Por que a nossa experiência é fantástica, real e de resistência?
Por Sarah Fontenelle Santos* (Instagram: instagram.com/sarahfontenelle.santos/).
Aprendemos com Paulo Freire que o uso da palavra é a nossa possibilidade de estar no mundo, agir nele e (re)fazê-lo amorosamente. É por meio da comunicação que a palavra toma liberdade e torna-se uma ação, e além disso, é o diálogo que permite a ação criadora da comunicação como uma ponte que vai de mim para o (a) outro (a). Diz Paulo Freire em Pedagogia do Oprimido “Somente o diálogo, que implica num pensar crítico, é capaz, também, de gerá-la. Sem ele, não há comunicação e sem esta não há verdadeira educação (FREIRE, 1897, p. 47).
Escolho começar com Paulo Freire para não perder de vista o propósito comunicativo do O Corre Diário, que a meu ver é construir pontes-comunicação que nos interligam na Caminhada-Esperança de outro mundo possível. Dito isto, afirmo que o Jornalismo Literário – mágico, holístico, transcendental, como queiramos chamar esse jornalismo – para mim, desponta como uma possibilidade criadora de estabelecer o diálogo desde os saberes-sensibilidades-emoções da Experiência e Vivência. Muito mais a cara dos nossos povos latino-americanos do que isso aí que chamamos de jornalismo-padrão, que a tudo factualiza (preso aos fatos) e a tudo reduz à uma objetividade mascaradora das grandes experiências.
Mas jornalismo literário, o que é?
Bom, de fato jornalismo e literatura sempre existiram, juntinhas e coladinhas. Basta lembrar dos primeiros jornalistas no Brasil: Machado de Assis, Euclides da Cunha, Patrícia Galvão (nossa Pagu)…, dentre outros que do jornalismo faziam uma prática para se “manter na mídia”, mas também para garantir o “faz-me-rir”. Mas daquela época, que era mais ou menos 1855, para cá, muita coisa mudou.
Mais ou menos pelos anos 1950, os anos não eram fáceis para os que sonhavam (e até parece que hoje é, né?). Era a época dos embalados, fabricados, tudo na linha, na esteira de produção fabril e capitalista. O sistema capitalista se estabelecia mais e mais e com ele vendia a ideia de “American way of life” (estilo de vida americano). Pois então, foi nessa época que tiveram a ideia de tornar tudo um produto à venda, daí que o Brasil entrou nessa esteira e importou o jornalismo dos Estados Unidos. Tudo formatado, sem tempo para subjetividades.
Mas, como dizia Galeano, não existe escola que não tenha sua contra-escola. Uma turma cansada do Copydesk (linguagem formatada do jornalismo), se rebelou. Os anos 1950 e 1960 também foram de rebeldia e contracultura (lembram? Panteras negras, feminismo, movimento hippie…um Babado só). Pois foi aí que nasceu o New Jornalism, o novo jornalismo, que desafiava a notícia-produto e colocava, no lugar, um jornalismo que unia o que tinha de melhor na literatura e suas possibilidades de colocar a experiência e as emoções à tona.
Os nomes mais propagados desta corrente são, sem dúvida, os estadunidenses Gay Talese, Truman Capote e Tom Wolfe. Mas, meninos e meninas, o mundo inteiro está longe de saber o que a América Latina é capaz de fazer com seus fatos e suas verdades. As terras tropicais – que fizeram nascer, no início do século, o movimento literário Realismo Mágico ou Realismo Fantástico -, também, seriam as mesmas a fazer do jornalismo o lugar do mágico, claro, para tornar ainda mais real as nossas existências tão múltiplas.
Jornalismo Mágico: A nossa experiência é real e mística
Para a defesa do tipo de jornalismo-comunicação que defendemos é necessário refletir sobre o que é a experiência. Aprendi com Bondía Larossa que “A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que passa, o que acontece, ou que toca” (BONDÍA, 2002, p. 21). Pareceu jogo de palavras ou trava-palavras, não é?
A simplicidade dessas palavras me ensinam que a Experiência é acontecimento profundo em mim. Quer dizer, me tocou, passou em mim. Não passou por mim, mas em mim. Me aconteceu, me atravessou. Walter Benjamin, em sua época, já observava o quanto o mundo está pobre de experiência, muita coisa se passa, mas experimentar é raro. O jornalismo está cheio de informação que passa, mas nada diz, nada nos toca, não é verdade?
