Trabalho doméstico é trabalho Diversidades

segunda-feira, 21 fevereiro 2022

A antropóloga Andressa Morais traça uma genealogia da separação entre trabalho produtivo e trabalho reprodutivo

Por Andressa Morais*

A recente publicação sobre as exigências de Albert Einstein para “salvar” seu casamento nos convida a refletir sobre o lugar do tempo nas relações eróticas/afetivas. Ora, viramos um século desde que tal lista foi escrita pelo renomado cientista e apresentada à Mileva Marić, sua esposa – uma acadêmica e notável estudante de física[1]. Esta lista nos possibilita posicionar a divisão sexual do trabalho que já foi objeto de inúmeras pesquisas ao redor do mundo, e nas ciências sociais os nomes de Danièle Kergoat e Helena Hirata fornecem boas pistas a respeito do tema.

A separação entre trabalho produtivo (atividades de mercado, remuneradas e separadas da esfera doméstica) e trabalho reprodutivo (reprodução biológica e social, sem remuneração e realizado na esfera doméstica) se deu no contexto de formação da sociedade industrial e formação do sistema capitalista, momento em que o trabalho produtivo passa a ser realizado no espaço público, afastado da esfera doméstica. Nesse contexto, os papéis de gênero se organizam fortemente reforçando uma separação entre o trabalho produtivo e reprodutivo, desempenhados respectivamente por homens e mulheres, no público e no privado. A organização e luta das mulheres para entrar no mercado de trabalho permitiu que trabalhassem em fábricas, mas com a menor remuneração, em funções e posições mais baixas na hierarquia e com jornadas exaustivas. Entretanto, em sociedades de passado escravocrata como a nossa, as mulheres negras sempre trabalharam, e hoje são a maioria no mercado de serviços domésticos, acumulando a informalidade e a persistência de um traço colonial herdado da escravidão que repousa sobre seu corpo: a estrutura social da desigualdade de gênero, classe e raça que as empurra ao pior ponto de partida na vida social.

Andressa Morais – Arquivo Pessoal.

Varrer a casa, espanar os móveis, lavar roupa, organizar, lavar a louça, fazer comida, ir ao mercado, cuidar das crianças, cuidar de idosos, cuidar de pessoa com deficiência, jogar o lixo fora, arrumar a cama, lavar o banheiro, comprar remédio, estender as roupas no varal, retirar as roupas do varal, passar ou não as roupas?, fazer as compras, pagar os boletos, encher as garrafas de água, e tantas outras tarefas envolvem a rotina doméstica e na maioria das vezes são tarefas feitas exclusivamente por mulheres. Como dizer que tudo isso não é trabalho? Além de executar, não devemos ignorar que as mulheres também planejam tais tarefas conciliando outras atividades. O planejamento é um trabalho que ocupa tempo e memória.

Entretanto, para este canal de opinião, interrogo-me sobre qual o lugar da desobediência doméstica em tempos hodiernos? O que deveriam fazer as mulheres diante da exaustão? Jogar para o alto, deixar o lixo tomar conta da casa, não fazer comida, não lavar louça, deixar a casa e entregar crianças e tarefas para que o homem se comprometa como fez Leda, protagonista do filme “A filha perdida”? É possível. Mas não é a regra.

A divisão sexual do trabalho deveria receber bastante atenção nossa não pelo fato de Einstein ter sido um grande cientista e impor suas condições para manter o casamento, mas pelo fato de que ao menor sinal de falta de amor melhor seria se Mileva tivesse adotado o conselho de Nina Simone e “levantar-se da mesa quando o amor já não está mais sendo servido”, pois ninguém deve ser obrigada a viver uma vida inteira infeliz como “funcionária” do marido.

Claro, é possível encontrar narrativas de mulheres que cultivam esse lugar social como seu expoente de sucesso e autorrealização, não serei eu a julgá-las. No entanto, como farei nesse texto, pretendo apenas opinar sobre o modo de performar o tempo e como isso denega reconhecimento às mulheres e desiguala suas condições existenciais. Mais do que dividir as tarefas e organizar a rotina, a lista de Einstein nos convida a refletir sobre os papéis de gênero e de que maneira isso impacta sobre uma desvantagem para mulheres. Primeiro, devemos ter clareza de que o trabalho doméstico não é uma aptidão natural das mulheres, assim como não é uma prova de amor ou uma demonstração de cuidado, mas é sim uma forma de controlar, sugar e excluir mulheres de outras possibilidades existenciais. Nesse sentido, uma educação não sexista já nos faria mais livres de muitas tarefas, como as que acabei de citar.

