibilidade de julgamentos imparciais, uma vez que o judiciário passa a se pautar pela aprovação popular de suas decisões”. No capítulo intitulado “A lava jato e a reedição do inimigo” afirma que “com o propósito de subverter a estrutura garantista da Constituição, foi moldado um componente ideológico abstrato (o combate à corrupção) e um “exército” de combatentes que se utiliza de campanhas midiáticas para obter apoio da população às suas causas e lhes garantir a incontestabilidade dessa atuação”. Para os autores há uma aliança política entre a mídia e judiciário e no qual “sistemas judiciais antecipam publicamente juízos que deveriam estar circunscritos aos limites do devido processo legal”.
Os exemplos de parcialidade são muitos. A nomeação de Lula para Casa Civil no governo de Dilma Rousseff é um deles. Gerou de imediato uma enorme indignação na mídia golpista e pronunciamentos de vários magistrados, inclusive ministros do STF contra a indicação e foi anulada pelo Supremo Tribunal Federal algumas horas após a cerimônia de posse, considerada “desvio de finalidade” e tentativa de obstruir o trabalho judicial. No entanto, em relação à nomeação de Moreira Franco, o “angorá” nas delações da Odebrecht, citado 32 vezes, não causou a mesma indignação, foi preciso uma série de liminares de três juízes de primeira instância (DF, RJ e AP) para que o STF afirmar que se posicionará a respeito. E se não houvesse essas liminares? Dois pesos, duas medidas?
Tais comportamentos (e práticas) colocam o imenso desafio que é o de como fazer para preservar as conquistas democráticas e uma delas é o de que o direito deve ser igual para todos e não apenas para alguns. Ninguém pode estar acima da lei. Nem o presidente da República e nem mesmo o Supremo Tribunal Federal. Se assim não for, o Estado de Direito fica ameaçado.
Creio que um dos grandes problemas para a democracia que se coloca hoje é que os três poderes do Estado Democrático, o Judiciário, o Legislativo e o Executivo – tem sido sistematicamente questionados. De um lado, os que acham que o que tem ocorrido no Brasil não é uma crise da democracia e sim expressão de sua maturidade, porque as instituições democráticas estão preservadas, há o respeito à liberdade de expressão, a organização de protestos, o fortalecimento das instituições judiciais, etc. Mas há também quem questione isso. Como afirma Lenio Luiz Streck no artigo “Luz, Câmera, ação: a espetacularização da operação Lava Jato no caso Lula ou de como o direito foi predado pela moral”, “cada Poder deve atuar a partir de um conjunto de regras que impede a ascensão de superpoderes, para que nenhum destes venha a assumir uma posição autoritária de reserva moral da sociedade (…) mas parece que no Brasil esta fórmula institucional ainda apresenta uma enorme dificuldade para se estabelecer. E isso pode ser observado na postura de juízes e membros do Ministério Público que, num cenário de desgaste dos políticos e seus partidos, começam a se apresentar como salvadores da pátria. Aqueles que, iluminados por uma condição quase divina, começam a acreditar que foram predestinados a salvar o país da corrupção, como se suas instituições também não fossem atingidas pelos mesmos desvios que ocorrem no Executivo e no Legislativo”.
Uma forma também de avaliar a qualidade da democracia num país é o funcionamento das instituições representativas. No caso do Congresso Nacional (Senado e Câmara dos Deputados), tem historicamente um baixíssimo índice de credibilidade. De acordo com uma pesquisa publicada 21 de março de 2016 pelo instituto Datafolha, teve aprovação de apenas 8% dos pesquisados. Um ano antes, em 2015, o índice de aprovação era de 9%, ou seja, em 2016, no qual o Congresso Nacional votou pelo impeachment de uma presidente legitimamente eleita, outra pesquisa do Instituto mostrou que piorou a avaliação do seu desempenho. A parcela de brasileiros que avaliavam como ruim ou péssimo o trabalho dos congressistas cresceu de 43%, em julho, para 58% em dezembro. Este índice é o mais alto da série histórica realizado pelo Instituto.
O que existe hoje no país é um sistema representativo falido, com o PMDB à frente do governo e do Legislativo, partido que Fréderic Louault, vice-presidente do OPAL e professor da Universidade Livre de Bruxelas qualificou de «sanguessuga da democracia brasileira» e um Judiciário e um Legislativo com profundos questionamentos por parte dos setores democráticos da sociedade brasileira e que coloca na agenda a urgência de mudanças substanciais tanto no sistema político quanto no judiciário.
Quanto ao sistema político e sua relação com a crise da democracia, o que se coloca é o dilem: ou se reforma o sistema político, através de uma ampla reforma política, ou teremos a continuidade da crise, com as distorções de um sistema eleitoral que favorece a individualização de campanhas em detrimento dos partidos políticos, um financiamento de campanhas que articula o conluio entre interesses privados e autoridades públicas, que resulta num Congresso como o que se tem no Brasil, cujos integrantes representam muito mais os interesses de seus financiadores de campanhas do que da população brasileira, com todas as suas consequências.
Homero de Oliveira Costa é professor titular (Ciência Política) do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
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