Pois é, ditas estas poucas e, talvez, insuficientes palavras sobre Experiência, penso que já podemos nos lançar ao sem-fim de narrativas do jornalismo literário latino-americano. Alguns nomes do jornalismo mágico na América Latina são Gabriel Garcia Marquez, Patrícia Galvão (a Pagu), Eduardo Galeano, e nos dias de hoje contamos com Eliane Brum (hoje colunista do El País), Carmen Kemoly, Maria Luíza, Vicente Leite (nossas queridas companheiras JornArtistas do OcorreDiário…. é sim, querida, porque não, aí tem magia, meu bem, tem magia).
Mas foi por conta de Gabriel Garcia Marquez, importante escritor, nobel da literatura e jornalista, que en nuestra tierra, passamos a chamar Jornalismo mágico, toda aquela sorte de pensar-sentir-agir-contar que enseja o mergulho na experiência, o místico no real e o real no místico, o brincar com as palavras e os outros significados das palavras.
Eu, por mim, diria que o Jornalismo mágico é esse acontecer-experiência-vivência que busca no simples da vida, nas coisas ordinárias e talvez sem futuro e importância, a interconexão com o cosmos. É aí que acontece também a universalização das experiências, que fazem da menina Camila que vendia bala no sinal, criando versos para chamar atenção dos motoristas, narrada por Eliane Brum, por exemplo, parte da história cósmica e mundial. Que faz de Esperança Garcia, a escravizada advogada e comunicadora, narrada por Carmen Kemoly, parte da história universal das invisíveis-centelhas-cósmicas. E só o fazem porque sentimos, experimentamos, vivenciamos, deixamos que o cotidiano-irreal nos toque.
Eu digo cotidiano-irreal (ou poderia chamar de ficção-real), porque talvez a realidade na américa latina pareça mesmo irreal, às vezes pelos absurdos (é cada laranjada todo dia, é ou não é? Tem absurdo que a gente nem acredita, tem até aqueles absurdos que se tornam presidente…). E, às vezes, pela forma como decidimos bailar com nossos vivos e mortos, com os visíveis e invisíveis, com o possível e o impossível, e por fim, pela forma que bailamos com o inédito que se torna viável porque não queremos deixar que os sonhos se percam. É essa tal arte de fazer o impossível, possível. Nos tornamos magia porque é mais fácil não ceder (E não cederemos, jamais!!).
No contexto da Abya Yala (América latina), caldo de dores, lamentos, alegrias, resistências dos povos ancestrais originários (ditos indígenas) e os povos que da África vieram violentamente arrastados para a escravidão, o jornalismo mágico é a reinvenção do modo de dizer a nossa palavra, aqui defendido. Nossa voz só poderia ter outro tom, nossas palavras outros significados, nossas narrativas outras linhas e nossos contos outros interesses. A contra-colonização se dá pelas memórias, histórias individuais e coletivas, que teimamos em contar do nosso jeito.
Concordo com Florence Marie Dravet: “Talvez possamos afirmar que haja, na América Latina, um tipo de jornalismo que só poderia ter nascido aqui, fruto de uma cultura híbrida, predominantemente oral, corporal, sensual e mágica” (DRAVED, 2003, p. 83). Por assim dizer, as mentes eurocentradas devem “dá tilt”, quando se deparam com a malemolência das palavras, enredando e enlaçando a vida, jornalismo, fatos, intuições, incorporações, sonhos, ficção, realidade, literatura e experiências. É por isso que também concordo que Draved “Não é a língua que é diferente – é o que se coloca nas palavras. Talvez o que muda seja a própria realidade das palavras”.
Das dicas de liberdades
Desafiando a ordem e a padronização do dia, este jornalismo que é literário e mágico – talvez mágico porque seja literário e literário porque seja mágico – só é possível se se faz espaço-tempo de liberdade. Segundo Edvaldo Pereira Lima (2009), partimos da liberdade desde muitos pontos de vista:
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Leia a coluna anterior: “Negritude”: uma imagem entre a captura e a descolonização
“Epistemologias Subalternas e Comunicação – desCom é um grupo de estudos e projeto de pesquisa do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte”.
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