Criada na UFBA, plataforma digital reúne mais de 800 cartas escritas por indígenas
Centenas de cartas escritas por indígenas que ajudam a contar a história do Brasil estão acessíveis ao público na plataforma digital desenvolvida pelo projeto “As Cartas dos Povos Indígenas ao Brasil”, coordenado pela professora Suzane Lima Costa, do Instituto de Letras da UFBA, e financiado pelo CNPq. O Brasil é o destinatário de grande parte das cartas, que são encaminhadas também para presidentes, governadores, juízes e outras autoridades. As denúncias de crimes ambientais, invasões de terras indígenas e violência policial são temas recorrentes nos textos. Além das correspondências, podem ser encontradas no site informações sobre as trajetórias dos indígenas que escrevem as cartas, e que revelam uma outra versão do país a partir das suas narrativas e biografias.
Entre os remetentes estão nomes como o de Davi Kopenawa Yanomami, fundador presidente da associação Yanomami Hutukara, que promove ações nas áreas da saúde e educação e de defesa às terras indígenas. A associação teve uma atuação decisiva para conseguir de volta as amostras de sangue dos Yanomami que estavam em posse de instituições científicas dos Estados Unidos – caso relatado em cartas escritas entre os anos de 2002 e 2003. O material foi coletado por pesquisadores na década de 1960, sem consentimento prévio dos indígenas. As amostras foram devolvidas apenas em 2015, por meio de um acordo de instituições norte-americanas com o Ministério Público Federal do Brasil.
Também assinam correspondências Nailton Muniz Pataxó, Gabriel Gentil, Jairo Munduruku, Maria Yakuy Tupinambá, Agnaldo Xukuru, Florêncio Vaz, Ailton Krenak, Maria Amaral, Graciliana Wakanã, Marcos Terena, Gersem Baniwa, entre outros. Algumas cartas têm autoria coletiva, produzida por entidades como, por exemplo, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), e diversos povos indígenas como os Tupinambá, Tuxá, Guarani Kaiowá, Maxakali e Xokleng.
“Percebemos que são muitas as pesquisas que analisam cartas sobre os povos indígenas para uma compreensão crítica da história política e literária do Brasil, mas há uma lacuna significativa nessas pesquisas e abordagens quando o indígena se torna o remetente das cartas, quando o indígena é o autor desse tipo de texto, ou seja, quando a biografia, o testemunho ou o documento histórico foi produzido pelo próprio índio. Elaboramos o projeto As cartas dos povos indígenas ao Brasil, tanto para reverter essa lacuna, quanto para criar o primeiro acervo virtual dessas correspondências – fundamentais hoje para apresentação de uma outra versão do Brasil, narrada e criada pela autoria dos povos indígenas”, afirma Suzane Costa. O projeto também conta com a participação de pesquisadores associados, 5 estudantes de graduação, bolsistas Pibic, e 3 estudantes de pós-graduação.
O projeto de pesquisa classificou as cartas escritas por indígenas em três diferentes períodos: 1630-1680 (antes do Brasil), 1888-1930 (na nação Brasil) e entre 1999-2020 (no presente Brasil). A análise abrangeu mais de 800 cartas, sendo 664 cartas já selecionadas e catalogadas durante a execução do projeto Autobiografias indígenas em trinta anos de cartas (projeto financiado pelo CNPq no Edital Universal 2013), e também abarcou as cartas escritas no período colonial pelos indígenas Antonio Paraopeba e Felipe Camarão, presentes nos Arquivos da Real Biblioteca (Koninklijke Bibliotheek) da Holanda, em Haia (Nationale Bibliotheek van Nederland), e as cartas em defesa da terra, produzidas entre as décadas de 1888-1930. As cartas anteriores aos séculos XX e XXI ainda estão sendo sistematizadas e tratadas, pois algumas precisam ser traduzidas, outras colocadas em HTML. A previsão é que as cartas do século XVII e XIX sejam publicadas no site no segundo semestre deste ano.