Imagem – Reprodução

O fato é que ao ler a lista a gente pode até dar umas boas risadas e pensar que aquilo ficou parado no tempo, que não faz mais sentido pensar essas coisas ou mesmo que não encontramos qualquer traço de uma lista como aquela atualmente. Talvez isso se aplique para mulheres que estão num lugar social privilegiado, aquelas que podem facilmente terceirizar quase tudo em suas vidas, menos sua consciência de classe/raça/gênero. Engana-se quem pensa que recursos podem nos livrar ou acertar a balança da desigualdade de gênero, contudo sem mover um palmo na estrutura de gênero que impõe sobre nós o peso dos serviços domésticos e de cuidado. Classe compõe raça e gênero. O máximo que isso poderá fazer é passar o trabalho doméstico remunerado para mulheres negras e pobres, como o fez Sarí Cortêz. Dentro da organização social em nossa sociedade mulheres negras ocupam o lugar das profissões de serviços que são mal pagas e exigem do corpo, gerando dor, doença e uma previdência instável.

Durante os anos de 2016 e 2020 dedicada ao trabalho de pesquisa com advogadas feministas tive entre minhas tarefas de pesquisa acadêmica a oportunidade de ler peças processuais nas quais casais que viveram o conflito doméstico seguido de agressão e violência contra a mulher estavam rompendo seus casamentos (Morais-Lima, 2020)[2]. Nesse campo aberto da etnografia podemos compreender a atualidade da lista de Einstein e a perpetuação das desigualdades de gênero que alcançou o corpo de Mileva. Onde se explica a diferença entre os trabalhos de “mulher” e de “homem”, encontrei: a) a feminização do cuidado, o trabalho doméstico como não remunerado, a desvalorização das atividades de gestão da casa, o papel da mulher como reprodutora, o tempo das atividades domésticas como menos importante; b) O trabalho remunerado como lucrativo, a valorização do trabalho externo, a oferta de prestígio para o trabalho realizado fora, a hierarquia do trabalho do homem como o mais importante e a reprodução do símbolo do provedor. Mesmo que pareça meio démodé falar sobre a lista, ainda é necessário tendo em vista que o trabalho doméstico no sistema capitalista sustenta sua reprodução. A reprodução dos desígnios de gênero aparece inscrita nas peças processuais de agressores tais quais as exigências do velhinho simpático da teoria da relatividade que, como exemplar do seu gênero, não deixou a desejar quando listou exigências e gabaritou no quesito abusivo ao trair a esposa e praticar adultério, abandonar os filhos, deixar Mileva desprovida de recursos e sem futuro promissor para seus estudos (ela no início do relacionamento era uma acadêmica notável). Sabemos também que as expectativas de autorrealização para mulheres e homens são incutidas em processos de socialização desde a tenra infância, repousando sobre corpos de meninas desvantagens profundas a respeito de sua formação, autorrealização, aspirações e desejos, principalmente se forem meninas negras. Mulheres são socializadas para aprender a medir seu sucesso em ter um casamento e parir crianças. E, feminismo é sempre sobre liberdade, jamais como destino pré-escolhido para ser aceita socialmente. Mulheres podem se autorrealizar no que desejarem. Este é o ponto. Posto isso, a estrutura desigual de gênero vai interferir na concretização desse desejo e é disso que se trata. Ser bem-sucedida na carreira e/ou no casamento.

Imagem Reprodução

Mulheres dedicam o dobro de tempo às atividades domésticas. Isto representa um desgaste emocional, físico e mental que traz como consequência mulheres mais cansadas. Aliás, com a pandemia de covid-19, as mulheres estão exaustas, sem força ou energia suficientes para outros assuntos como estudos ou política. Com a pandemia as mulheres assumiram uma maior carga de trabalho não remunerado, de acordo com o IBGE 72% das brasileiras disseram ter intensificado os cuidados com crianças, idosos e pessoas com deficiência. Além disso, esse extrato da população foi o mais afetado por perdas no mercado de trabalho nesse período, isto representa 8,5 milhões de mulheres desempregadas, 35% é o percentual de brasileiras que perderam seus empregos durante a pandemia. A divisão sexual do trabalho no contexto da pandemia fez destacar que a lista de Einstein parece ser ainda bem atual, revela uma distância abismal entre homens e mulheres no trabalho produtivo evidenciando a estrutura de exploração de uma relação de poder que impõe a desvantagem sob os ombros das mulheres.