O trabalho também investe na discussão sobre a composição desse tipo de escrita para demonstrar como os povos indígenas apresentam uma outra concepção de autoria: à noção de povo-autor. A professora Suzane Costa ressaltou ainda que “todas as cartas escritas nas línguas indígenas possuem uma versão em português. Algumas cartas, como as dos Yanomami, são bilíngues. As cartas coletivas, produzidas por alguns grupos, são cartas ditadas aos indígenas que dominam a escrita da língua portuguesa ou aos parceiros não indígenas escolarizados (antropólogos, indigenistas, pesquisadores e ativistas), que participam das assembleias indígenas. Cabe ressaltar que nem todos os povos indígenas permitem a participação de não indígenas na transcrição dos seus documentos públicos e preferem que o texto seja produzido com a participação oral restrita da comunidade indígena em suas assembleias e encontros”.
“Ressaltamos ainda que com as cartas em circulação será possível ao grande público conhecer uma outra versão do Brasil narrada e criada pela autoria dos povos indígenas. Destacamos também que em pretendemos também criar uma exposição foto(áudio)biográfica das cartas (que pretende ser itinerante e gratuita), em museus nacionais e internacionais e, principalmente, nas escolas que ofertam educação básica”, acrescenta Rafael Xucuru-Kariri , analista de Políticas Sociais no Ministério da Educação, pesquisador indígena vinculado ao projeto.
Rafael Xucuru-Kariri convoca a imprensa, os movimentos políticos e acadêmicos para promover o site como o primeiro e único arquivo virtual de cartas indígenas do Brasil, fruto das pesquisas sobre autoria indígena desenvolvidas no NEAI (Núcleo de Estudos das Produções Autorais Indígenas), coordenado pela professora Suzane Lima Costa. Ele reforça que o material publicado pode ser utilizado como fonte de pesquisa, material didático para indígenas e não indígenas e como literatura do Brasil.
Confira trechos de algumas cartas:
Boa Vista, Roraima – 13 de Julho de 1996
De Davi Kopenawa Yanomami para Brasileiros
“Faz mais de quatro meses que o Governo Brasileiro não controla mais o nosso Território e levas de Garimpeiros armados invadem a nossa terra, destroem a mata, abrem pistas de pouso, envenenam os rios e os peixes, matam a nossa caça.
Estes invasores enganam os yanomami mais afastados, trazem doenças graves como gripe, pneumonia, malária, tuberculose e doenças venéreas.
Em troca de munições procuram ficar amigos de alguns jovens que depois usam armas de fogo para as brigas tradicionais e dessa maneira já morreram vários yanomami.
Em alguns lugares chegam a ameaçar também os poucos brancos que cuidam da nossa saúde”.
31 de maio de 2013
De Nailton Pataxó para o Brasil
“Nós indígenas Pataxó Hãhãhãe estamos surpresos e indignados com o assassinato do nosso parente Terena Oziel, durante os excessos da ação policial repressiva que visou mais uma vez intimidar nossas comunidades e fazer prevalecer os interesses dos latifundiários invasores de nossas terras. Não podemos ser passivos, nem muito menos coniventes, com a conjuntura atual de tentativa de destituição de nossos direitos que foram assegurados constitucionalmente em 1988. Quantos anos de luta e de exploração, extorsão, expropriação e assassinatos nossos povos originários já sofrem. É inadmissível que após 500 anos de colonização, continuemos sendo tratados como meros empecilhos aos interesses de grupos políticos e econômicos de povos que invadiram nossas terras”.
Rodelas, Bahia – 01 de fevereiro de 2021
Dos Tuxá para Brasil
“Eu sou fruto da resistência Tuxá, um peixinho em meio às águas profundas do meu Rio São Francisco, e pertenço a um povo que sempre lutou pelo reconhecimento do nosso território ancestral. Tenho escutado o canto, já entoado, e constantemente seguido o ritmo do toré do meu Povo Tuxá, ao passo que percebemos juntos os instrumentos de luta que servem de proteção e manutenção aos direitos originários, para assim contribuir no que se refere aos aparatos jurídicos e políticos a favor da luta pela demarcação do Território D’zorobabé”.
Veja mais em: cartasindigenasaobrasil.com.br
Fonte: Informe Edgar Digital/UFBA
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