Por conta dessa masculinidade fraca e aproveitadora mulheres como Mileva não tiveram a chance de seguir na vida acadêmica. Por conta do sexismo, e só por isso. Não é pouca coisa, não. No mundo, 12,5 bilhões de horas são dedicadas todos os dias ao trabalho doméstico. Quais políticas públicas estão sendo desenhadas para equilibrar essa desigualdade? Como isso pode ser considerado invisível? Trabalho doméstico é trabalho. Mas o que me inquieta ainda sobre as exigências à Mileva é o horizonte de autorrealização minado.

Exigir que “minha roupa esteja sempre limpa e em ordem” pode ser facilmente encontrada entre as demandas de uma masculinidade obsoleta vagando nos tribunais para dizer que é responsabilidade da mulher aplicar o “deltacid” no cabelo das crianças para acabar os piolhos, pois no final de semana dos pais os piolhos param de dançar na cabeça das crianças e só voltam a coçar na segunda depois da escola. Parte dos conflitos do espaço doméstico tem como raiz de seu problema essa performance de gênero que engessa e impõe acordos tácitos que não cabem mais ao tempo presente. Como consequência da reprodução dessas exigências encontramos renda desigual para mulheres que ocupam as mesmas posições que homens em empresas, isto representa cerca de 25% a menos em ganho salarial em relação aos homens; o trabalho doméstico impactando negativamente na vida de meninas e mulheres impedindo que muitas delas possam estudar ou trabalhar fora.

Recentemente ouvindo o podcast “Quem lê tanta notícia”[3] com a psicanalista Vera Iaconelli, o advogado Thiago Amparo e a escritora Tati Bernard essa questão veio ao centro do debate ao abordar a maternidade compulsória exposta pela talentosa escritora italiana Elena Ferrante em sua narrativa que ganhou as telas de cinema com “A filha perdida”[4], pelas lentes da diretora Maggie Gyllenhaal (2021). Parte da narrativa está centrada no incomodo entre escolher a profissão e a carreira de uma professora universitária ou conceder a atenção e cuidados às duas filhas e ao marido, quando a personagem Leda, protagonista, aborda as ambiguidades da maternidade e da desigual expectativa da posição de gênero sobre as mulheres. Ela simplesmente optou por sua carreira e saiu. Muitas mulheres passam a vida inteira dedicadas ao escrutínio da língua pública que julga e culpa mulheres por um casamento ir pelo ralo, pela gravidez que não aconteceu, por escolher não ser mãe, por optar pela carreira profissional ou simplesmente por se negar a doar seu corpo para uma jornada exaustiva de trabalho não reconhecido. É sobre isso que devemos pautar a esfera pública. E se Mileva tivesse deixado o “gênio” com as duas crianças e seguido os estudos de física, onde estaríamos quanto à teoria da relatividade?

*Andressa Morais é antropóloga e cientista social formada pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), mestra em Antropologia Social pela UFRN, doutora em Antropologia Social pela Universidade de Brasília (UnB), está desenvolvendo pós-doutorado sobre violência doméstica e segurança pública no contexto da pandemia de covid-19 na UnB e é Promotora Legal Popular. Instagram (https://www.instagram.com/andressamoraislima/)

[1] Sobre a lista, leia mais em: https://super.abril.com.br/historia/a-lista-de-exigencias-de-albert-einstein-para-salvar-o-seu-casamento/.

[2] Tese completa está disponível em: < https://repositorio.unb.br/handle/10482/41644 >.

[3]Ver:< https://open.spotify.com/episode/25iGvjFpg1KtUeEQtrHiH1?si=6H2rTXPDSFa1EiUTzRp7Zw >.

[4] O filme está disponível na Netflix: < https://www.netflix.com/browse?jbv=81478910 >.

A coluna Diversidades é quinzenal, publicada às segundas-feiras. Leia, opine, compartilhe e curta. Use a hashtag #Diversidades. Estamos no Facebook (nossaciencia), Twitter (nossaciencia), Instagram (nossaciencia) e temos email (redacao@nossaciencia.com.br).

Leia a coluna anterior: Para além de um item em uma lista: 30 anos de estudos bissexuais no Brasil

“Epistemologias Subalternas e Comunicação – desCom é um grupo de estudos e projeto de pesquisa do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte”.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Site desenvolvido pela Interativa Digital